O admirador de Lobo Antunes

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Filipe Segundo de Loures, psicólogo sem formação académica, com consultório sediado na sua aldeia natal, junto ao chiqueiro dos porcos, criaturas que lhe haviam ensinado muito do que era preciso saber para o entendimento da psique humana, venerava de tal maneira António Lobo Antunes que, em determinado momento da sua abençoada existência, abancou no café da terra a copiar, linha por linha, o seu livro preferido, um pesadíssimo e complexo calhamaço que os seus conterrâneos confundiam com a Bíblia. Como sucede no conto de Borges, em que Pierre Menard rescreve partes de Dom Quixote, acabando por modernizar e até melhorar a obra de Cervantes, sem alterar uma única vírgula ao texto original, Filipe Segundo partiu para a aventura de copiar um livro com a vanguardista intenção de superar Lobo Antunes nas suas raríssimas limitações. Uma das primeiras frustrações com que o romancista-psicólogo se confrontou logo no início da empreitada foi a sua  própria pobreza lexical. Sentia-se em excesso o oitavo ano de escolaridade por concluir. Em vez de copiar palavras como “esdrúxulo”, como faria um progressista Menard, incluía palavras do seu próprio repertório, o que embaciava a pureza do texto original. Por exemplo, a dita palavra “esdrúxulo” convertia-se em “lambão” no manuscrito deste Lobo Antunes melhorado. O “derivado de”, tantas vezes posto por Lobo Antunes na boca das suas personagens, inspirou o encantador de porcos a substituir diversas dobradiças do texto por “derivado de”. Ao invés de se encontrar vocábulos como todavia, contudo, no entanto, etc., surgia o recorrente “derivado de”, como se a expressão pudesse ser usada como pontos finais. Segunda frustração, e talvez mais intensa do que a primeira, prendeu-se com o facto de Filipe Segundo de Loures não ter o hábito de ler. Captava porcamente o que lia. Tal como um inexperiente combatente de boxe, impreparado para resistir a dez assaltos contra um veterano pugilista, Filipe Segundo foi gradualmente perdendo o combate contra o calhamaço. Dez dias após ter começado a sua demanda pela regeneração literária nacional, saltava linhas, páginas, copiava o que lhe apetecia, dormitava no café, prolongava-se nas suas análises freudianas à populaça, inspirava-se mais nas suas prédicas aos porcos do que na escrita. Dois meses mais tarde, lembrava vagamente a ideia de copiar um livro de um autor que, em seu entender, fumava com estilo e dava entrevistas pejadas de mitos e auto-engrandecimento. Já não admirava Lobo Antunes. Muito, muito tempo depois, estava Filipe Segundo a fazer tratamento para a gripe, por via da ingestão de aguardente e chupadas de cigarro, quando recordou as razões pelas quais se imaginara a melhorar a obra do antigo ídolo. Aspirando a uma consagração mediática que o premiasse com uma loura russa tesuda que lhe consumisse toda a energia, só lhe permitindo abandonar a cama para comer, hidratar-se e mictar, Filipe Segundo de Loures acreditara que, reescrevendo a obra-prima de Lobo Antunes, sem lhe alterar qualquer palavrinha, teria não uma, nem duas, mas quiçá as russas que coubessem numa cama tamanho XL. Mas o talento desta periférica vedeta residia no tratamento mental dos vizinhos, na distribuição de conselhos matrimoniais, na aplicação de técnicas terapêuticas experimentais, como o degolar de galinhas para libertar a dor do paciente. Foi a Dona Ludmila, senhora viúva a padecer de solidão, que o salvaria das garras da literatura, beijando-o onde ele mais gostava. 

 

 

Livros dos editores (I)

Três dos editores da Enfermaria 6 trazem aqui alguns dos livros preferidos de 2017.

A lista continuará na próxima semana.

 

Victor Gonçalves

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean …

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean Wahl, Walter Kaufmann, Wolfgang Müller-Lauter), Dorian Astor mostra uma inteligência hermenêutica e um conhecimento da obra nietzschiana capazes de renovar o interesse, sem fetichismos, pelo solitário de Sils Maria. A sua escrita alia clareza e profundidade, o melhor de dois mundos, pois. 

