A guerra de Putin, entre a geopolítica e a psicopolítica

Escrever sobre esta guerra, acerca da qual, e até um certo ponto (fenomenológico e retórico), se deve, pelo menos por enquanto, dizer, como no amor, que se pode descrever mas não explicar, só pode ser de modo ensaístico (à maneira de Montaigne, um dos primeiros europeus a genuinamente desconfiar da sua clarividência, exemplo muito pouco seguido). Isto se não padecermos da síndroma da Nato ou tivermos sido inoculados por uma nostalgia imperialista do velho século xx (por vezes andam a par).

Lido Cólera e Tempo (CT) de Peter Sloterkijk, conseguimos, porém, guiar-nos por categorias menos líquidas do que deixava antever o primeiro parágrafo: em vez dos dispositivos eróticos do desejo (combustível do consumismo desenfreado) estamos perante dispositivos timóticos (cólera, ressentimento, vingança…). Sloterkijk relembra-nos que a Europa começou pela cólera de Aquiles (início da Ilíada), a matriz genésica da nossa civilização está na ativação de forças destrutivas desnorteadas, mas não completamente estéreis, que à sua maneira acabaram por construir a mais bela de todas as civilizações (digo isto por amor).

A Atenas clássica será muito mais erótica do que timótica. Aquiles tinha, no fundo, perdido para Ulisses, astúcia em vez de cólera. O movimento que laicizou o saber, os filósofos, idealizando ou observando, nunca radicalizaram o discurso ou a ação (a exceção do movimento cínico é isso mesmo, uma exceção). O regresso do religioso, de um religioso unidimensional e avassalador (que benévola era a multirreligiosidade grega!), contudo, recuperou o princípio timótico e espalhou a cólera divina sobre a humanidade insegura e ansiosa, que aderiu com uma facilidade assustadora a um comandante supremo que a castigava sem porquê (não há qualquer hermenêutica possível para a cólera divina, essencialmente pré-discursiva).

Porém, com o tempo, a vitória do Novo Testamento sobre o Velho e a posterior «morte de Deus» a golpes de crítica racional, a religião foi-se desfazendo dos seus vetores mais coléricos (embora com regressões, as Guerras de Religião do séc. xvii foram incrivelmente destrutivas e cruéis). Até que no século xx apareceu um novo grande banco de cólera (este dispositivo coleta as cóleras individuais e age, em troca, com a força conjunta de todos os seus depositantes): o comunismo (nos formatos históricos do leninismo, estalinismo e maoismo). Este novo messianismo assente na luta de classes (com nuances no caso maoista) arruinou tudo o que se lhe opunha (um Messias não pode aceitar oposição sem cair numa contradição insanável). A timótica comunista acompanhou, segundo Sloterdijk, uma invariável que nasceu na Revolução Francesa de 1789: «a deceção e frustração que produziram sempre, além da renúncia e de uma rejeição cínica das ilusões do passado, formas agudas e actuais de cólera.» (CT, p. 133) Contrariaram, pois, a recomendação aristotélica: «Nunca odiar, mas desprezar muitas vezes». Preferiram vincar a indignação e encorajar metodicamente a cólera, a principal «missão psicopolítica que começa durante a Revolução Francesa.» (Sloterdijk, CT, p. 140)

Finalmente, a década de 90 do séc. xx parecia, agora sim, revogar definitivamente as forças timóticas da cólera, ressentimento ou vingança. A queda do Império Soviético colocava a «A luta continua!» no reino da fantasmagoria (apesar de ainda pontuar os comícios do PCP). Hoje parece só haver fúrias de descontentamento concentradas em atos isolados e sem perspetiva de futuro. É que, como refere Niklas Lhumann, se os conservadores começam pela deceção, os progressistas terminam na deceção. Mesmo o radicalismo do islamismo político parece trabalhar, sem se vislumbrar qualquer redenção, em projetos de autodestruição. Aconteceu, portanto, nas palavras de Sloterdijk «a rejeição do primado do timótico em favor de uma erotização sem limites.» (CT, p. 222) Já não concentrada na líbido sexual (se é que alguma vez se centrou aí totalmente), mas num universal querer-ter e querer-alcançar. Daí que o livro mal-amado de Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, seja, ainda para Sloterdijk, o que melhor resume o zeitgeist do fim do séc. xx.

