Israel, memória anti-vitimização

Para compreendermos melhor a necessidade de uma guerra que parece desnecessária, é bom lembrar que o «necessário» em geopolítica é sempre um exagero: as alternativas abundam para uns e são impensáveis para outros. Victor Gonçalves foi o tradutor desta entrevista que nos convida à reflexão — se estivermos dispostos a sair da nossa caixa ideológica, fortificada pelo senso comum onde coexistimos.

Denis Charbit, entrevista realizada por Charles Perragin publicada a 3 de junho de 2025, na Philosophie magazine

Como é que a guerra de legítima defesa contra o Hamas e para recuperar os reféns se tornou uma guerra de destruição dos palestinianos? Para compreender o sentido desta terrível reviravolta, o politólogo Denis Charbit, autor de Israël, l’impossible État normal (Calmann-Lévy, 2024), remonta às origens existenciais de Israel e à memória anti-vitimização herdada do Holocausto.

Denis Charbit

«Atravessamos uma catástrofe ética que marcará os israelitas por muito tempo com um signo de Caim» Denis Charbit

O que quer o primeiro-ministro israelita Benjam Netanyahu e como chegámos a este ponto?
Denis Charbit: As operações militares conduzidas por Israel desde a sua criação foram, na sua maioria, represálias a agressões ou ataques terroristas de grande envergadura, em conformidade com o princípio da legítima defesa. Dentro do país, essa preocupação com a legitimidade é indispensável para obter o apoio da opinião pública, na medida em que é necessária a mobilização de reservistas. É também por isso que este tipo de intervenções sempre foi concebido para ser de curta duração, a fim de não provocar movimentos de protesto. À escala da comunidade internacional, o Estado de Israel procura demonstrar que não foi o primeiro a disparar: defende-se, mesmo que de forma excessiva e desproporcionada, para proteger o seu território soberano e a sua segurança. A guerra declarada no dia seguinte ao 7 de outubro segue a mesma lógica. E, desta vez, a magnitude do massacre justificava, aos olhos dos israelitas, a magnitude das represálias e do objetivo: erradicar o Hamas.

«Ao contrário de todas as guerras anteriores que Israel conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo. A catástrofe de 7 de outubro ofereceu uma oportunidade de ouro a esta fação política para impor o seu projeto.» Denis Charbit

Implicitamente, os israelitas admitiram desta vez que a tarefa poderia ser longa?
Sim, e ao contrário de todas as outras guerras que o país conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo e participa nas decisões. Numa primeira fase, de outubro de 2023 a junho de 2024, dois membros da oposição, ambos chefes do Estado-Maior na década de 2010, entraram no gabinete de guerra com a condição de que fosse excluído qualquer representante da extrema-direita. Quando perceberam que as negociações sobre os reféns tinham fracassado por culpa do governo israelita, abandonaram o gabinete de guerra e foram imediatamente substituídos por dois ministros da extrema-direita, Bezalel Smotritch e Itamar Ben-Gvir. A extrema direita tinha agora campo livre. Já não se tratava apenas de acelerar o movimento de colonização na Cisjordânia, ganhar terreno, deixar as milícias intimidarem os palestinianos pela força, mas submeter a guerra travada na Faixa de Gaza a um projeto de destruição total. Assim, a legítima defesa serviu de fachada para uma ambição anexionista e destrutiva que, aliás, nunca esconderam, mas cujo momento oportuno para concretizar esperavam. Já não estamos na época de Ariel Sharon, durante a primeira guerra do Líbano, quando a hubris israelita – para consolidar a sua segurança – consistia em ser o fazedor de reis no Líbano, colocando à frente do país dos Cedros um aliado, Bachir Gemayel (assassinado um mês depois pela Síria). Para Ben-Gvir e Smotritch, a hora é divina: a história não se repete. A catástrofe de 7 de outubro, vista como um ataque existencial, ofereceu uma oportunidade de ouro a essa fação política, que tem a vantagem sinistra sobre os seus adversários de esquerda e do centro de saber exatamente o que quer e não se preocupa com nenhuma norma, nenhuma contingência: que valem as relações internacionais, os acordos regionais, as oposições locais, que vale a moral judaica e universal quando se está imbuído da certeza de que o que se quer, Deus quer?

