O homem é um lobo para o homem

Esta é uma das sentenças mais famosas da história da filosofia. Mas é também uma das mais mal compreendidas, quer pelos otimistas quer pelos pessimistas antropológicos, e das mais controversas. Facilita, seguramente, a entrada na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), mas por uma porta lateral que afunila o processo hermenêutico, reduz, quase até à caricatura, o leque das interpretações possíveis sobre o seu pensamento de base contratualista.

Diga-se que a fórmula não foi inventada por Hobbes. Trata-se de uma daquelas locuções em latim que são transmitidas e comentadas entre autores ao longo da história, de Plauto a Bergson, passando por Rabelais, Montaigne, Schopenhauer... e Hobbes. Ele é somente um dos elos da longa cadeia formada por quem julga, ou não, que «o homem é um lobo para o homem» («Homo homini lupus est»).

A expressão não está no Leviatã (1651), a sua obra mais famosa e importante, serve de epígrafe a De Cive (Do Cidadão), publicada em 1642. Após ter evocado as Guerras civis romanas, escreve: «Não há dúvida de que ambas as fórmulas são verdadeiras: o homem é um deus para o homem e o homem é um lobo para o homem. O primeiro se compararmos os cidadãos uns aos outros, o segundo se compararmos os estados uns aos outros. Naquele, o homem consegue imitar Deus na justiça e na caridade, as virtudes da paz. Neste, mesmo os homens bons devem, devido à depravação dos ímpios e à necessidade de proteger-se, recorrer às virtudes bélicas, à força e à astúcia, ou seja, à rapacidade dos animais.»

Esta ambivalência é muitas vezes esquecida, algo que nem De Cive nem o Leviatã autorizam. Mas a simplificação tendenciosa elucida-nos sobre duas coisas: 1- preferimos o drama da acusação radical e sem remissão (Hobbes como teorizador das ditaduras que esmagam a liberdade individual porque não acreditarem na bondade humana, perdendo, por isso, quase sempre a contenda com o otimista antropológico que foi Rousseau — mais uma simplificação); 2- há séculos que mantemos viva uma pulsão acusatória intraespecista que alimenta e justifica o ódio e a vingança da economia relacional humana, a agressão interpressoal.

Todos os movimentos peace and love da história, de Cristo a Mahatma Gandhi, passando pela embriaguez hippie ou alguns prémios Nobel da Paz, são, pelo destaque que merecem e a rapidez do esquecimento, epifenómenos que conjuram unicamente uma pequena parcela da má consciência (também eu peco!) que diariamente tecemos. As estrelas dançantes, vivendo em perene jovialidade, são seres raros e distantes, talvez Sísifos brincando com berlindes, fora de alcance para o nosso desejo de emulação. Estarão «6000 mil pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas!»[1] Aqui em baixo, continuamos desconfiados e acusadores.


[1] Friedrich Nietzsche, Fragmento Póstumo de 1881, 11[141]; KSA 9, 494. (6000 Fuss über dem Meere und viel höher über Allen menschlichen Dingen!).

Torna-te quem és II

«Torna-te quem és!» II (há uma primeira versão aqui na Enfermaria6, não saberíamos dizer de uma vez por todas como nos tornamos quem somos).

Esta máxima, atribuída a Píndaro (Odes Píticas, em honra de desportistas, e cujo sentido mais exato será «torna-te aquele que aprendeste a ser», um tornar-se que supõe uma certa aprendizagem de si no agon físico) concorre com o célebre «conhece-te a ti mesmo» apolíneo (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Nietzsche preferirá durante grande parte da sua obra, e nalgumas cartas, a primeira, destacando-a no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: «Wie man wird, was man ist» (como vir a ser o que se é). A sentença é paradoxal e vertiginosa, mas sintetiza bem os diferentes problemas da identidade, que oscilam entre a autodeterminação e a dissolução vs. concentração do eu. Pelo meio estão os vários modos e tipos de fabricação de sujeitos, de que os velhos e novos nacionalismos, com os respetivos lastros xenófobos, são apenas um exemplo.

