Cinco Postais da Pandemia

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1.     P. é uma médica reformada oriunda de Navarra que vive há quase três décadas em Oxford. P. para mim foi sempre P., sem sobrenome. Fomos colegas a italiano. Sentávamo-nos ao lado uma da outra e começámos por falar da estátua do pintor à entrada do El Prado em Madrid e nunca mais parámos de falar sobre museus, quadros e pintores e raramente ouvíamos a aula, competíamos a ver quem conseguia ser mais douta e mais pedante. Ela tem um conhecimento enciclopédico dos pintores mais obscuros do Renascimento italiano e do Barroco espanhol que a mim me inspira uma admiração profunda e uma inveja de morte. Nunca tive a mínima hipótese. Desisti em desonra do italiano porque esta competição com P. me irritava infantilmente, mas paradoxalmente continuei a encontrar-me com ela. Isto foi por acidente, mas todas as quintas e sextas-feiras depois das três da tarde na livraria Blackwell’s em Broad Street durante quase dois anos nos sentámos e bebemos café juntas. Ela estava lá sempre àquela hora e eu também. Tenho feito umas quantas amizades assim. Começámos com um tímido aceno, ambas admitimos que nos intimidava um pouco a colega que se sentava na nossa fila nas aulas, uma americana do Texas que tendo chegado à crise de meia-idade, e num assomo de aborrecimento que talvez desafie alguns estereótipos de género, convencera o marido, um multimilionário do petróleo, a comprar-lhe um iate de inspiração faraónica. Mas nem o iate a curara do tédio e do medo da morte. Daí ela ter vindo estudar italiano e empatar as minhas conversas com P. Da primeira vez que bebemos café, perguntei a P. que problema lhe resolvera a ela o italiano, assumindo que não fora algo como um iate. Ela saca da cópia dos I Promessi Sposi, põe o calhamaço em cima da mesa, e confessa-me que amou Manzoni a vida toda e também que agora ninguém a bate no clube do livro italiano que se reúne na Waterstones (a livraria que concorre com a Blackwell’s – sem sucesso) a cada mês.  Ri-me muito e ambas nos sentimos alegres por aquelas pobres almas de estudantes pretensiosos do segundo ano de direito, enviados de Harvard e de Princeton, e de professoras primárias em pré-reforma nem terem ideia de como P. lhes ia cair com o Manzoni em cima. Ela pergunta-me que problema queria eu resolver com o italiano, eu respondo-lhe que uma nostalgia sem raízes pelo sul, da qual no entanto, sendo hipócrita e do contra, já sofria quando vivia no sul, uma nostalgia do sul mais a sul ainda do que qualquer fado, flamenco, rembetika ou tarantella, isso e Montale, Bassani, Ginzburg e Pasolini, a minha sagrada trindade mais um. Um dia foi P. quem me emprestou um livro de Miguel Hernández, o primeiro dele que li, e uma vez declamou de olhos fechados, cobertos de um espesso rímel azul, uma secção inteira dos Campos de Castilla, que eu nunca ouvira dito em perfeito castelhano. Em dois anos nunca percebi que nunca tinha pedido a P. o seu número de telefone, nem nunca tive o email dela, porque o professor, um siciliano discreto e ferozmente inteligente, oriundo de Catania, nos enviava os emails com toda a gente em BCC. O professor arranjou um emprego na Califórnia e não aparece em lado nenhum se googlado. Foi por isso que no princípio do confinamento, quando lhe enviei um email em desespero de causa para o seu antigo email da universidade, ele veio devolvido. Era um email onde lhe pedia o contacto de P. Não me lembro de mais ninguém naquele curso a quem pudesse pedir o contacto de P. Vai para três meses que a livraria está fechada e nada sei de P.