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha te…

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha tecnologia de comunicação. Que tanto serve para tecer emoções como para geometrizar o mundo. Traduzir, expor o interior do corpo, refazer as relações sociais, programar o desaparecimento, repensar a escrita, anotar partituras, listar as tarefas diárias, versejar palavras banais... De tantos modos de escrever fala (ou escreve) esta obra. 

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicçõ…

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicções. Como se pode a partir de uma frase ou de uma imagem contaminar sem remissão a beleza e a grandeza da vida temerária. Um livro de história e um livro de antropologia, deixando que se encaixem nesses dois universais as pequenas histórias cheias de euforia e de disforia, uma a seguir à outra. Imprescindível. 

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) com…

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) comunista, um igualitarismo (pelo menos para a grande maioria) imposto à lei da bala e da prisão. Despir homens e mulheres da sua pele cultural e olhar directamente para as estratégias mais elementares, amorais, de sobrevivência, já sem raiva ou alimentados pelo espírito de vingança, em puro para lá bem e mal. E depois, uma extraordinária desvalorização da vida em favor da marcha da história, um caminho visionário que alguns acharam por bem, caprichosamente, elevar a lei cósmica. Uma Teodiceia ao contrário. 

Paulo Rodrigues Ferreira

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se sab…

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se saber estar no mundo sem a pessoa amada, apesar de todas as zangas e defeitos. Quinhentas e tal páginas, longuíssimas frases, reflexões sobre a vida, o amor e a dor, tudo para dizer que Sofía e Rímini não se conseguem afastar. Por mais que se afastem, estarão para sempre juntos. E acabam juntos. Este é um livro para leitores a sério.

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura…

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura, lê e comenta atentamente os seus próprios contos. Explica, por exemplo, que lhe interessa o universo do “fantástico”, na medida em que o fantástico é, ao contrário do que possamos pensar, algo que tem como objectivo fazer pensar. Acompanhar o pensamento de Cortázar é uma forma de regressar aos seus contos, de relê-los, de vê-los a partir de outros pontos de vista. 

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá…

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá-los, de não ter mais espaço, por exemplo). Em Manguel passamos de Homero a Borges sem darmos pela passagem de duzentas páginas. 

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o r…

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o resto que tenho lido. Este livro é uma criação genial de Piglia, uma investigação de Emilio Renzi, conhecida personagem ficcional, sobre um tio intelectual a tender para o libertário, que largou uma mulher rica para fugir com uma mulher de má fama e viver no mais puro anonimato. 

Tatiana Faia

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pr…

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pressão de regressar à América, ao destino convencional e medíocre a que primeiro tentara escapar. A Sport and a Pastime tem uma segunda parte aparentemente repetitiva, seguimos Dean e Anne-Marie, a rapariga por quem ele se apaixona, de hotel de província em hotel de província, noite após noite, em círculo, até que quando chegamos às últimas páginas entendemos que A Sport and a Pastime é um romance sobre a natureza e a fragilidade da felicidade, do veneno de sucumbir a convenções, abdicar de sonhos, abdicar de nós próprios, uma espécie de carta de resistência, tendo por cenário a beleza das pequenas cidades provinciais de França, intacta, espécie de sinal ao alto da potência da vida.

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian …

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian Past que a Paris Review, na entrevista feita ao autor, definiu como colossalmente sórdido. É um livro sobre os bairros de Paris mais afastados da circunferência imediata do Quartier Latin e do Boulevard Saint Michel. É de alguma forma um guia ilustrado sobre a formação da identidade contemporânea de Paris, particularmente concentrado nos séculos XVIII e XIX e nos bairros periféricos. The Other Paris é povoado de flânerie, personagens bizarras, ruas e cafés onde se deram os encontros e os acontecimentos mais estranhos. Um livro indispensável, não só porque amar Paris é indispensável, mas porque cada ano merece pelo menos um belíssimo livro sórdido.