A eleição de Donald Trump facilitou essa entrada em ação?
Foi decisiva, na medida em que acelerou o colapso do sistema internacional. Além disso, as capacidades militares israelitas decuplicaram nos últimos anos, nomeadamente na vertente defensiva com o Domo de Ferro. Por todas estas razões, o governo já não tinha restrições, nem internas nem externas, para responder ao Hamas, cuja rendição não foi alcançada. Será que ela é sequer alcançável? Podemos perguntar-nos quando se tem um ator cujo principal horizonte é a fé absoluta. Resultado: a legítima defesa inicial, explorada por forças políticas que querem o caos, gerou devastação, a ruína de edifícios e de infraestruturas sociais, económicas, médicas e escolares. Os limites foram ultrapassados muito para lá das operações militares anteriores, muito mais curtas e nunca tão destrutivas, realizadas nas últimas duas décadas, nomeadamente em 2006, 2009 e 2014.

«A legítima defesa inicial, com Israel sempre a ter o cuidado de travar guerras curtas e nunca disparar primeiro, foi desta vez explorada por forças políticas que desejam o caos e a devastação.» Denis Charbit

Ultrapassadas do ponto de vista do direito internacional?
Atenho-me à frase do personagem de Henri Cormery, ao descobrir os soldados franceses massacrados e castrados em O Primeiro Homem, de Albert Camus: «Um homem, impede-se [Un homme, ça s’empêche»] A guerra é aquele momento na história coletiva em que se considera poder e dever libertar-se dos códigos e das regras. No entanto, é preciso recordá-los, restaurá-los e «impedir-se», independentemente da existência de restrições formuladas pelo direito internacional. O que é a moral, senão a reiteração permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade tanto para a moral judaica como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal. O que nos impedimos? Aqueles que acreditam que os judeus são o povo eleito devem compreender que esta noção não é um cheque em branco. Pelo contrário, acrescenta à lista de deveres o peso de um fardo adicional, o imperativo de uma ética exemplar. Da mesma forma, aqueles que se gabam de que Israel é a única democracia do Médio Oriente deveriam compreender que o rótulo democrático não é uma dispensa que autoriza qualquer forma de violência. Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, em tal grau, a confusão entre combatentes e civis, mesmo que seja para eliminar os primeiros. Digo isto com gravidade e o coração pesado: estamos a atravessar uma catástrofe ética que marcará os israelitas com um signo de Caim que nos perseguirá por muito tempo...

«Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, a tal ponto, a confusão entre combatentes e civis.» Denis Charbit

Em que medida essa ausência de limites na resposta militar de Israel está relacionada com o facto de este país não poder ser, segundo a sua tese, um «Estado normal»?
A palavra «normal» é ambígua. Interpretei-a como indicativa das normas a que se submete qualquer regime democrático, mesmo quando está em guerra, como é o caso de Israel de forma quase permanente. O 7 de outubro foi sentido como uma morte coletiva que fez ressurgir o sentimento de estar a mais. Ora, a razão de ser do Estado de Israel foi e continua a ser a capacidade de ser um refúgio capaz de proporcionar segurança a um povo que enfrenta hostilidade permanente, e até mesmo a vontade de ser exterminado. Isso não significa impedir todos os atentados e agressões, mas ter a certeza de que a violência sofrida provocará uma reação imediata e a mobilização das instituições. O trauma não é apenas o facto de a violência ter sido desencadeada, mas de ter podido ocorrer sem entraves, durante horas, sem contra-ataque para impedir um massacre que eliminou mais de 1100 pessoas em 24 horas. No fundo, está a memória do Holocausto e esse mantra, «nunca mais», que se tornou para o povo israelita um «nunca mais para nós», como salientou a historiadora americana Diana Pinto. Esta frase remete para a necessidade de solidariedade face à violência que não faz distinções, uma vez que visa os israelitas, em particular os judeus, sejam eles de extrema-esquerda ou de extrema-direita, ateus ou crentes. Mas o «nunca mais» também tem outro significado além da solidariedade cívica e nacional. É uma forma de dizer: «Nunca mais fracos. Nunca mais vítimas». Este surto – chamado sionismo e que assumiu a forma do Estado de Israel – é uma reação legítima após tantas perseguições, um extermínio e, desde 1945, múltiplos e regulares apelos à destruição do Estado de Israel. A recusa em ser vítimas implica implicitamente que, se for preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. No entanto, quando este despertar legítimo transforma-se numa guerra de destruição, alimentando uma hubris israelita que visa arrasar tudo, eliminar tudo, deslocar a população e reocupar a Faixa de Gaza para sempre, a memória do Holocausto, na sua dimensão anti-vitimizante, atinge um paroxismo que a faz balançar para um extremo que exige o restabelecimento imediato deste pensamento dos limites: «Uma nação, um Estado, impedem-se mutuamente.» Não vejo, não ouço este reflexo moral. As declarações oficiais vão apenas numa direção: tudo é permitido.