 

Cy Twombly, Study for Achilles Mourning the Death of Patroclus, 1962

Cy Twombly, Study for Achilles Mourning the Death of Patroclus, 1962

2.     A última vez que entrei num museu foi no dia 7 de Março. Foi no British Museum e eu sentia-me vagamente doente. Apanhei um comboio cuja estação terminal é menos frequentada do que os comboios que correm muito mais rápidos entre Oxford e London Paddington, negando-me assim a alegria fácil de ir olhar a estátua do urso. Talvez esse tenha sido o primeiro hábito que a pandemia me interrompeu. Ursinho Paddington, herói estrangeiro de uma Inglaterra acolhedora que não vota nos conservadores e não aceita a xenofobia, com o seu duffel coat, a primeira espécie de casaco que comprei em Inglaterra, no meu primeiro inverno inglês, de longe o mais deprimente de todos, tão gasto de eu andar de bicicleta com ele que foi remendado três vezes até desistir de vez. 8 de Março foi o último dia da exposição sobre Tróia no British Museum. Já então o museu estava quase vazio e uma certa aura fantasmagórica permeava Londres. Atravessei uma Bloomsbury semi-deserta, com Virginia e Leonard em mente. Vai para três meses que não atravesso Bloomsbury, porque não conduzo e não quero entrar num comboio se o puder evitar. Nessa exposição de Tróia queria ter-me lembrado de em tempos ter amado perdidamente Homero, foi disso no fundo que fui à procura, mas nos vasos muitas camadas de tempo se confundem, aquelas que os versos desses poemas tocaram, que vão mais ao menos do século XIII a.C. (confiando em Eratóstenes) até ao presente, um tempo que a exposição ora estratificava cortando-o em finas fatias de rígida sucessão cronológica, ora confundia para enfatizar certos eventos e certas personagens. Mas não me queixo, à entrada um verso de Catulo lembrou-me que também Catulo amou Homero. Como me podia eu ter esquecido daquele verso, recordado naquela chuvosa manhã de Março, quando viajei em comboios semivazios, cheios de uma aura de clandestinidade, como se Londres estivesse a adoecer inteira do lado errado do pulmão do mundo? À entrada havia um dos quadros de Cy Twombly do ciclo da raiva de Aquiles, que eu não sabia que era um ciclo. Vi dois desirmanados em Paris, talvez em 2015 e agora este (quem sabe quando e como me encontrarei com o próximo?). Na tela branca o perfil triangular de uma imensa seta atravessa a marca da sua própria haste para se tornar vermelha na extremidade, a promessa da ebulição e da gota que faz transbordar o copo. Vai para três meses que não atravesso nenhum limite nem ofendo ninguém nem nenhuma paixão mortal me fere.

Cy Twombly, Vengeance of Achilles, 1962

Cy Twombly, Vengeance of Achilles, 1962

3.     Swoon. Em Swoon todos os empregados de balcão são jovens e excessivamente musculados e todos têm um ar infeliz. Como se todos merecessem ter sido empregados de um pub hipster no Soho, mas tivessem ficado em segundo lugar nessa entrevista e tivessem acabado em Swoon como castigo. Mas alegram-se um pouco se não somos chatinhas, se não os tratamos como se fôssemos os clientes mais tristes deste mundo, e se lhes dizemos que também nós estamos cansadas e aborrecidas de morte, que só queremos uma overdose de açúcar e cafeína para chegarmos ao final da sexta-feira com uma taxa de zombismo de menos dez por cento do que o habitual. Eles riem-se e parecem menos zombies também. Mas serve este pormenor para lembrar que o mundo corre a um ritmo insustentável, que de um modo ou outro mutila as pessoas. Essa é outra forma de vírus mortal. Em Oxford, quem percebe alguma coisa de café e gelado, acaba no Swoon, que estando em High Street, parece uma armadilha de turistas, mas não é. O Swoon é o território de duas amigas, I. para comer gelado e beber chocolate quente todo o inverno, e C., para beber café que vem de Nápoles e que, ambas concordamos, não é água de lavar pratos. A minha amizade com I. variou muito ao longo do tempo, falamos de tudo e mais alguma coisa, livros, plantas, o trabalho, o medo de estar vivo, mas há na minha amizade com I. um fundo do mais profundo amor, como aquele que une irmãos. Mesmo quando nos afastamos, ela faz-me sempre falta, e preocupo-me sempre em saber se ela está bem. I. não pode sair. Uma mistura de falta de indicações médicas claras sobre a doença crónica que a afecta e o potencial efeito do vírus sobre a sua imunidade significam que o mundo está interrompido para I. há três meses. Há três meses que I. não sai de casa. Faz-me falta o riso de I., o seu amor cego e ansioso pela Juventus, a sua inteligência rigorosa, preocupada em tentar concertar algumas das injustiças no meio das quais vivemos, a sua prudência, que ela acha ser uma forma de pessimismo. Faz-me muita falta abraçar I., ela que me ensinou o abraço psicopata (à distância mantendo apenas os braços abertos) antes disso ser moda, quando confundíamos o estarmos sobrecarregadas com uma misantropia digna de caricatura. Com C. falo de literatura avant-garde, que se lê em Paris ou Nova Iorque e de cidades distantes. C. apaixonou-se sem saber bem como, a meio da pandemia, por um realizador de cinema que filma sonetos shakespearianos em clipes de trinta segundos, contra planos de duas cores que mudam à medida que os segundos avançam, e cujas tonalidades são inspiradas nos quadros de Rothko. C. diz-me que de repente tem muito menos medo do mundo, porque esta crise demonstra que ele não pode ser evitado. Explico-lhe que me faz falta o barulho das máquinas de café e que às vezes alucino com esses sons e que no outro dia me apanhei a meio de uma noite de insónia a pesquisar em sites descrições e explicações da origem dos vários tipos de som que as máquinas de café fazem. George Steiner morreu no princípio deste ano de 2020. O meu livro favorito dele é The Idea of Europe.  

