Recurso e Pobreza, lançamento

«Je cherche en même temps l’éternel et l’éphémère»
(Georges Perec)

 Hoje, celebramos essa coisa estranha, incompatível com qualquer teoria evolucionista ou criacionista, a que chamamos poesia, cujos jogos de linguagem resultam dos desvios, amplamente tolerados, mas não excessivamente aleatórios, às normas linguísticas, que, aliás, ajudaram a constituir. É assim que se autoriza o poeta a decidir onde termina uma linha, onde põe maiúsculas ou como usa a pontuação. Pode até grafar onomatopeias e fazê-las produzir sentido. Por outro lado, como um poema raramente vem com um contexto pronto a usar, o leitor ainda possui uma grande margem de ação. O sentido final, mas nunca fixo, de um poema é, portanto, uma aventura hermenêutica, uma pontaria afinada sem alvo, para a qual é necessário invocar os grãos de loucura do próprio Hermes. É por isso que Terry Eagleton nos avisa de que «A poesia é a mais complexa forma de discurso imaginável.» (Como Ler um Poema). E, na recôndita metafísica da Floresta Negra, Martin Heidegger descobre que ela é a própria morada (Heimat) do Ser, a única via de acesso às coisas mesmas que aparecem no ente.

 O que faz, então, aqui um pobre diabo que dedica mais tempo a ensinar, escrever e ler filosofia — embora não seja um escravo acrítico do racionalismo instrumental —, a jogar ténis do que a imergir na constelação da linguagem com o máximo poder demiúrgico; espaço-tempo onde o caos se ordena e a ordem se caotiza, onde a vitória na desordem é mais importante do que uma folha de Excel? Só pode ter sido uma decisão pharmakon: da Tatiana em convidar-me; de mim em aceitar. Aqui estou eu… sugerindo um pedido de piedade, como faziam os extraordinários Gregos para amansar o auditório. Tatiana, antes tivesses escolhido um crítico universal, desses que medram com facilidade na nossa terra, e sabem incendiar o público, porque há anos que cospem fogo, que boxeiam no vazio; que, como nos alertou Nietzsche, são feiticeiros que em vez de criarem algo a partir de nada, criam o nada a partir de algo, deixando, por onde passam, um rasto radioativo. Mas se me escolheste — no que isso teve com certeza de fortuito — foi também porque tu própria admites que os teus poemas não ofendem: «às vezes os meus poemas cometem esta grande falha / pela qual queria pedir antecipada desculpa / não ofendem ninguém» («catástrofes a sério»).

 Conheço Tatiana Faia há anos, li todos os seus livros, muito dos seus textos, ouvi bastantes dos seus discursos e, sobretudo, conversei várias vezes com ela sobre tantas coisas humanas, demasiado humanas; sei, portanto, porque gosto dela. Não será principalmente pela sua pureza (que, aliás, sou incapaz de calcular, ao contrário de tantos neotorquemadas que por aí pululam) mas sim pela sua complexidade. Que se reforça com Recurso e Pobreza, o livro da Tatiana que mais me marcou, e que, em todos os dias dos últimos dois meses, me queimou um pouco mais. Não porque fosse o último e tivesse evoluído darwinisticamente, mas porque nele o seu olhar, atento ao interior e ao exterior, se interessou mais do que costume pelas estrias, por vezes minúsculas, que ligam e desligam as membranas da vida. Um olhar acompanhado por recursos estilísticos que lhe oferece as lentes apropriadas a cada circunstância; não para abarcar tudo, mas para pairar sobre o que mais importa.

 Vou agora, com as devidas reservas, expor algumas linhas da minha leitura de Recurso e Pobreza. Utilizarei apenas uma vez a enumeração, porque depois de assistir ao lançamento de um livro (também ele de poesia), no qual a lançadora — investigadora científica e moral muito promissora — esquartejou a obra com uma tática impiedosa de quatro vezes quatro enumerações (truque que agora deve ensinar nas mais altas esferas da academia vocacionada para a congelação), prometi vigiar com rigor as minhas tendências taxonómicas. Contudo, não posso fugir à evidência de uma geopoesia: quase todos os poemas deste livro têm a marca do tempo e do lugar, do Genius temporis e do Genius loci. Tatiana Faia assinalou o mês e ano, o lugar ou os lugares: tempo presente e tempo ausente, o da durée, desdobrado no interior do sujeito poético e do poema; lugares presentes e ausentes, visíveis e invisíveis, um vasto mundo virtual que, por exemplo, nos permite comprovar que uma rua é uma rua, ou melhor, que uma certa rua está em devir-rua. É por isso que talvez possamos entender a sua poesia como um prolongamento do olhar (que, no entanto, quando observa se sabe observado); sentir, num pequeno vislumbre, que a Tatiana deseja, creio, ser lida com uma hermenêutica menor que se aninhe na sua visão. E se o seu olhar abre e fecha observações, o que realmente importa é a duração e o meio, não onde começa ou acaba, mas a viagem entre esses dois pontos, que são sempre imaginários. («caminhamos pelas montanhas / como se pudesse regressar do abismo / tu à frente, eu atrás / tu com uma corda às costas / calças curtas, uma camisola de malha / às vezes perdes-te à minha frente no trilho / pelo nevoeiro, o azul / da tua camisola confunde-se / com o cinzento da montanha / e eu chamo o teu nome / um som em perfeita queda / como a água ou a noite descendo / aguçada sobre os penhascos». «antonia»).