«A recusa em ser vítimas sugere implicitamente que, se é preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. Mas afirmar que Israel é a única democracia do Médio Oriente não é um cheque em branco para qualquer forma de violência.» Denis Charbit

Se a razão de ser de um Estado assenta essencialmente na sua capacidade de proteger uma população contra um exterior hostil, não é natural que tenha uma propensão para a violência excessiva?
Nem toda a preocupação com a segurança leva necessariamente à sua radicalização. É claro que a postura do sionismo nacionalista, numa região onde a existência do Estado de Israel não é óbvia e é regularmente questionada, abre um potencial para a violência extrema. Mas é perfeitamente possível evitar essa escalada sem se tornar um país pacifista ou neutro. Proclamar o desmantelamento das nossas capacidades militares aguçaria o apetite de todos aqueles que fantasiam com o nosso desaparecimento: Irão, Hamas, Hezbollah e Houtis. A questão em aberto é: qual será o efeito desta última ação? Esperemos que, mais cedo ou mais tarde, voltemos a colocar-nos sob o imperativo de um princípio de realidade [no sentido freudiano: o mal também vem do interior]. A confissão será dolorosa, parcial e acompanhada pela derrota eleitoral da coligação no poder, se ela ocorrer. Perceberemos então que o governo nos levou muito além da legítima defesa e que, por sua culpa e pelo efeito do nosso trauma, nos tornámos carrascos.

«O que é a moral senão a repetição permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade para a moral judaica, como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal» Denis Charbit

Por que razão a oposição israelita não consegue fazer da condução da guerra uma questão política?
Porque a oposição concentra-se exclusivamente no imperativo categórico da libertação dos reféns. Exige que isso seja uma prioridade, uma vez que o governo se opõe e porque, no fundo, denunciar abertamente as violações do direito é arriscar alienar a opinião pública, que veria nisso uma admissão que favorece o Hamas e os adversários de Israel. Num conflito, não se cede nada ao inimigo. No entanto, o líder do Partido Trabalhista, Yaïr Golan, declarou recentemente que um Estado normal não deve travar combates contra civis, matar crianças «como passatempo» e ter como objetivo a expulsão de uma população. Mesmo que a expressão «passatempo» seja enganosa, ele ousou quebrar esse silêncio após 600 dias de guerra, durante os quais a oposição só se manifestou contra o governo sobre a questão dos reféns.

«É preciso desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças.» Denis Charbit

Por que motivo o governo recusa a troca de reféns?
Recusa porque isso implicaria uma negociação que, para o Hamas, só pode ser bem-sucedida se significar o fim da guerra. Netanyahu também se recusa a negociar, menos para se manter no poder do que para adiar o momento em que, uma vez libertados os reféns, será obrigado a decidir o destino de Gaza após a batalha. Há duas opções: ou uma coligação egípcio-saudita assume o poder, com a Autoridade Palestiniana no centro do dispositivo e, nesse caso, será necessário regressar ao processo de paz do qual Netanyahu se livrou em 2014; ou a manutenção no terreno do Tsahal (o exército israelita). Ora, essa permanência não é apenas uma questão de segurança. Implica também a assunção de todas as funções administrativas, o que os israelitas não tolerarão devido à mobilização de reservistas que essa permanência implica. Seja como for, constato que a opinião pública começa a questionar-se.

Qual foi o elemento espoletador dessa interrogação?
Uma parte da sociedade israelita começa a compreender que é preciso parar de considerar os líderes de extrema-direita como fanáticos. Estamos a chegar a um ponto em que nada é inconcebível, nem mesmo o plano Gaza-Riviera de Donald Trump. Há vinte anos, se um político tivesse considerado oportuno arrasar Gaza, ninguém o teria levado a sério, julgando que o exército não o deixaria fazer. O crescente isolamento diplomático também abalou parte da opinião pública israelita. Perante as ameaças de sanções expressas pela França, Grã-Bretanha e Canadá, há quem anuncie o regresso do Ocidente ao seu antissemitismo latente; os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo que nos afasta das potências que não nos desejam mal.