4.     Os cavalos começaram a aparecer alguns dias depois da ordem do confinamento, quando nos passou a ser permitido passar apenas uma hora por dia na rua. Atravessam as ruas do bairro quase de madrugada e voltam ao fim do dia. Os cavaleiros vêm vestidos com um equipamento que parece ser o dos guarda-redes do hóquei no gelo. A primeira vez que os vi foi numa manhã muito cedo enquanto bebia café e olhava pela janela. Ouvi os seus cascos ao longe até que eles se começaram a ver ao fundo da rua, lentamente, em passo de passeio. Os cavalos, preciso de me lembrar, não são os do apocalipse, o seu dom não é o da profecia nem o dos finais violentos, vêm do hotel de cinco estrelas, junto a Abingdon Road. Nenhum carro atravessa a estrada principal durante horas e só se ouvem os cavalos. Escuto-os nervosamente, são o primeiro sinal de que o tempo enlouqueceu com uma quietude profunda. Este som terá cortado estas mesmas ruas quando em Praga no final da segunda década do século passado, Kafka adoeceu com a gripe espanhola, da qual não veio a morrer. A estrada alcatroada é agora toda dos cavalos. Também eu caminho a pé pelo meio da estrada, ou pedalo cegamente entre Oxford e as pequenas vilas que a rodeiam. No frio das madrugadas em Março e em Abril, às vezes só eu de bicicleta, e os cavalos esguios como em El Greco, ou como um quadro surreal ou esgueirando-se pela margem de uma loucura literata como num episódio no D. Quixote. De noite, sonho com os meus mortos, com o meu irmão, e os meus tios, e os meus tios-avós, e os meus avós, sepultados num cemitério de província, completamente de um sul rural, noutro país, e com os cortejos fúnebres de carruagens puxadas a cavalo de uma infância de colegas de escola afogados nos verões de um rio que está agora longe o suficiente para se fazer passar por mitologia. A pobreza do campo é outra pandemia mas não há já motas em Abingdon Road que me devolvam o som da infância, só cavalos, e o café dos Portugueses fechou, nem sinal dos dois irmãos, nem das suas mulheres, nem bicas, nem bolas de Berlim, nem pastéis de nata congelados, na arca frigorífica, duas prateleiras abaixo das garrafas de Old Speckled Hen. Caminho para o norte da cidade para comprar farinha aos italianos, beringelas e vinho aos gregos, o meu patriotismo é pouco nacionalista, mediterranicamente incoerente. A loja tornará a abrir, mas muito mais tarde, e em Junho. À data em que escrevo estas notas, o café segue fechado. Os cavalos são os do hotel de cinco estrelas mas são também os de Guernica, os seus olhos uma revelação larga e contundente de uma luminosidade misericordiosa para lá dos candeeiros, cujo fulgor é de ordem explosiva, quando eles reprimem a sua velocidade rente aos ramos das macieiras, são por isso o eco distante de paixões homicidas, que antecipam uma península banhada em sangue. A Península Ibérica está sempre comigo, agora que me vejo num longo cerco de água por todos os lados menos aquele que me liga à extensa massa de um continente. Isto é má prosa. Abro a janela para deixar entrar o céu, as vozes dos pássaros, os cascos dos cavalos. Em Os Três Verões de Margarita Liberaki os olhos de Infanta enchem-se de lágrimas, da primeira vez que ao galopar cegamente o seu cavalo, Romeo, ela pressente que jamais se poderá libertar da sua própria quietude. Para matar a monotonia deste tempo, no pequeno apartamento de Marlborough Road, enchi de cavalos e livros o ar. É esta quietude mental o que também eu não me posso perdoar, e já vinha de antes.