Para Nietzsche, as antropotécnicas são louváveis quando nos permitem vir a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade onto-antropológica (o Dasein, ente lançado no mundo, incorrompido acolhendo o Ser) que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como busca do impessoal que governa a nossa pessoalidade (renaturalização do humano), um determinismo mais frouxo do que o sócio-cultural. Não será assim Nietzsche, crítico do coletivo (rebanho moral e político), o inventor do eremitismo moderno, que em vez de regular a subjectividade pela intersubjectividade a amplifica até ao estouro? (entendendo o Übermensch como o super-homem que derrotou a Idade da Humanidade e retornou à Terra). Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, onde o sujeito decadente (ou decaído) é o resultado da soma de uma convenção linguística com um dispositivo religioso, cujo o objetivo é manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento, veremos que hesita e se embaraça com a possibilidade de um salto por cima do homem, que num só golpe constituísse aquele, ou aquilo, que deveríamos ser. E mesmo quando confrontado àquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava que não tinha lido Nietzsche seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, escava-se e domestica-se o inconsciente com uma grelha do consciente, pessoaliza-se o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao «si» (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais imbricados, ao ego.

Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?

Como: investigando, com uma racionalidade limitada, as linhas da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem pela vida, o complexo instintivo, pulsional. Não ser de nenhum lugar (atopos), não ter nenhum nome, um passado instável devido ao «eterno retorno do mesmo», um futuro radicalmente imprevisível (a «filosofia do futuro» perscruta-o, mas não o encontra), um presente perspetívico («mil olhos!», clama Nietzsche). O que somos nunca é um dado adquirido, melhor seria, então, dizer: «o que vamos sendo».

Para quê: por amor à alteridade, a desvinculação e a disseminação do eu abre a possibilidade de descobrir o outro desigual (grande parte da obra de Jacques Derrida parte daqui). Amar uma estrela não porque ilumina, mas amá-la por si mesma, como outro ser, insujeito aos nossos desejos ou caprichos. Amar até à plenitude de se amar o nada. Talvez aí encontremos, fugazmente, aquilo que somos (que é sempre, como queria Sartre e Beauvoir aquilo que não somos), já que as forças afirmativas que nos compõem (pouco domesticáveis) contribuem agora para a máxima potência da impessoalidade.

Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche, uma negação criadora, a recusa do que é para inventar outras formas de existir (o niilismo incompleto assenta na supressão da vontade à maneira shopenhaueriana). Como pensava Nietzsche, à morte de Deus seguir-se-ia a do homem, desde homem, para que nasça o sobre-homem, até porque só ele pode realmente amar o distante, um amor unilateral que perde, por isso, o reenvio das pulsões daquilo que é amado. Como se pode incandescer desta forma?

Ter-se-á tornado Nietzsche quem era?

No tempo de O Nascimento da Tragédia (1872) e das Considerações Intempestivas (1874-1876) a consciência e a salvaguarda de si obrigava a uma singularização, daí as críticas às massas, compostas por indivíduos que não cumpriram o seu destino, que não quiseram ser quem eram. É como se Aquiles tivesse recusado ser herói, preferindo uma existência tranquila. A felicidade superior nasce da tensão que se exerce contra si a favor de si, isto é, contra o que somos para nos tornarmos quem somos, para nos cumprirmos. Viver assim implica ser intempestivo, solitário, estar nas margens das massas e do verdadeiro, emancipar-se. Uma emancipação que, como disse, assenta na solidão, mas igualmente na emulação. Wagner e Schopenhauer, até meados da década de 70, depois Voltaire, Stendhal, Espinosa, talvez Bizet, por vez Sócrates e o mítico Dioniso insuflaram em Nietzsche a vontade e forneceram-lhe os exemplos.

Terá então Nietzsche cumprido o seu destino? Se acreditarmos no que escreveu no seu livro-testamento, Ecce Homo (final de 1888), no capítulo em que relê as Considerações Intempestivas, concluímos que sim. Diz ele: «Agora, que volto a olhar de uma certa distância para as circunstância de que esses escritos são testemunho, não quereria negar que, no fundo, eles apenas falam de mim. O que se intitula “Wagner em Bayreuth” é uma visão do meu futuro; pelo contrário, em “Schopenhauer como educador” está inscrita a minha história mais interior, o meu devir. E, sobretudo, o meu voto!...O que hoje sou, onde hoje estou — a uma altura em que já não falo com palavras, mais sim com relâmpagos. Oh!, a que distância daí eu ainda estava então! Mas via a terra — não me enganei, um só instante, quando ao caminho, ao mar, ao perigo — e ao êxito!» (tradução Paulo Osório de Castro, Obras Escolhidas de Nietzsche, Relógio D’Água, Lisboa, 2000)

Cumpriu o destino, tornou-se quem era, não de um só golpe, mas ao longo de vinte anos, pouco a pouco, hesitando e errando, mas não vacilando, experimentando as múltiplas possibilidades de vida que se lhe ofereceram e que conquistou. Pagando o preço de uma terrível incompreensão, do silêncio, mais do que das críticas, com que os seus livros foram recebidos, logo desde O Nascimento da Tragédia.