«Os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo israelita que nos afasta das potências que não nos desejam mal.» Denis Charbit

Quais são os motivos de esperança para os israelitas que continuam a opor-se aos planos do primeiro-ministro Netanyahu?
Para vencer, uma ideia deve ser encarnada por um líder. Desde Yitzhak Rabin, há já trinta anos, não vimos surgir nenhuma figura política que consiga unir. Houve Ehud Barak, mas ele foi derrotado após o fracasso das negociações com Yasser Arafat. Yaïr Golan é talvez o líder de que a oposição precisa. Ele foi vaiado e apelidado de traidor durante um colóquio em Sderot, mas não se acobardou. Não saiu do palco. Respondeu aos seus detratores com veemência, dizendo-lhes que só conheciam o ódio e que era por causa de pessoas como eles que Rabin tinha sido assassinado em 1995. Esta referência é forte. Trinta anos após a morte daquele que assinou os acordos de Oslo, percebemos que Israel não negocia nada há mais de dez anos. Os palestinianos têm uma parte da responsabilidade e nós também. É preciso agora desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças. Caso contrário, esta região deixará de ser habitável para os seres humanos. Em Gaza, devido aos massacres e à destruição, e em Israel, devido ao clima apocalíptico gerado pelo governo – que, à sombra da guerra, prossegue a liquidação progressiva do Estado de direito. 100 000 israelitas já abandonaram o seu país...

CAMINHAR PARA DELFOS

Ruínas do Templo de apolo em Delfos

Há um poema datado de Maio de 1970 que Sophia incluiu em Dual onde se lê:  

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro 

Este poema é parte do ciclo que abre o livro e é dominado pela figura de Antínoo, isto é, pela estátua de Antínoo que ainda hoje se pode ver no museu de Delfos. Da primeira vez que vi a estátua de Antínoo em Delfos não pensei em Sophia, de todo. Acho, no entanto, em retrospectiva, que o que experimentei ao ver essa estátua talvez tenha mais a ver com o sentimento que o soldado inglês Norman Lewis descreveu, no livro Nápoles ’44, com mais simplicidade e menos metafísica do que Sophia ao avistar os três monumentais templos de Paestum, à data do seu desembarque, em 1944, com as tropas aliadas na baía de Nápoles. A meio da descrição do terror de desembarcar em Itália, debaixo de fogo inimigo, Norman Lewis diz o seguinte:

Norman Lewis

À medida que o sol começou a descer esplendidamente sobre o mar nas nossas costas caminhámos aleatoriamente por um bosque cheio de pássaros e, de súbito, demos por nós nos limites desse bosque. Olhámos e no espaço aberto diante dos nossos olhos havia uma cena de um encanto que não é deste mundo. À distância de alguns metros podíamos ver, alinhados, os três perfeitos templos de Paestum, cor-de-rosa e cintilando gloriosamente nos últimos raios de sol. Chegou como uma iluminação, uma das grandes experiências da vida.