 

5. Quando o mundo era ainda normal, E. publicou um livro sobre arquitetura da época clássica à contemporaneidade que a tornou famosa. É por isso que quando em Janeiro ela veio de Paris a Oxford para dar três conferências e várias entrevistas a todo o tipo de jornais famosos nos divertiu que ela ficasse em minha casa, no sofá mais velho e desconfortável de toda a cidade. E. vinha um pouco doente de amor pelo colega que a tinha convidado, cujos textos ela tinha lido e admirado à distância, um arquitecto alto, belo e sabido, como os piratas venezianos que fizeram fortuna nas costas da ilha onde ela nasceu. Eu disse-lhe, E., isso vai dar merda. Ela disse-me, “eu sei, eu sei.” E. disse-me, quando me rio sinto que o meu riso carrega já a ponta da dor que isto me vai dar. E. não dormiu quase noite nenhuma no sofá azul desbotado, e voltou para Paris ferida de amor e da tonta alegria e à medida que os países se fecharam, a partir do receio de uma separação, da morte precoce de algo que ainda mal tinha começado, veio do colega pirata a namorada do Canadá, que não estava neste enredo, e ele deixou de responder a E., em poucas semanas deixou de lhe falar completamente. E. diz-me, vejo as vedações dos jardins fechados e as magnólias que florescem não podem curar a minha pena, quero abraçar-me às árvores e desaparecer e florescer de outro modo, quero que o som da primavera à minha volta cure depressa esta coisa que dói sobre o peito como um afogamento. A primeira morte é de amor e parece que custa sempre mais do que outra qualquer. À medida que ele dorme no seu silêncio distante, o mundo para mim esvazia-se. E. escreve-me este tipo de coisa mais ou menos constantemente. Nos Jardins do Luxemburgo, nas tardes que se vão tornando de sol, ninguém se senta nas cadeiras verdes vazias, junto às fontes, e cruelmente o rumor da água recorda-me a voz dele. O problema do meu amante efémero é que no seu desaparecimento ele permanecerá misterioso como um fauno. E. telefona-me um dia ao fim da tarde e diz-me que de madrugada pedalou até ao Arboretum de Paris e saltou a vedação para abraçar uma das magnólias. Eu queria falar-lhe de Perséfone, da morte que Deméter dá às flores e aos frutos quando Hades, o amante, faz a sua filha desaparecer no Inferno para a desposar, e tudo volta a renascer quando a filha pode regressar. O casamento de Perséfone são seis meses no Inferno com o marido e seis meses na terra com a mãe. Mas ela diz-me antes que o guarda do Arboretum a apanhou em trespasse e queria chamar a polícia, em vez disso contentou-se que ela a ajudasse a regar, salvaguardando as devidas distâncias, as laranjeiras e outras árvores que pedem pequenos cuidados. Agora de manhã cedo e ao fim das tardes E. regressa ao jardim para se estender e se desapaixonar de ouvido colado à terra. Ela diz-me, o rumor de Perséfone que parte e regressa pode ouvir-se no rumor das plantas, de ouvido colado ao chão, estou a tentar respirar com a terra.