Por um lado, as palavras de Nietzsche que acabei de citar parecem ser suficientes para declarar a sua satisfação existencial. Por outro, no mesmo Ecce Homo, em «Porque sou um destino» assume o seu receio de ser mal compreendido (que o «canonizem»), daí esticar o seu destino até a incarnação num profeta, que vem dizer a verdade última de que houve uma inversão de todos os valores, que só depois dele pode voltar a haver esperança. E por isso, escreve no final absoluto do livro: «Compreenderam-me? Dioniso contra o Crucificado…» (Idem) Ora, Dioniso é aquele que nunca se pode cumprir, porque eternamente se compõe e descompõe, se forma e dilacera, se faz um e se faz outro, outros. Dioniso não tem um destino, mas pode ser o próprio destino, porque é composto por pulsões nascentes e evanescentes, vontades de potência interagindo em cumplicidade ou rivalidade. O ter-se tornado Dioniso foi mais uma forma de anular o destino do que cumprir o destino, uma emancipação feita ao contrário, uma autossuperação (Selbstüberwindung) de marcha atrás. Mas que só podia acontecer depois dos vários saltos em frente que o conduziram ao colapso mental do início de 1889. E há aqui qualquer coisa de divino, que na Grécia vinha ao mundo para no final se certificar que pertencia de bom grado ao Olimpo.

Daí Nietzsche fechar o último livro com a personagem filosófica que tinha aberto a sua contenda com o mundo filológico e filosófico da sua época: Dioniso. Nietzsche sempre foi Dioniso, mas teve de percorrer um longo caminho de pensamento e sentimento para confirmar isso mesmo. Teve de tornar-se quem sempre foi.   

«Dezoito», um pequeno "romance fluvial" de Giorgio Manganelli


Tradução: João Coles

Aquele senhor que comprou uma gabardine usada, um chapéu de aba larga, que fuma nervosamente, e anda para a frente e para trás num quarto de hotel decadente que teve de pagar de antemão, decidiu, há dez anos, que quando crescesse queria ser assassino. Já cresceu, e não há nada de novo, nem os amores, nem os pequenos-almoços saudáveis de manhã, nem os hinos eclesiásticos, modificaram de forma alguma a sua decisão, que não se tratava de um capricho infantil, mas de uma escolha sábia e ajuizada. Ora, um assassino precisa de poucas coisas, mas coisas peculiares. Deve possuir uma arma ao mesmo tempo prestigiosa e elusiva, uma mira perfeita, um comitente, e uma pessoa a quem matar; o comitente, por conta própria, deve possuir ódio e interesse, e muito dinheiro. O difícil é obter todas estas condições ao mesmo tempo. Uma vez que o seu temperamento oscila entre o fatalismo e a superstição, está convencido de que um verdadeiro assassino não poderá senão encontrar-se na situação prevista, mas que, sendo essa uma situação complexa e altamente improvável, pode acontecer não se o assassino for competente, se a arma for a certa, se existir em algum lugar um grande ódio ou um interesse terrível, se houver dinheiro para matar, mas se alguma coisa nos céus, nas estrelas, talvez em Deus em si, se existir, intervir e aglomerar esses fenómenos dispersos e geralmente distantes o suficiente para não conseguir reuni-los.