Quando subimos pela encosta das ruínas em Delfos vai-se ganhando uma perspectiva sobre o vale que, sempre achei, tem qualquer coisa a ver com o modo como a poesia funciona, ou pelo menos com o modo como ela para mim funciona. Há qualquer coisa de uma lenta revelação que confina com o reconhecimento de uma geografia muito particular, e, ao mesmo tempo, a alegria de a ter entendido, de ter sido, ainda que efemeramente, parte dela, recompensa suficiente mesmo quando isso nada tem que ver com promessas de felicidade. Os lugares dos dois santuários de Apolo na Grécia, Delos e Delfos, são, com Paestum, de todas as ruínas do mundo antigo em que estive, aquelas que mais amo. Apolo não é, no entanto, para mim, um deus benigno e reconheço nele qualquer coisa de uma força caótica e dionisíaca, é o deus que traz a cura, mas na Ilíada é também ele o responsável pela peste que castiga o exército grego no início do poema, porque é um seu sacerdote que Agamémnon ofende. Há depois o dom envenenado da profecia, com que ele aflige Cassandra, e a sua própria aflição violenta e desastrada, perante o terror de Dafne ao tentar fugir-lhe e de como quando ele lhe toca ela se transforma em loureiro, aquele momento que se vê agora imortalizado na estátua de Bernini em Galleria Borghese. O rosto de Apolo, tem, de resto, alcances inesperados. Da última vez que um homem pisou a lua, os americanos estamparam a efígie de Apolo Belvedere na insígnia da missão Apollo XVII, ao lado da águia americana e de alguns planetas, para significar a ambição humana de chegar a outros mundos. Há qualquer coisa na história do nascimento de Apolo, tal como contada no Hino Homérico a Apolo, que o coloca fora da escala humana. Sempre me pareceu o deus mais lírico e menos humano de todos, a começar pelo facto de que a terra não o quer. Leto erra de ilha em ilha, já afligida pelas dores do parto, e todas as ilhas se recusam a recebê-la, porque têm medo do deus mesmo antes de ele nascer. É, justamente, nesses termos que Delos se queixa a Leto, quando ela lhe implora que lhe permita dar à luz no seu solo. Delos, que se tornaria, por uma enorme extensão de tempo até à época romana, um dos santuários mais prósperos da antiguidade, invoca o terror que sente de que o deus a calque com os pés mal nasça e a lance para o fundo do mar, onde os polvos e os peixes fariam dela sua casa. Desesperada a deusa persuade a ilha, prometendo-lhe que Apolo teria para sempre ali o seu templo, e que isso garantiria a sua fama e a sua opulência entre as outras ilhas. O último argumento de Leto, o argumento com que ela convence Delos, é pragmático e bastante pouco lisonjeiro. A deusa recorda à ilha a pobreza aflitiva do seu solo, o quanto ela é inóspita e inabitável, o quanto ninguém a quer, o que continua a ser verdade hoje como no século VII ou VI a.C., quando este hino foi composto. Ainda hoje, quase nunca ninguém dorme em Delos. A ilha, com as suas ruínas que atravessam diferentes séculos, que vão do período em que Naxos floresceu como potência das Cíclades até quase à decadência do império romano, é de uma esterilidade austera, pontuada de promontórios e ervas daninhas que se estendem por um solo pedregoso. É também profundamente caminhável e é possível percorrê-la a pé num só dia, qualquer coisa nela faz pensar na beleza violenta de Apolo, torna lógico o pensamento de que, quase imediatamente depois de nascer, o deus parte de Delos para matar Píton e instituir o seu outro santuário, em Delfos, de onde as pessoas receberiam dele esse dom ambíguo e angustiante da profecia, que não pertence ao mundo de um entendimento aberto, essas frases que uma sibila proferia em delírio, sondando em quem a escutava a perfeita intersecção entre uma profunda angústia e uma esperança irracional. Por alguma coincidência difícil de explicar, o Hino Homérico a Apolo é o único texto homérico que encerra uma descrição vagamente física e biográfica da voz a que chamamos Homero. Pedindo a um grupo de raparigas que não se esqueçam de mencionar a quem por elas passasse quem era o melhor aedo que elas alguma vez tinham escutado, ele pede-lhes que elas digam que é ele, o cantor cego da ilha de Quios. É para mim um momento de uma intensa emoção, esse breve acidente do registo da voz muito remota de um poeta muito arcaico, que foi passando de sopro em sopro até chegar a nós. O motivo pelo qual eu amo os clássicos, penso, tem menos que ver com a sua eventual sabedoria, amo-os às vezes mais nos seus erros e nos seus acidentes, nas suas intricadas encruzilhadas cómicas, como aquelas que vêm narradas por exemplo no Hino Homérico a Hermes, nas trocas entre Apolo e esse outro deus, bem diferente dele e para mim mais benigno, o motivo por que amo os clássicos, dizia, tem qualquer coisa a ver com o espanto perante esse cuidado de tentar cuidar e preservar essa memória de mortos muito longínquos. Os gregos, que se preocupavam tanto com a memória, apreciaram isso. Esse cuidado é uma das poucas coisas que está entre nós e a história da destruição que parece em nós por vezes obscenamente natural de escrever. E, já agora, também esse amor cego da destruição vem dos gregos, basta pensar na trajectória de Aquiles.

