muhammad ali canta “stand by me” em 1963

como amantes
inexperientes, dançam.
sem querer
trocam os passos
é comovente a beleza
desse desequilíbrio
frágeis e zonzos
mas inteiros por dentro,
vê como balançam:
a equação matemática
de um movimento
que apesar de limitado
pende para a eternidade

os locutores implacáveis
em plano de fundo
comentam por cima da multidão
first real signs of weirdness;
first real signs
e numa curva
dorsal perfeita
um deles deixa que as cordas
cedam ao peso do corpo

o bailarino
chega a pensar
talvez o sino
me salve
mas isso
raramente acontece
e a valsa transforma-se agora
num quadro de caravaggio
retratando em traços de luz
a dignidade de quem contudo
se deixa bater até ao fim

agora que pode livre
cuspir o sangue dos golpes
fecha os olhos
sente ao longe o ritmo do contrabaixo
quente como a pele de um corpo
depois do embate
quando os vasos sanguíneos pulsam
a todo o vapor procurando vida
acima de qualquer ferida mais óbvia

enquanto a multidão furiosa
faz coro interior sem saber
muhammad ali discretamente sorri
e canta numa frequência infra-humana
stand by me,
stand by me,
stand by me.

  1. https://www.youtube.com/watch?v=BtIF0OqRnOE&start_radio=1&list=RDBtIF0OqRnOE

  2. A frase “first real signs of weirdness; first real signs” foi na verdade retirada da gravação de um combate entre Mike Tyson e Evander Holyfield.

2 Poemas de Jacques Dupin

Tradução: Vítor Teves

Desde que a minha palavra seja obscura ela respira
 
seus braços mergulhados na água gelada
entre as algas verdes de outras presas
geladas como as lâmpadas no dia
 
Tão pouca realidade alcança os vivos
lança violência ou a semeia
arduamente sobre a pedra e as águas
 
o céu esticou a escansão dos martelos
alguns entre nós entramos intercedendo
para produzir novas nuvens
 
……………………………………………………………………
 
Aberta em poucas palavras
como por um remoinho, numa qualquer parede,
um recesso, nem mesmo uma janela
 
para manter a pouca distância
esta região da noite onde o caminho se perde
 
exausta uma palavra nua
 
………………………………………………………………………

 

Tant que ma parole est obscure il respire
 
ses bras plongt dans l’eau glacée
entre les algues vers d’autres proies
glacées comme des lampes dans le jour
 
Si peu de réalite parvient au vivant
qu’il fasse violence ou qu’il séme
hardiment sur la Pierre et les eaux
 
le ciel tendu la scansion des marteaux
quelques-uns parmi nous sont entres intercédant
pour produire de nouveaux nuages
 
……………………………………………………………………
 
Ouvert en peu de mots,
comme par un remous, dans quelque mur,
une embrasure, pas même une fenêtre
 
pour maintenir à bout de bras
cette contrée de nuit où le chemin se perd,
 
à bout de forces une parole nue

 
                                            De: “Cops Clairvoyant” (1963-1982) (Gallimard,1999) /

                                                   “Corpo Clarivedente” (1963-1982) (Gallimard,1999)

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Retrato de Jacques Dupin por Alberto Giacometti, 1965.

Postais de Boas-Festas

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Há muitos séculos, a cultura semita decidiu transformar os ritos pagãos do solstício de Inverno numa narrativa mais encantatória. Havia palavras e gramática suficientes para essa revolução, e é sabido que sempre que pode haver uma revolução, há. Assim nasceu o Natal (faço uma filologia à la Nietzsche), outra forma de enaltecer as conjuras astronómicas que travavam o avanço da escuridão.

Primeiro, quando ainda éramos biológicos, celebrou-se a emergência da vida e a fortaleza da família ou da tribo. Depois, pouco a pouco, sob o impulso de um cristianismo cada vez mais metafísico, desfiaram-se chamamentos ao Além, misericordioso e enigmático. Continuou-se a louvar a vida, mas era de outro tipo, descarnada.

Finalmente, vieram as generosidade e bondade, sem moderação, ligadas a coisas humanas, demasiado humanas. O festim gargantuesco substituiu qualquer resquício de espiritualidade (mais do que religiosa), agora arremessamos prendas uns aos outros e comemos até à sobre-saciedade. Há, é verdade, uma brisa de mudança no ar, parece insinuar-se uma nova frugalidade, mas está longe de ser relevante.

É neste quadro (talvez imitando Francis Bacon) que me permito desejar-vos, queridos leitores, boas-festas. Se possível retomando a embriaguez original do ciclo lunar, quando ainda se sentia um aperto explosivo no coração porque o dia tinha resistido ao progresso mortífero da noite.

Victor Gonçalves


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O Natal é também um ritual de transição. Todos os anos bebemos à pessoa que fomos nos últimos doze meses, com mais ou menos alívio de abandonar esta pele, abraçando o que é novo com mais ou menos sofreguidão. Celebremos os que já não estão connosco à mesa. Sejamos preguiçosos. Tiremos uns dias para ver filmes, para ler livros, para passar tempo com aqueles que amamos. Talvez façamos menos merda no próximo ano. Talvez seja possível sermos melhores. Para todos um Feliz Natal e um bom 2019.