Ele quer ser digno de uma escolha à qual não hesite em atribuir um carácter fatal. Portanto, depois de ter escolhido um traje qual túnica, decidiu tornar-se uma mira perfeita. É um noviço, mas tem a vocação de um asceta. Apercebeu-se imediatamente de um erro cometido por todos os aspirantes a assassinos; treinam-se com alvos falsos. O alvo falso não põe à prova o ascetismo do assassino. Este princípio, por si só incontestável, induziu o assassino a algumas conclusões: ele estabeleceu que deve aprender a mira perfeita em condições perfeitamente ascéticas. Não deve atingir, deve matar. Não os animais, pois querem ser abatidos. Homens? Mas matar um homem que não por dinheiro é exibicionismo fátuo. Resta-lhe uma única solução, uma verdadeiramente ascética. Deve treinar com a mira a apontar para si próprio. Acaba de posicionar a arma num canto do quarto, numa posição alta, e atou o gatilho a uma corda. O assassino medita. Agora apontará para si. E depois? Se falhar, estará a salvo, mas desclassificado como assassino; se acertar, alguém morrerá: o assassino. Hesita demoradamente: mas sabemos que no final prevalecerá a sua consciência profissional.


Sobre um verso de poesia estrangeira

Yiorgos Seferis[1]
Em Tetradio Gymnasmatôn (Caderno de Exercícios) (1928-1937)
Tradução de Tatiana Faia

Para Elli, Natal de 1931

Feliz aquele que fez a viagem de Ulisses.
Feliz se no começo da viagem sentiu a equipagem de um amor
com toda a força estendendo-se tensamente pelo corpo como
as veias por onde ressoa o sangue.

Um amor de ritmo indissolúvel, invencível como a
música e interminável porque nasce quando nós nascemos
e quando morremos, se
morrerá connosco, não o sabemos nós e mais ninguém o sabe.

Que deus me ajude a dizer, num momento de grande
felicidade, o que é ao certo esse amor;
sento-me às vezes rodeado de exílio, e escuto o seu distante
murmúrio como o som do mar quando
se mistura com um inexplicável remoinho.  

E surge diante de mim, de novo e de novo, o fantasma
de Ulisses, com os olhos vermelhos do sal
das ondas,
do desejo amadurecido de ver outra vez o fumo que se eleva
do calor da sua casa e o seu cão
que envelhece esperando junto à porta. 

Ali está ele de pé, alto, sussurrando através da sua barba
branca, palavras da nossa língua, como a falavam
há três mil anos.
Estende a palma da mão calejada pelas cordas e pelo
leme, a sua pele curtida pelo vento do norte, pelo calor
infernal e pela neve. 

É como se quisesse expulsar de entre nós o sobre-humano Ciclope
que vê com um só olho, as sereias, que se as escutas te forçam
ao esquecimento, e Sila e Caríbdis:
monstros tão complicados que nos impedem de entender
que também ele era um homem que se debateu no mundo,
com a alma e com o corpo. 

É o poderoso Ulisses: aquele que sugeriu que se construísse
o cavalo de madeira e os aqueus conquistaram Troia.
Imagino que ele vem para me explicar como também construirei
um cavalo de madeira para conquistar a minha Troia. 

Porque fala humildemente e com serenidade, sem dificuldade, parece
conhecer-me como se fosse meu pai
ou algum desses velhos marinheiros que curvados sobre as suas redes
na hora em que chega o inverno e a raiva do vento, 

que me cantavam, na infância, a canção do Erotókritos,
com os olhos marejados de lágrimas;
era então que eu me assustava no sono ao escutar o injusto
destino de Aretusa ao descer a escadaria de mármore. 

Ele sabe quanto é difícil a dor que sentes quando as velas do teu navio
se incham com a memória e a tua alma se transforma no leme,
estar sozinho na escuridão da noite e à deriva como
palha na eira; 

ele fala-me da amargura de veres os teus companheiros afogados
pelos elementos e destroçados um a um.
E de como é estranho ganhares força conversando com os mortos,
quando já nenhum dos vivos que restam te basta. 

Ele fala... vejo ainda as suas mãos que sabiam julgar se tinha sido
bem-talhada a sereia na proa
para assim me oferecer um tranquilo mar azul em pleno coração do inverno.


[1] O verso estrangeiro é “Heureux qui, comme Ulysse, a fait um beau voyage.” Joachim du Bellay, Les Regrets.