Delos

O que me leva de novo a Delfos. Da última vez que lá estive, há cerca de duas semanas, observei como as temperaturas se têm mantido tão altas que as folhas das árvores de folha caduca mal chegaram a mudar de cor. De alguma forma, a angústia da terra sente-se, respira connosco até no ar em Delfos. Haveria a perguntar o que é que a relação dos gregos antigos com Apolo, para eles ao mesmo tempo o deus da poesia e da profecia, nos diz da nossa relação com a linguagem e com o modo como ela pode construir ou destruir o mundo. Muito haveria a dizer sobre isso, eu queria apenas acrescentar que, pensando sobre Delfos e sobre a dádiva mais ambígua de Apolo, a da profecia, essa voz interior que vinha, para os gregos, de um lugar anterior à inteligência, me ocorre que ela na verdade servia, ou parece-me que servia, para pelo menos tentar rejeitar o lado absurdo do mundo, fixar na escuridão desesperada do que ignoramos, a rota de um caminho, a sua visão mais ou menos desajeitada. E que isso talvez fosse uma tentativa de não acrescentar mais absurdo ao mundo.

Da mesma forma que continuo sem poder dizer se o mundo é sagrado e tem um centro, e se esse centro será Delfos – talvez o mundo tenha vários centros, de que Delfos seja apenas um – posso, no entanto, confirmar que o complexo arqueológico continua a conter uma próspera família de gato cinzentos, de alucinantes olhos amarelos, da qual se distinguem claramente pelo menos três gerações. Porque são gatos de Delfos, pode deles ser dito, com a aprovação do deus, que há neles qualquer coisa de sibilino, oracular. Essa qualquer coisa de sibilino e oracular pode, ou não, apontar para alguns versos que Sophia escreveu, de resto num livro preocupado com as relações entre nomes e coisas, O nome das coisas, em que num poema intitulado “A forma justa” encontramos os seguintes versos. São talvez os meus versos favoritos de Sophia:

Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

sacerdotes de apolo em delfos, séc. XXI d.C.

NOTAS SOBRE 2019

“muitas vezes digo a mim próprio que melhor

seria ter ficado em casa com os mapas e os horários”

- W. G. Sebald (“Vertigens: Impressões”)


I

Num filme de François Ozon – “Dans la maison”, de 2012 – é dito, nos minutos finais do filme, que qualquer pessoa, hoje em dia, pode escrever sobre arte. Não me recordo exatamente a frase, pois escrevo de memória e sem a ir confirmar, mas o sentido era de que qualquer pessoa podia escrever umas “coisas” sobre arte. A frase é dita em tom de ironia, na medida em que quer dizer exatamente o seu contrário, ou seja, poucos, muito poucos são os que conseguem e bem escrever sobre arte. Muitos dos textos escritos sobre arte, estou a falar de textos para exposições temporárias, são na realidade uma série de construções de vazios retóricos que nada dizem. Falar de dois ou três nomes de artistas num texto não é escrever sobre arte. Começo por lembrar essa imagem do filme de Ozon, para dizer que este pequenino texto não procura ser um texto sobre arte, mas, sim, meras impressões pessoais. Quando vi o filme de Ozon não pude deixar de estar inteiramente de acordo com Ozon. Muitos textos que já encontrei em galerias, jornais, panfletos, mesmo de “curadores” da moda, nada de interessante dizem. Escrever sobre arte é das coisas mais difíceis porque requer demasiado conhecimento e, além disso, talvez ainda mais importante, sensibilidade e imaginação. Venho dizer isto para dizer o óbvio, que este texto não é um texto sobre arte, mas, sim, notas imperfeitas, incompletas e pessoais. E antes de avançar queria evocar Arthur Danto. O filósofo e crítico de arte americano viu Andy Warhol pela primeira vez nos anos 60 e só foi capaz de escrever sobre Warhol 40 anos depois da primeira exposição que viu de Warhol. Gosto desta história porque isto, sim, é pensar e escrever sobre arte, foram precisos 40 anos para que conseguisse dizer algo que valesse a pena ser lido. Escrever sobre arte não é algo que nasça da noite para o dia , é, sim, um processo longo, doloroso (em parte) e persistente. A arte está sempre à frente do pensamento e aquele que escreve faz um esforço para ir atrás do sentido da obra de arte, não saber isso é o maior dos erros! É preciso longo Tempo para se escrever alguma coisa consistente. É preciso dizer o óbvio para que se perceba que a minha intenção é apenas dar aqui uma pincelada, uma impressão meramente pessoal. Não há nestas notas a pretensão de ser crítica; a crítica é uma coisa séria, ou pelo menos devia ser levada e pensada a sério. São, repito, meras impressões.