Escadas com Mimosa, Pierre Bonnard, 1946

Escadas com Mimosa, Pierre Bonnard, 1946

CAMALEÃO - Oferendas I

“é animado por essa sua capacidade de se anular que o

poeta pode entregar-se a essa pluralidade de corpos ou

criaturas”

- Manuel Gusmão a prepósito de John Keats.


“Aponto, logo multiplico-me.”

- Vítor Teves

                ESPIGA

 

a João Miguel Fernandes Jorge

 

Infestação

por ELE

renovada.

 

Volta às pedras

`as romarias

armas.

Enche

na passagem

o rosto

muralhado.

 

Deixa cair o pálido

rico olho

nos cinzeiros de

prata.

 

Queima os dedos

Recanta!

Portugal Eunuco

                                            a Jorge Sousa Braga

Este é o país que sonhou ser um colosso.

Um país onde dormir ao sol e comer caviar seria possível

no último grande shopping da Aldeia.

Um projeto de país onde as rãs saltitam aqui e ali nas escadas do poder.

Uma poça que sonhou ser lago:

País   País    País    País

um cântico de rãs.

A rã do quinto direito, a do olhar de lado,

        a rã do meu chefe, o do papo à galo,

a rã do professor, o que só versa em latim,

        a rã da minha prima, a gorda arrogantemente estúpida,

a grande rã da preguiça, a do ler e do pensar,

          e todas as outras rãs.

Rãs do lago de Aristófanes. Quem?

Rãs que mortificam

Rãs que amordaçam

Rãs que prendem

Rãs que nada fazem a não ser serem rãs: Carnívoras, venenosas, pegajosas.

Rãs que à falta de tomates fizeram do cérebro uma bola de futebol.

E no vazio do crânio o vácuo é a ilusão da inteligência.

*

Portugal é um quarteirão de vários quilómetros no inferno de Dante.

*

O verde da inércia, um certo tipo de verde, não é o verde daquela

paisagem cheia de milhafres, gansos e cedros.

Daquele lago azul onde passei a minha infância.

Hoje só me resta mar dentro de mim e cagarros.

 

É urgente cantar a natureza outra vez, queimar as interjeições e das suas cinzas criar

uma nova água de pensamento.

Límpida, pura e com traços da última impressora.

É urgente ensinar isso

numa linguagem direta

e crescer crescer crescer até ao mais profundo do Amor.

País eunuco

sem tomates e sem voz

só a natureza poderá salvar-te

fazer crescer entre as pernas a mais bela flor.

                                                                                                           (19.02. 2015)

de Dentes Tortos (2017)

                                  LENDO MALEVITCH

                                       

                                                                                                   a José Manuel Teixeira

                               No deserto do real na espada que

                                     abre

                                             para a diagonal tudo dança no rápido

             artifício onde a mistura dos corpos

                                                     fluem em

                                                  dinâmica expansão.       Extensão.         Contração.

                               Tudo cai além da

                                                                     visível porta de preciosos

        tons sem que o tempo seja chamado. E

                 Peter eötvos de perna cruzada lê

                                                                           Malevitch

                                                  sentado na sua cadeira de palha virada pra

       o lago suíco. E o tempo que lhe vai escorre

                            ndo 

                    pelos dedos que seguram as páginas do ma

                                   nifesto    

               desenha toda a pauta na já de si cheia cabe

                   ça de sons.

                                          Mas temos de dizer que esta cadeira de pa

                                 lha não 

                                                      existe porque o plano desmonta-se tão rápi

                                                            damente 

                                        que não chega a dar a forma ao som que ex

                                                       plode.

                                      O negro quadrado dança indiferente aos co

                                         rpos 

                                  que se movimentam. Todos desejam

                                                         fundir

                                                                mas nenhum chega-lhe para o abraçar. E vo

                   ltando do sonho eis que a pauta

                                                                          já se encon

                                                tra escrita. Nela está este meu corpo moído

                           e estendido na plana superfície da emoção.