Poesia Portuguesa Contemporânea e Um País Em Bicos dos Pés

Devemos alegrar-nos, talvez como acontecia nos festivais dionisíacos (ainda sem pulseiras). Saltar por cima desta tristeza que aprendeu a insinuar-se até na garrafa de vinho mais premiada de Robert Parker. É que é muito raro testemunhar a edição de dois livros com a beleza e a importância dos que aqui trago em jeito de nota de leitura (ainda incompleta). Merecem, com certeza, receções críticas mais longas, profundas e, talvez, aborrecidas (sem desprimor, o insípido é uma categoria ambivalente). Espero que outros as façam, eu não tenho o vigor necessário (nem as competências dos hermeneutas canonizados), cabe-me, todos os dias, como Kant, cumprir a circunstância de tarefeiro do Estado, multifuncional e alienado, paradigma da compulsão para um gasto delirante e inútil de tempo. Noutra vida serei outra coisa (Rimbaud diferido), não sei bem o quê, espero apenas deixar menos livros por ler e não adiar conversas com quem (ou o quê, agora temos o ChatGPT) consegue apontar alguns ângulos mortos ao meu olhar.
Quer Joaquim Manuel Magalhães, quer Diogo Ramada Curto fazem crítica cultural, isto é, numa caracterização muito pessoal, analisam e avaliam o que, e como, autores na arena das artes expressaram em obras que vão da poesia ao romance, passando pelo ensaio, artes plásticas e documentos epistolares (as cartas assassinas são maravilhosas). O que disseram (análise), como o disseram (análise), com que intenção (avaliação) e repercussão (avaliação).
Tal é relevante porque acrescenta inteligibilidade aos autores e às obras, mas também porque nos coloca a par do olhar que nos últimos cerca de 150 anos os artistas, em grande medida fenomenólogos visionários, lançaram sobre a viabilidade da arte que praticavam e a distância entre expectativas de receção e o acolhimento de facto pelos seus pares (sobretudo Joaquim Manuel Magalhães) e por um país menor, menorizado, automenorizado, que prefere consumir a sua inteligência a fabricar o enquadramento mítico, vibrante mas impreciso, de destinos heróicos ou lamentar-se de uma pequenez autoinfligida em vez de resolver os problemas reais que impedem um povo e uma cultura de se realizar (sobretudo Diogo Ramada Curto). Os milhares de enunciações performativas, à maneira de John Austin, que lançaram sobre o tempo e o espaço que escolheram recortar da totalidade do universo (numa suprema bazófia, em Os Maias Ega queria contar, literalmente, uma história universal) permite esboçar retratos do humano, da linguagem e da cultura, sobretudo os que compõem aquilo a que chamamos Portugal.
Só um país culturalmente indigente pode desvalorizar, sem qualquer estratégia para lá da pequena maledicência ou de um maniqueísmo estético que aposta tudo na criação e nada na receção, a crítica em geral. Neste caso, a crítica de Joaquim Manuel Magalhães e Diogo Ramada Curto — que é também criação literária, nem tenho qualquer dúvida — permite apoderarmo-nos de sentidos originários de tempos, ações e contextos que sem eles seriam ou significados não reclamados ou significados perspetivados de forma mais redutora. Se é verdade que não há emancipação pura, que em todas as formas de libertação se insinua a alienação, também não deixa de ser uma certeza que a leitura destas obras tornará a cultura portuguesa mais ampla e complexa, mesmo que à custa de se acrescentar saber sobre a sua mesquinhez.