José Pedro Moreira


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Fra Angelico pintou esta Anunciação em meados do século XV e pode ser vista no Convento de S. Marco em Florença. Não sei se alguém alguma vez escreveu algumas linhas sobre o desastre que este fresco parece ser em termos de linguagem corporal da Virgem. “Porquê eu??, meu Deus!!,” é o que todo o corpo dela diz. O rosto dela deveria expressar a gravidade do momento e a sua inata bondade, a humildade que recai sobre os escolhidos para um dever que em muito ultrapassa as suas capacidades. Mas há na postura do corpo qualquer coisa de defensivo, como implícito nos braços cruzados e que não encontra eco na postura do anjo (embora os braços dele estejam na mesma posição, o corpo inclinado para a frente sugere mais ataque do que defesa, e os braços cruzados são um reconhecimento da tensão no corpo da Virgem). E, no entanto, qualquer coisa no rosto dela trai o princípio de uma abertura.

A vida, assim o prova o ciclo de um ano, está cheia de situações impossíveis, tensas, imprevistas. Politicamente o ano foi um desastre. O mundo é um lugar menos aberto. Restam-nos os pequenos mistérios, a felicidade que existe em coisas inesperadas, a possibilidade de não nos fecharmos no nosso lugar, de querermos viver entre as coisas que nos ultrapassam. E talvez até isso que um frade nascido na periferia de Florença há mais de seiscentos anos entreviu ao pintar as asas coloridas deste anjo doce e um pouco efeminado: o lado misterioso das mensagens que os outros nos trazem, a adequação do imprevisto enquanto resposta tanto para os perigos quanto para as monotonias da existência (se nós não cairmos no desespero ou na indiferença quando eles nos calham), a urgência da vida que nos varre com ela.

Não me apetece decidir muita coisa para 2019, ainda que isso seja mais ou menos inevitável: depois desta breve trégua, o ano novo virá com os seus velhos combates e as suas parvoíces renovadas, mas um dos melhores poemas que li este ano (em Fuck the Polis de João Miguel Fernandes Jorge) acabava com dois ou três versos em que se podia ler qualquer coisa como: come a tua comida, lê os teus livros, vais continuar a existir. Pode existir entre o lado forte do mundo, que ataca, e o lado que se defende, alguma ternura, uma aliança de onde algo de melhor possa vir.

Que sempre que penso na Virgem, grávida sem querer, também pense que o mundo precisava de uma Anunciação pintada por Paula Rego é matéria para outro postal.

Tendo dito isto, um excelente 2019, meus caros leitores!

Tatiana Faia


Que este ano o Natal seja sinónimo de alienação para todos: vivam as fantasias, vivam as desconstruções, mas vivam sobretudo as alienações: é daqui que nasce o caos e do caos também nascem flores.

João Coles

Porto Ainda 

Tenho levado repetidas vezes amores à nossa cidade, 
Todos acabaram por se perder, ao contrário do que de ti 
Ainda uso em sonhos, lá fui feliz com elas, dias de Sol, 
A cidade contigo aparece-me sempre cinzenta, 
Mesmo assim preferia ter recebido das tuas mãos 
O prazer que trocamos em crepúsculos dourados, 
Estranhamente não encontro mais as nossas ruas, 
Não sei mais se é a cidade que não é a mesma ou eu, 
E tu apenas a recordação ridícula de um pedaço de caminho, 
Fundo como o vento, devias estar com o que já passou, 
Estranho-me quando penso que as espelhei no rio, 
Uma a uma, ainda com os seus sabores na boca, 
Como comparando-as com o que mais amei 
Daquela cidade, a vontade do teu desejo triste. 
 

17.12.2018 

Turku

"Maria" de Bertolt Brecht - um poema de Natal

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Maria

A noite do seu primeiro parto tinha sido
Fria. Nos anos seguintes, porém,
Esqueceu inteiramente 
O gelo nas vigas da mágoa e a fornalha fumegante 
E o sufoco das secundinas pela manhã.
Mas mais do que isso, esqueceu a vergonha amarga
De não estar só
E que é tão própria do pobre. 
Principalmente por isso,
Anos depois fez-se festa, na qual
Tudo havia.
O grulhar cru dos pastores calou-se. 
Mais tarde, a história fá-los-ia reis. 
O vento, que era muito frio,
Fez-se canto dos anjos. 
Sim, do buraco no teto por onde o gelo entrava, ficou apenas
A estrela que por aí espreitava.
Tudo isto
Veio do rosto do seu filho, que era simples,
Amava o canto,
Chamava os pobres até ele,
E tinha o hábito de viver entre os reis 
E de ver à noite uma estrela pairando sobre si.


Maria

Die Nacht ihrer ersten Geburt war 
Kalt gewesen. In späteren Jahren aber
Vergaß sie gänzlich
Den Frost in den Kummerbalken und rauchenden Ofen
Und das Würgen der Nachgeburt gegen Morgen zu.
Aber vor allem vergaß sie die bittere Scham
Nicht allein zu sein
Die dem Armen eigen ist.
Hauptsächlich deshalb
Ward es in späteren Jahren zum Fest, bei dem
Alles dabei war.
Das rohe Geschwätz der Hirten verstummte.
Später wurden aus ihnen Könige in der Geschichte.
Der Wind, der sehr kalt war
Wurde zum Engelsgesang.
Ja, von dem Loch im Dach, das den Frost einließ, blieb nur
Der Stern, der hineinsah.
Alles dies
Kam vom Gesicht ihres Sohnes, der leicht war
Gesang liebte
Arme zu sich lud
Und die Gewohnheit hatte, unter Königen zu leben
Und einen Stern über sich zu sehen zur Nachtzeit.