II

2019 foi um ano muito especial: o 5º centenário da morte de Leonardo da vinci; a Retrospetiva de Hans Hartung no Museu de arte Moderna de Paris; o centenário de Pierre Soulages e a sua consagração (definitiva) no Museu do Louvre; a morte de Robert Ryman; … Só estou a apontar. A retrospetiva de Hans Hartung é de maior importância na medida em que reabilita Hartung como um grande pioneiro da pintura abstrata, quer do expressionismo abstrato dos anos 40/50, quer da revitalização da abstração do início do século XXI. Esta seleção de acontecimentos que parecem nada ter haver entre si, têm, sim, ligação clara. A arte como “coisa mental”, a pintura abstrata, está viva e espelha-se nas suas mais importantes instituições artísticas. Esta última frase acaba por ser um pouco estranha, pois parece que mistura coisas que não se misturam: Leonardo da vinci + o negro de Soulages (e o outrenoir) + o branco de Robert Ryman + os gestos negros e os sprays de Hans Hartung; mas é exatamente isso. Qualquer um destes artistas merece um desenvolvimento especial que não tenho como dar conta aqui. Interessa-me apenas dizer duas coisas: a reabilitação e a consagração de Hans Hartung trata-se não só um reconhecimento da importância da obra de Hans Hartung, como um espelho do seu tempo, ou seja, a nova abstração do início do século XXI exige a revisão dos últimos anos do século XX. Muitos são os artistas abstratos atuais, uma nova geração, que exploram e amplificam as técnicas e gestos de Hans Hartung, nomeadamente através do uso de diferentes sprays. Por outro lado, dois pintores opostos, um senhor do negro e da luz, outro senhor do branco e da luz: Pierre Soulages versus Robert Ryman. São duas visões completamente opostas mas que têm como fim a luz, um via negro, outro via branco. Pierre comemora o seu centenário e Robert Ryman, infelizmente, morreu no início do ano. Ambos não são pintores para estudar por reproduções, ambos são experiências físicas; só conseguimos senti-los e vê-los no espaço físico. São distantes, diferentes e, no entanto, têm tanto em comum: a matéria, a importância do corpo no espaço; a preocupação pela montagem; a luz; o silêncio…

III

Em Portugal, de todas as exposições que vi, há duas que achei absolutamente extraordinárias: Carlos Bunga no Museu de Eletricidade em Lisboa e Nikias Shapinakis na Galeria Fernando Santos. A obra de Carlos Bunga parece herdeira de toda uma linguagem pós-minimalista e muito herdeira das preocupações com o espaço e arquitetura, obras que me encantaram e as quais ainda ressoam na minha memória. Por sua vez, Nikias Shapinakis faz uma espécie de cisão com toda a sua obra anterior e concentra-se apenas no uso do preto e branco, assim, encontramos as suas habituais paisagens e formas orgânicas imbuídas de uma nova e refrescante aura. Ainda neste ano: a retrospetiva de Joana Vasconcelos, no museu de Serralves, foi muito “previsível”, tirando uma peça, nada me impressionou, achei-a demasiado aborrecida (como todos os artistas tem coisas interessante e coisas desinteressantes, mas a exposição em si foi demasiado fraca); a exposição retrospetiva de Joan Jonas foi uma surpresa, muito boa, com obras muito interessantes, sobretudo “Reanimation” (2010), das melhores obras que vi este ano; a exposição “Estar vivo é o contrário de estar morto” uma perfeita desilusão, se retirarmos uma ou outra obra, acabou por ser um enorme vazio para um ideia interessante; a exposição de Pedro Cabrita reis, ainda em Serralves, ainda não a vi, mas creio que Isa Genzken teria aprovado.