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um …

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um olhar crítico à precariedade de Inglaterra para pensar no valor da arte, da fotografia, da cultura em criar pontes entre as pessoas, em treinar a empatia. É um livro fundamental sobre a ligação entre actos de decência básica, ausência de preconceito, beleza e amizade. Neste país tão amado, que parece à superfície estar condenado a virar-se para dentro, há aqui um voraz olhar para fora, acto sem o qual nunca estaremos exatamente vivos. Redescobrimos ainda aqui a arte das colagens de Pauline Boty. 

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por …

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por terminado, num desses processos de escrita que são afinal o que a expressão “o poema contínuo” pretende definir, a noção de uma obra nunca acabada, que continua a trabalhar no autor muito depois do ponto de publicação. O título é uma alusão ao facto de todas as histórias se passarem dentro dos muros de Ferrara. Escritas no pós-guerra, quase todas as histórias são marcadas pela memória violenta desse período. A vida de uma cidade de província que é uma epítome da história da Europa, da história do mundo. Num dos contos lê-se: “The truth is that the places where you have wept, where you’ve suffered, where you’ve had to find the many inner resources to keep hoping and resisting, are the ones you grow fondest of.” Assim Ferrara para Bassani. 

Morto está o cavaleiro

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O ciúme de Geraldo despontou com uma ligeira irritação, uma implicância contra as idas da esposa ao ginásio, contra a eternidade por ela despendida na banheira a espargir loções e em frente ao espelho a borrar-se de maquiagem. Medrou a irritação quando ela se dedicou a citar amigas, filósofas de café munidas de verdades absolutas sobre a felicidade. Torcia o nariz, não lhe cheirava, andava ali coisa. Em conversas antigamente irrelevantes passou a detectar incómodos sinais de mentira e de traição. Canções ligeiramente diferentes das habituais a tocar no quarto deixavam-no a suspirar. Se  ela demorasse meia-hora a mais no trabalho, visualizava-a numa diversão louca com os amigalhaços, talvez até a deixar-se apalpar e sabia-se lá mais o quê. O telemóvel dela tocava. Ela nunca largava o maldito telemóvel, noite e dia nas mensagens, a rir com a face pintada alumiada pelo ecrã. Geraldo engolia em seco, cerrava os olhos, abstinha-se de gritarias nocturnas, mas ruminava, encolhia-se debaixo dos lençóis e praticamente não dormia. Um pesadelo funesto, no qual a dondoca surgia em cenas indecentes, cenas de puxar o vómito, deixou-o colado uma noite inteira ao maço de tabaco e a uma chávena de café, inválido sequer para acrescentar uma frase ao livro que andava a escrever. Sempre com dificuldade em encontrar editora para os seus originais, enegrecido pelo anonimato e por uma pitada de mediocridade, Geraldo era escritor fracassado, escrevia pouco, e o pouco que escrevia apenas com os olhos de dois, três amigos se cruzava, e sem grande entusiasmo.  Abandonava a ideia de ser escritor.  A realidade era dura. Pesava-lhe não ser outra pessoa. Os dias passavam com o bicho a contemplar cada vez mais a solidão, o sofrimento eterno e a imagem de uma mulher que, talvez sentindo-lhe asco, nem um beijo na boca lhe autorizava. Quis escrever sobre a sua situação, sobre a mulher, a cadela. Desistiu antes do início. Perseguiu a mulher. Uma, mil manhãs atrás dela. Seguia-a de táxi, via-a entrar e sair de cafés, a lançar beijos e adeuses a um e outro macho, e chorava por tristeza ou por não saber reagir de outra maneira. O taxista que o guiava, um careca com sotaque russo pouco apreciador de cenas melodramáticas, um dia trancou as portas do carro, palmilhou milhas, tantas milhas, e parou num sítio deserto no qual unicamente existiam um burro e um balde de água. “O burro, um irmão espiritual, é teu. A água é para te hidratares pelo caminho.” Com estas proféticas palavras foi Geraldo largado junto ao novo amigo. Durante a árdua jornada de regresso, feita metade a pé, outra metade montado no burro, Geraldo meditou sobre a sua vida, concluiu que era fútil sofrer pela fama, carpir pelo que não lhe pertencia, angustiar-se por situações pequenas. A partir de Marte não se avistava a mulher a dançar lambadas. Dormiu uma noite encostado ao burro. Escreveu mentalmente a melhor das história e retornou à superfície, determinado a ser um escritor a sério,  a viver como um homem digno. Mudou de cidade.  Apagou a mulher, suburbana, vã, da memória. Comprou uma palhota no campo e escreveu, atulhou o baú de manuscritos, e tratou do burro até morrer, sem ter voltado a pensar em mulheres e em fama. Se isto tivesse sido verdade. Se Geraldo tivesse conhecido o russo. Se o burro. Se não tivesse engolido tantos calmantes. Que pena, amar.   