 

POEMA ALTERMODERNO

DE RECRIAÇÃO NEOCONCEPTUAL

DEPOIS DE RELER A PORTA DE DUCHAMP

DE/ A ROSA MARIA MARTELO

 

a)

Toda a música foi

desligada neste poema.

 

b)

Ler o mais lento possível.

 

c)

Uma paisagem derrete na memória.

Imaginar dois rios secos como duas frases

sem ligação.

 

d)

INSTRUÇÃO #4

Reescrever mentalmente a

palavra instrução

invertida num espelho

 

e)

Deixar cair o olhar na coluna que

cai

cai

cai

cai

cai

cai

 

f)

Reler todo este poema

rodeada de flores.

 

g)

Escrever dez vezes a palavra Sistema

e queimar de seguida.

 

h)

Imaginar que este verso é a linha do horizonte.

 

I)

Parar de ler por dois segundos.

Fechar os olhos.

 

j)

Imprimir este poema

morder o Canto Superior direito

e

atirá-lo ao lixo.

 

DUCHAMP.jpg

Marcel Duchamp - “Dust Breeding”, 1920.

 


 



Dois poemas de Luís Amorim de Sousa

de um despertar solitário

a pouco e pouco me vou recuperando

de um já remoto não sei bem o quê
sobeja-me esta incómoda agonia
esta vontade muito renitente
esta pequena angústia hermafrodita
de despertar sem ti para outro ciclo
toda uma direcção inconsequente 

                                             gestos e coisas nesta claridade
                                            ganham coordenação e humildade 

ergo-me a medo como quem se inventa

o dia longo   fértil    agressivo
é todo o espaço de um sorriso alvar
a sublimar o vómito eminente 

devagar
chego-me ao espelho distraídamente
penso nos versos que ainda não escrevi
e no jeito imprudente de me olhar
algo de vergonhoso me diz que te perdi 

Nada, Kentucky

no estado americano de Kentucky
há um sítio chamado Nada 

nunca fui    nunca lá estive

nunca cheguei a saber
nada de Nada

"Azoriano" - As cerâmicas de Marco Ferreira (1980 - )

     Conheci o Marco sob o teto pintado do antigo Palácio de Fonte Bela, não num sarau decante, mas sim no espaço de uma biblioteca a cheirar a História, digo-o sem qualquer repulsa. Refiro-me, claro, ao Liceu Antero Quental de Ponta Delgada, corria o ano, se não me falha a memória, 2002 ou 2003.

Anos mais tarde, encontramo-nos no Porto, um andava em Belas-Artes (o Marco) e eu pela Faculdade de Letras, onde se encontra o curso de História da Arte. Os anos foram passando e os nossos caminhos separam-se. Durante anos fiquei sem saber o que era feito do Marco, até que, por força do destino, o fio foi retomado. Foi neste retomar da amizade que descobri estes novos trabalhos do Marco, estas belas cerâmicas, que desde o primeiro momento me cativaram o olhar. Entre nós os dois, artisticamente falando, podemos referir dois pontos de contacto: a temática dos “Monstros” e a explosão da cor, um traço que também é comum a outros artistas açorianos contemporâneos. Estas são algumas das peças do Marco. Fica a seguinte garantia: ao vivo ainda são mais bonitas.

Os seus trabalhos podem ser vistos em: azorianocraftmaker (Instagram) ou no facebook.

Vítor Teves

Porto, 24 Junho de 2020

Marco Ferreira (1980 - ) - é um artista natural de S. Miguel com formação em Escultura e Design do Produto. Já correu o mundo, mas agora colabora no departamento de modelação da Fábrica de Porcelana Vista Alegre . Nos tempos livres, vai desenvolvendo uma série de peças em cerâmica, sob a foram de bestas, assente num imaginário mitológico onde se encontram figuras equivalentes, como Cérbero, Ortros ou Hidra.