IV

Sobre a poesia apenas uma pincelada, uma pequeníssima pincelada, 2019 viu a publicação de 4 poéticas que merecem toda a atenção: Santos Barros, Pedro da Silveira, Urbano Bettencourt e Emmanuel Jorge Botelho; 4 açorianos, 4 obras importantes e que merecem ser lidas no seu contexto nacional enquanto poesia de qualidade. Este bem pode ser o ano da “Poesia açoriana”, com aspas porque tenho dúvidas sobre essa designação que tanto tem de pertinência como de catalogação simplista. Todos os 4 autores merecem ser lidos com atenção. Sem querer fazer o meu “Top 10”, direi apenas que gostei muitíssimo de “Zombo”, de Alberto Pimenta, talvez o melhor livro de originais de poesia que li este ano. O Pen Club de Poesia para a Tatiana Faia veio corrigir um esquecimento nas listas de melhores livros de 2018, que tendem a ser, ainda, “masculinas e maiores de 60”. Uma última pincelada, a poesia no feminino está em alta, quer entre gerações mais velhas, quer entre as mais novas, livros de Inês Lourenço, Ana Luíza Amaral, Andreia C. Faria, Francisca Camelo, Mafalda Sofia Gomes, Inês Morão dias, Tatiana Faia (a fechar o ano com “Leopardo e Abstração”)… haverá outras mas não as li. Poesia masculina, e próxima do meu universo pessoal e de interesses, direi apenas: José Pedro Moreira, João Bosco da Silva, Leonardo, Ricardo Marques, João Coles, Sebastião Belford Cerqueira e Pedro Craveiro. Haverá outros, muitos outros, mas isto é uma nota pessoal, não mais do que isso.

V

Entre o chocalhar de herbertinhos e os piu piu à volta de Sophia, Sena foi um adereço, uma espécie de autocolante no peito por umas horas. O bizarro não foi a banana de Maurizio Cattelan mas a condecoração post mortem a Sophia e, semanas depois, a morte na miséria de um ator português. Ou seja, louvar os mortos, esquecer os vivos.

VI

ÓBITO DE BARBARA STRONGER (1983-2019)

Morreu, hoje, a poeta luso-canadiana Barbara Stronger.

A causa da morte ainda é desconhecida, mas, segundo

os mais próximos, morreu de cocktail de barbitúricos.

Trabalhava, em part-time, num McDonald para sobreviver

e comprar livros. Fez uma tese sobre Paul Celan nunca

publicada, ou valorizada, em Portugal; o que é normal entre

nós! Publicou em vida um único livro de poesia, no qual

é visível a sua irritação e o seu amor pelos mulheres. Não

tinha pachorra, sobretudo, para os moderadores de poesia

que sempre achou terem mais ego e barriga que nobre

espírito poético. Tudo o que fez foi enfiar o dedo nas feridas.

Presa ao álcool, vítima do desprezo e solidão, tudo mandou

à fava. Sabe-se que escreveu uma carta a todos os amigos

e aos inimigos, o que é caso raro. Nas últimas dizia: “Ide-vos

foder, à dissolução e libertação do meu Ser cheguei primeiro!”

VII

Para desespero do Daniel, continuo a ouvir a mesma música (ou álbum) durante uma semana. Melhores álbuns: Lana del Rey –“Norman Fucking Rockwell”; Jakub Orlinski –“Facce d’amore” e de Jarrousky – “Passion”. Do outro lado da barricada: Thom Yorke, FKA twigs (que ainda não ouvi com atenção) e Angel Olsen. E cinema? Vi tanta coisa que não vi nada. Para mim, “Fausto”, de Sokurov, é sempre atual.

VIII

Sentado na sarjeta, só me resta notar que estas notas podiam ter sido melhor escritas, mas o meu país não me deixa, afinal ainda estou vivo. “Um país de reles alternativa/ não frutifica”. Portugal continua a ser aquilo que sempre foi, um charco onde a água só corre para a água.

Ps1- Sobre duas obras que me são particularmente estimulantes - Fernando Guimarães e João Miguel Fernandes Jorge: sobre o primeiro, uma fabulosa obra completa, perfeita; sobre o segundo, a “Antologia dos Poemas”, preciosa, é certo, mas pequena demais, pois vi muitos poemas, de que gosto, ficarem de fora.

Ps2- E atenção, atenção; Wake up, Wake up (Madonna): a extrema-direita está à porta. “Enquanto o Kraken não estiver à /nossa porta o Mal não existe” (Vítor Teves).

Hans Hartung - “T 1989 R 45”, 1989.