Revisão
/Quando revemos, é como se reescrevêssemos um texto ad infinitum. Desejamos encontrar sempre mais uma falha, sendo que por vezes ela é apenas um traço muito próprio de ser texto. O revisor, autor-revisor, quer alcançar a perfeição, a exacta perfeição. Em vão (mas é um «em vão» que não desmobiliza), trata-se de um projecto assintótico. A aproximação conserva uma distância incomensurável (ia dizer «sagrada») entre o que está escrito (que pode ser muito bom, até excelente, merecer louvores e tudo) e a perfeição. Trata-se, então, de um movimento, intelectual e espiritual, que conhece o fracasso por antecipação (esforço sisífico). Não porque a perfeição seja uma palavra-miragem. Não! Mas porque não se deixa capturar, está para lá do rigor mortis e dos jogos de interpretação, para lá de qualquer armadilha taxonómica. Existe num plano que desconhecemos, mas desejamos. É totémica.
De todo o modo, perseveramos. Às vezes por capricho, outras por pretensiosismo, mas também por um ímpeto sacrificial: querer morrer o mais tarde possível para alcançar a sintaxe correta que não obnubile a leveza do estilo, para descobrir a palavra justa de uma demonstração, para compor a melodia fonética de um parágrafo digna dos primeiros aedos (aqueles que só contavam histórias aos deuses).
Philip Roth, uma vítima do sucesso, deixou de escrever porque o processo de revisão era demasiado extenuante, demorava o dobro do já longo tempo da escrita. Mas talvez possamos escrever apenas para poder rever, custe o que custar. O esboço é a matéria a que nos atiramos com alguma impaciência, para alimentar o nosso desejo incandescente de aperfeiçoar, reordenar os detritos verbais. Assim, talvez escrevamos não para comunicar (haverá coisa mais banal?), mas sim para instaurar a possibilidade da revisão, angustiante e entusiasmante (como uma amante que parece não nos amar), em direcção à perfeição, mas um caminho sem Ítaca. Contudo, esse impulso não contraria o direito à imperfeição e ao erro; combate, sobretudo, a trivialidade.
Até porque, como diz Italo Calvino, “A mentira não está no discurso, está nas coisas.” Ou seja: o discurso, a escrita serve para criar mundos, não para nos submetermos às leis e aos factos do que foi sendo reificado; primeiro pelos mitos, depois pelas religiões absolutistas, em seguida pela ciência e agora pela política construtivista e pelo marketing. Sem o critério da verdade, o discurso em si, antes de se referir ao mundo, deve ser codificado segundo um elevado grau de necessidade, respeitando e superando as leis, respeitando e superando a própria linguagem (o mesmo é dizer: o homem e Deus).
Claro que isso implica riscos. Os charlatães também se aproveitam da repoetização do mundo, fabricando paralogismos grosseiros. Mas os homens deixarão de acreditar neles, prevê-se uma repulsa generalizada contra a vulgaridade das pequenas mentiras, das ilusões interesseiras, das facécias que retraem o riso. Quando isso acontecer (não será de uma só vez), teremos o reino dos autores-revisores, no qual, como desejava Georges Bataille, se poderá matar, sem sangue, por uma vírgula.