CARTOLINA DOURADA

“rapaz, embrulha-os a todos

em cartolina dourada”

- Santos Barros (1977)

I

      Muito se tem dito e escrito, nas últimas semanas, sobre o derrubar de estátuas físicas no espaço público. Curioso é que em 2019, antes desta vaga de derrube de estátuas físicas, eu já tinha apontado para o mesmo gesto (alegórico) a ser feito sobre as altas estátuas da poesia (ver poema: Galileu). O que, tento em conta o citado DEUS, gerou alguma irritação na altura. “Mas quem se atreve a tal ato?”. Tudo não passava de uma alegoria que apontava para uma necessidade de alargarmos o nosso espectro de leituras, porque a poesia não é só o autor X e Y, ou melhor dizendo, a poesia não se resume a Fernando Pessoa e a Herberto Helder. Fui chamado de tudo e mais alguma coisa, inclusive de “populista”. Segundo eles eu queria “destruir” a poesia. Na era das Fake News quem chama a atenção para a verdade, para os snobismos, para as injustiças sociais, para os podres e indiferença das elites é facilmente carimbado com a palavra “populista”, “desestabilizador”. Aquele que veio para destruir a Poesia (they say), talvez seja aquele que a salva dos clichés que circulam de boca para boca. Dizer isso a alguém de estudou História, que valoriza a História, incluindo a literária, é uma verdadeira estupidez que nem se dão conta.

     Isto lembra-me uma pequena história ocorrida em tempos de licenciatura, um professor meu defendia que existia muita igualdade entre homens e mulheres artistas; ele insistia, estava convicto que tinha razão. Mas passados meses saíram novas estatísticas sobre as mulheres artistas nos espaços e instituições artísticas: a percentagem tinha subido de 1980 para 2015, mas estava muito aquém da igualdade. Naquela altura só me apeteceu pegar nos gráficos, estudo e esfregar na cara dele (quem nunca teve essa vontade que atire a primeira pedra; verão aqui não uma crítica ao politicamente correto, mas, sim, ao incentivo da violência, dirão eles. God Sake). Derrubar uma estátua, alegoricamente, pode ser derrubar “a idolatria à volta dessa estátua” e não propriamente a figura na estátua. Ficarmos apenas por Pessoa e Herberto, dois autores que leio e aprecio, é o mesmo que ficar por duas telas de Turner ou duas peças de Bach.

     Quando escrevi o poema, estava inconscientemente a pensar na viragem da Antiguidade para a Idade Média, quando as estátuas dos Deuses foram quebradas e destruídas pelos cristãos. Nessa altura, nenhum telejornal dramatizou a questão, nem vieram todos com o mesmo argumento: “Populismo”. Nem quando a Revolução Francesa derrubou outros tantos monumentos, o mesmo não foi feito. Estão a ver como estou a misturar tudo no mesmo saco? É o mesmo quando leio nos jornais, alguns até de letras. Mistura-se tudo: fascismo, populismo, cólera, racismo, feminismo, estátuas… querem todos sintetizar em quatro linhas aquilo que é uma questão complexa.

     Se sou a favor do derrube de estátuas? Alegoricamente, sim! Muitas vezes é preciso, para que a mudança se instale. Mudança essa que futuramente será derrubada por outros, faz parte. Sobre estátuas físicas tenho uma dupla opinião e é ambígua, aceito e condeno ao mesmo tempo. Uma estátua não apaga a História, nem reescreve a História, nisso estamos todos de acordo. Mas é necessário alterar o “paradigma” da representatividade no espaço público, se esses espaços são públicos eles devem representar toda a sociedade: negros, mulheres, homossexuais etc… Uma outra questão importante é ter em conta que a realidade dos EUA e de Portugal não é a mesma: não temos no jardim, que eu saiba, perto de nossa casa, figuras que são símbolo da repressão, racismo, tortura… Se eu fosse negro e houvesse uma esbelta estátua de um branco racista e nenhuma outra estátua que me representasse, eu acho que ficaria incomodado, sobretudo quando da estátua para a vivência quotidiano vai uma mínima distância.