 

Dois poemas de Daniel Francoy

RAÇÃO MÍNIMA DE ESPANTO

 

Ração mínima de espanto
o dia vence com a sua parcimônia:
magra miséria, revolta
que é apenas raiva, ternura
nostálgica, degenerada.

Hoje reunimo-nos em assembleia
para decretar a morte dos escorpiões
e o amor fracassado pelos pássaros
rápidos como o fogo: dourados, sanguíneos,
uma mancha incendiada, um gorjeio
contra o silêncio morto da tarde.

Tenho a esperança do terror puro,
abismo de susto, mas o luar
é um delírio visto todas as noites;
algo como uma rouquidão desafinada
de uma voz que, veludo, é o breu noturno
e ainda há outras formulações possíveis:
o luar é o fracasso do céu
preso às minhas mandíbulas
e é a potência de meus dentes crispados
- vontade sonâmbula de mastigar -
abocanhando fiapos de tédio.

Fracasso em sonhar que sou Van Gogh.
Desconheço a metamorfose do fogo.
No espelho, o rosto é o rosto
que encarei antes de adormecer
enquanto escarrava sangue
contra o mármore da pia.
Em minhas mãos espalmadas, os dedos
alongados são franjas de espuma
e se fecho as mãos, retendo o vazio,
é como se eu sepultasse
um embrião que é vento e desespero
e se calo é porque estou órfão do horror
de exibir o meu rosto mutilado aos homens do meio-dia.

 

 

PÁSSAROS

 

As gaivotas não são brancas
como aquelas que aparecem em poemas: são
pássaros sujos em praias impróprias para o banho.
Disputam o que os turistas oferecem
e morrem nos canais onde a água poluída
com o mar se confunde – imundície
a espelhar o arrebol.
E há o abutre morto à margem da estrada.
Encontrei-o no amanhecer, indistinto
da terra e da relva massacradas.
Sei que o reencontrarei no entardecer
e talvez eu o nomeie melro.

Adam Zagajewski, "Sobre a minha mãe"

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

 

Sobre a minha mãe nada saberia dizer – 
como ela repetia, vais lamentar o dia
quando já cá não estiver, e como eu não acreditava
nem em  “já” nem em “não estiver”, 
como eu gostava de observar quando ela lia um romance na moda, 
espreitando logo o último capítulo, 
como na cozinha, convencida que não é  
um lugar apropriado para ela, preparando o café de Domingo, 
ou, pior ainda, filetes de bacalhau
como espera a chegada dos convidados e se observa no espelho, 
fazendo esse rosto que eficazmente a protegia  
de se ver a si mesma como era (o que, parece, 
herdei dela, como algumas outras fraquezas), 
como, depois, facilmente discursava sobre coisas
que não eram o seu forte, e como eu estupidamente
a irritava, como quando ela
se comparava a Beethoven, ensurdecendo, 
e eu disse, cruelmente, mas sabes, 
ele tinha talento, e como me perdoava sempre tudo
e como eu o recordo, e como voei de Houston
para o seu funeral e como nada soube dizer, 
e ainda não sei.