Até que o presidente Vladimir Putin, herdeiro de um país continente, no qual a morte provoca bem menos sobressaltos do que no Ocidente (ao qual, primeiro, quis pertencer e depois deixou de querer). Rússia, cuja história só retém quem consiga o cognome de «grande», compôs um presidente talvez sem muito princípio de realidade (filtrada pelos seus esbirros para que só lhe cheguem as moléculas que confirmam o que ele vai congeminando), talvez paranoico, como muitos pressagiam, talvez encurralado por pesadelos tecidos de ressentimento e vontade de vingança. Talvez outras coisas. É que, ao justo, ninguém faz a mais pálida ideia deste retorno das forças timóticas no reino da infinita e ilimitada erotização, também a da Rússia, dos oligarcas com iates de 100 milhões de dólares à classe média do Iphone de última geração. Há quem diga que nada disto é inesperado, que a guerra se preparava há 20 anos. Mas cheira-me a fazer prognósticos no fim. Tanto mais que o estilo, discursivo e corporal, de Putin se alterou de 2014 para cá: mais colérico, ameaçador, longamente descritivo e messiânico agora.

O que tenho lido na imprensa compõe um emaranhado de descrições e explicações sem linhas de sentido seguras, tudo pode ser uma e outra coisa. As questões geopolíticas pesaram, com certeza, na decisão, as psicopolíticas também, com a elite putiniana a transbordar de hormonas timóticas. Mas talvez devamos acrescentar um stress psicótico ou algum trauma dos habitualmente repertoriados pela psicanálise. Pode ser uma questão estética, enquanto sensibilidade bélica (os aviões de combate são considerados belos por muitos pais de família). Um desafio vindo do além, histórico ou religioso. Mas é seguro que o universo mental de Putin é o da violência, em 2015, quando entrou na guerra síria, terá dito: «As ruas de Leningrado ensinaram-me uma coisa: se a luta é inevitável, bate primeiro.»

Tudo isto apesar, ou por causa, de um contínuo declínio interno. A Rússia não deixou de declinar nos últimos 20 anos, exceto no campo mais estritamente militar (e mesmo este talvez não seja tão florescente como se pensa). Ajudado pelos combustíveis fósseis, Putin fez da Rússia uma «bomba de gasolina com mísseis nucleares», hard power bruto. Mas todos os outros domínios, do económico ao social, estão iguais ou piores do que há 20 anos. O nível de vida, a inovação, a cultura, as liberdades…, tudo isto se deteriorou. Com desigualdades superiores, por exemplo, às da China (estudo de Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman de 2018). País de cientistas, romancistas, músicos, bailarinos…, há agora um presidente que mantém os seus raríssimos convidados a 20 metros de distância, prova do falhanço da vacina Covid-19 Spoutnik.

Por mais que se diga, não interessa a Putin e à elite que o rodeia e se exercita em constantes genuflexões construir um qualquer futuro, mas regressar ao passado, reconstruir, mutatis mutandis, o grande império soviético (cuja queda foi, nas suas palavras, o maior fracasso geopolítico de todos os tempos). E, por isso, vê na Ucrânia virada para o Ocidente, com uma visível vontade de democracia, um desafio insuportável, uma traição. Alia-se a isto a crença, contraditória relativamente ao medo que tem do Ocidente, de que os países democráticos estão decrépitos, em 2019 disse ao Financial Times que o «pensamento liberal se tornou obsoleto».

Esta mistura de impulsos, uns mais timóticos outros fundados na velha teoria política da dicotomia amigo/inimigo de Carl Schmitt, que prolongou a célebre tese de Cal von Clausewitz segundo a qual «a guerra é a continuação da política por outros meios», pôs a Rússia e o seu presidente a sós consigo, isolada e ameaçada pela possibilidade, bem real, de um colapso económico (que, como é habitual, atingirá os mais desfavorecidos). Legado de um homem de 69 anos, ressentido e colérico, egomaníaco, talvez paranoico. Nada mau para alguém que tinha prometido estabilidade e prosperidade aos russos. Como escreve Piotr Smolar no Le Monde de 4 de março, Putin pôs, tudo o indica, uma bomba debaixo da sua poltrona. Ignoramos o comprimento do pavio.