     Cada estátua é uma estátua, cada caso um caso. Sobre Vieira, a minha reação foi repulsa, mas convém para verdade dos factos dizer a verdade: Vieira defendeu índios e incentivou a escravatura de negros: à luz do seu tempo estava demasiado avançado, mas à luz da nossa realidade não deixa de ser estranho, uns são humanos de primeira, outros de segunda. Mas, claro, é preciso enquadrar Vieira no seu tempo e valorizar Vieira pelo seu contributo à Língua Portuguesa – isso não está em causa. Mas uma coisa é certa, a estátua em si é tão “insignificante”, feia, um desperdício de bronze, uma mistura de realismo socialista (aquele braço para a frente) e de neoclassicismo (as crianças sentadinhas ao seu redor) que ficava mais bonita com uma cor avermelhada, dava-lhe vida. Por mim, só se apagava a palavra “Coloniza” e deixava-se o restante vermelho. Convenhamos, Vieira merecia melhor artista, outro facto.

   É preciso repensar o espaço público, é preciso denunciar as injustiças, é preciso combater o racismo que existe em Portugal, é preciso denunciar a apatia das elites fechadas nas suas bolhas … é preciso tudo isso, com derrubes metafóricos ou não, para despertar o poder e as suas elites. Se o derrube e destruição de património com a Revolução Francesa foi a faísca para a criação de Museus; talvez haja outros aspetos positivos no derrube de estátuas físicas e alegóricas do nosso tempo, nem que seja para lembrar que a mudança é urgente. Há casos e casos: casos com lógica, outros estúpidos, mas … calma. Não coloquemos tudo no saco do populismo e fascismo. Creio que as comunidades que decidiram retirar os seus objetos incomodativos não podem ser vistas como “fascistas”, bem pelo contrário, devem servir de exemplo. Não se trata de reescrever o passado, trata-se sim de dar melhor espaço público a quem também tem direito a ver-se nele representado.

     Se sou ou não a favor do derrube de estátuas? Mais do que ser a favor ou contra, vejo nesses atos sinais claros de mudança. É comum dizer-se que em Portugal não há racismo, isto é uma mentira. Há racismo (quantos negros são recusados nas entrevistas de trabalho?), machismo (quantas mulheres são mortas?), transfobia (quantos olhares de lado?), homofobia (que ainda é intensíssima) em Portugal, basta sairmos um pouco da nossa bolha e umbigo e olharmos com mais atenção. Se todos denunciassem, falassem talvez esta sociedade seria melhor. Mas, a verdade é que há muito servilismo e pedantismo neste país; e contra a propaganda do Estado, é necessário dizer o óbvio: somos ultraconservadores e em muitos aspetos somos “atrasados”, a começar pela elite. E dizê-lo não é apagar tudo aquilo que temos de bom. Podemos, sim, e devemos ser melhores.

II

FRAGMENTO #42

     Como se vê um mau crítico literário em 5 minutos? Simples. Quando, esse mesmo crítico, não consegue ir além da literalidade do texto. Ou, pior, quando sente que a paródia mais vil lhe serve de carapuça (duas faixas de azul vibrante com verde elétrico), o que é, de facto, um grave problema. Isto não é um poema, é um fragmento, assim como muitos dos seus textos não são Crítica, mas, sim, Crónicas de leitura. Este fragmento é quase tão filosófico e tão bom como os de Nietzsche (será que vai perceber que isto é uma auto-ironia que se transforma num espelho? Ainda vê bem?). Não vamos, aqui, partir estátua nenhuma, não, não, não vamos partir estátua nenhuma. Há que fazer como Christo (com h no meio): embrulhá-la em papel dourado, como sugeriu, e muito bem, Santos Barros, e colocá-la na prateleira dos Princípios Básicos da Literatura, no porão principal do Museu Municipal, na prateleira que ensina que o Autor (essa doce pessoa) não é o sanguinário do texto. Todos dizem-se “Críticos”, hoje em dia, são o exemplo vivo que a parábola de Cristo (sem h no meio), a da agulha e do camelo, ainda está bem viva.

III

     Cada geração conhece a renovação e atualização do papel do “Censor” e do “Crítico” que dorme. São egos feridos, balões de ar quente que dão de comer aos artistas e poetas “Sanguinários”. Quanto mais gritam, mais matéria-prima distribuem.

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 Cartolina dourada - A procura vai ser tanta que o preço já aumentou.