Na Poesia Portuguesa Contemporânea, Joaquim Manuel Magalhães reune, em cerca de 1100 páginas, tudo o que escreveu sobre poesia portuguesa até 2007 (quando percebeu «que nada mais [lhe] apetecia escrever sobre o assunto»). Publicou em revistas, jornais e livros que compuseram obras já editadas: Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981; Um Pouco de Morte, Presença, 1989; Rima Pobre, Presença, 1999. A pequena exceção de alguns textos inéditos das décadas de 80 e 90 não altera significativamente a ontologia da repetição, talvez com o sentido, ainda que heterodoxo, de antologia. A decisão de não-escrita podia ter sido interrompida, diz o autor, pela qualidade de três poetas que muito aprecia: Frederico Pedreira, Sebastião Belfort Cerqueira e Marcos Foz. Também a obra coletiva Alcazar (2022) quase o tirava do sossego acrítico. Mas, enfim, no livro estão reunidos os poetas que JMM mais admirou e, nalguns casos, odiou, faltando apenas, na admiração, Fernando Guerreiro, por incoincidência entre as publicações deste e a crítica daquele.
O trabalho crítico de JMM, fazendo autoridade, não é uma visão pura, desinteressada e omnisciente sobre a produção literária, sobretudo poética, portuguesa contemporânea. Devemos levar a sério o que disse numa entrevista a Hugo Pinto Santos (a quem dedica este livro) para o jornal Público em 2018: «Odiaria ser um totalitário do gosto». Mas creio que é incontornável, até para ajuizarmos contra ele, ler o que escreveu. Por duas razões principais: 1- é um bom sismógrafo poético, identifica as fendas criativas que foram aparecendo na poesia portuguesa, não todas, é verdade, mas muitas das relevantes; 2- tem um olhar certeiro, embora por vezes excessivamente cáustico, sobre o modo de ser, e parecer, português, um jornalista dececionado com os costumes, tanto os da elite académica da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa quanto os das famílias remediadas que ciosas do seu estatuto social se tornaram veraneantes no pós-25 de Abril, passando, claro, pelos jogos de receção (do silêncio à hagiografia) das produções poéticas (dos quais não se pode eximir). Além disso, constrói códigos de leitura para mais de 50 poetas, e muitas mais obras, que teremos todo o interesse, mutadis mutandis, em reutilizar, reconhecendo que não somos hermeneutas algorítmicos. E, por último, mas não menos importante, é um bom criador de sintagmas, desses que nos salvam o dia e autorizam acreditar no futuro, por exemplo: «mercenários do ideológicos»; «O fôlego incomparável dos que ganham sem correr.»; ou «Os grandes contributos de um poeta residem, quase sempre, mais num pequeno jeito com que ultrapassa a invenção dominante que lhe é anterior do que em longas páginas de conteúdos, latejos e insurreições.»
1200 páginas, Bestiário, c. 40€, mas há livrarias amigas.

O subtítulo de Um País Em Bicos dos Pés é Escritores, Artistas e Movimentos Culturais. Portanto, um livro de crítica estética e de crítica cultural, ou crítica de costumes. De como na criação estética se inventam e consolidam visões do mundo, por vezes mais precisas e importantes do que na produção científica que tem por vocação, sempre relativa e seletiva, descrever as coisas e as ações humanas (sociologia, história, filosofia, psicologia, geografia…). E Diogo Ramada Curto usa o título para nos dar um vislumbre decisivo sobre como as elites culturais portugueses desde Eça de Queiroz, é aí que decide começar a histórias dos bicos de pés, se elevaram (erguer seria um termo desajustado) sem saberem formar um verdadeiro salto, desses que entusiasmam o público porque os vê como trampolim para que o coletivo suba um degrau na escada da civilização. A inspiração veio de Jorge de Sena, que em Estrada Larga, há mais de meio século, dizia que «era necessário que deixássemos de ser um país de “anões em bicos de pés”, para, através do estudo, passarmos a ser “anões com dignidade”. Só então talvez se descobrisse “que não éramos todos anões, afinal”.» (Citei DRC).
A maior parte dos capítulos é composta por textos já publicados, sobretudo em jornais e revistas (principalmente, Expresso, Público e Contacto). Uma compilação, pois. Mas mantém-se um bom equilíbrio entre a atualidade e o poder de ultrapassar o que nela há de acidental, como Foucault pretendeu fazer na sua «ontologia do presente». São oito capítulos: 1- Eça, Batalha, Fialho; 2- Feijó, Laranjeira, Brandão, Marnoco; 3- Amadeo, Botto, Pessoa, Almada, Sarah Affonso; 4- Mulheres escritoras; 5- Intelectuais e artistas do Estado Novo; 6- Resistentes, pessimistas, lutadores; 7- Memorialismo, comemorações, história; 8- Um meio pequeno, a universidade, a cultura popular.
A introdução começa com: «Saber se há ou não uma mediocridade que nos sufoca é o propósito deste livro.» Um mediocridade alimentada pela falta de ousadia de pensamento, o que significa prescindir da liberdade de pensar. «O respeitinho pelo consenso». E isto é desde logo importante para desvelarmos no passado o código genético que marca o presente, mas também porque «através da análise do trabalho intelectual dos outros, encontramos os instrumentos necessários para o exame crítico do que é feito por nós». A crítica como motor da autocrítica. Sobre a metodologia, seguindo esta linha de raciocínio, escreve DRC: «criar distância, ganhando em objectividade, ultrapassando ideias feitas e fugindo a estafadas lógicas de comemoração.»
600 páginas, Almedina, c. de 30€, também aqui há livrarias amigas.