Um olhar que nos ensina a ver, ou melhor, já que depois de Sócrates deixou de existir boa pedagogia, nos convida a acompanhá-la, numa cumplicidade que acrescenta mundo ou que testa as suas próprias intuições. Um com-observar que não garante, contudo, um final feliz: às vezes podemos prosseguir o caminho a coxear. Não se trata, pois, de edificar, de extrair o excecional do vulgar, mas de uma sagração do existente. Talvez só assim se inventem novas possibilidades de vida: transmutar os sistemas de adversidade em sistemas de oportunidade, visto que o viver deve ser mais autoafirmação do que conservação. Mesmo se, nos tempos que correm, quase nenhuma odisseia possua a sua Ítaca, não parecendo haver nenhuma utopia disponível.

Tatiana Faia deseja saber o que é o humano, espantando-se tanto com a sua perfídia quanto com a sua bondade. Parece que tudo o que é humano lhe é estranho, estímulo constante para a passagem da curiosidade ao discurso, poético ou outro. O seu poema «a lição» é o exemplo acabado disso. Mas há muitos outros fragmentos para uma antropologia poética, por exemplo: «o ódio nas terras pequenas / não se rarefaz como nas cidades / chega até à mais ínfima partícula do sangue / mata por calor, irracionalidade / e uma pobreza partilhada / com uma impaciência / que reconhece de olhos fechados / que as múltiplas intrigas / se podem esvair num ápice / perante a mais perfeita crueldade da terra» («história quase apócrifa dos mortos em armeni». No final, estamos certos de que Tatiana está à altura das coisas, dos homens e dos semi-deuses.

Essa necessidade de apaziguar o espanto através da compreensão, da semi-compreensão, obriga a observar o mundo sensível. Será, então, uma poesia fenomenológica. Com ela, traçamos linhas sobre o caos e arrumamos um pouco o nosso espaço mental. Entendemos melhor o crime e castigo das «mãos sujas», o desespero de um curador com génio organizador a mais para a arte disponível, a pressão mortífera da paixão, a falsa beleza dos abismos ou o valor de «mil pesetas». Mas, muitas vezes, trata-se de uma fenomenologia lírica, o que só acrescenta força à observação. Noutras situações, o olhar da Tatiana detém-se em experiência que ainda não aconteceram. Potência pura e capacidade de reinvenção: a poesia da Tatiana ajuda-nos a mudar de pele — talvez mais do que o amor, o trabalho, a guerra ou a amizade — porque nos fornece amostras de outros mundos.

Apesar disso, as palavras parecem estar acima do tempo: «mas seria uma desculpa fácil dizer / que as palavras por que vivemos / não nos podem erguer acima / do tempo / breve de uma vida humana» («as mãos dos poetas»). Acima do tempo, mas não fora do corpo: «para que sopro a sopro, palavra a palavra / lentamente te recordes / de que a terra nos usa todos os dias» («ver pior ao perto»).

 Deixem-me realçar a arte do contrapé, que Tatiana Faia pratica com a desenvoltura de quem prefere os impasses, as hesitações à linha reta. Desde o aparecimento da cultura da ilusão e da criação do espetador estético, conhecemos o valor das peripécias, tanto que a maioria delas já foi codificada. Mas a Tatiana introduz a perplexidade ao nível micro, não na estrutura do poema, mas dentro ou entre os versos, no lugar onde habitualmente encontramos continuidade. Isso permite-lhe transubstanciar as palavras (a favor e contra os formalistas russos: tudo pode ser outra coisa, os sentidos articulam-se, imbricam-se, mas também se contradizem e digladiam). Por exemplo: «apaixona-te / mas com o ritmo certo / lentamente / é muito importante / que não seja com demasiada intensidade / e demasiado depressa» («poema sobre como queimar a ferida e passar a viver melhor nas cidades». «que não te menti quando te disse / que te quis mais até do que me diverte estar vivo» («anunciação, filippo lippi, ca. 1453»).  «estou a abrir todas as janelas / para deixar entrar a noite / e há muito que nada / do que me acompanha / é uma educação» («onde»).

A sua poesia contém também uma preocupação com o logos partilhado, com o diálogo. Nos Gregos aprendemos que o pensamento é relacional, que ninguém pensa realmente sem ser incitado a isso — forçado pelos fenómenos, mas sobretudo pelo logos de outrem. Em vários poemas, o sujeito poético dirige-se a alguém, mais ou menos real, a outrem a posteriori ou a priori. («é verdade, gabriel, sou vulgar / porque sou voraz como o mundo» «anunciação, filippo lippi, ca. 1453»). Deste princípio surge um estilo que a distancia daquela poesia que se arroga o direito de acrescentar à realidade suplementos de metafísica, para a encaixar, à força se for preciso, nas grelhas do bem e do mal, da verdade e da mentira ou da pureza e da impureza. A poesia da Tatiana mantém-se no mundo mediano, onde raramente medram os presunçosos e os imbecis: um espaço que não pretende ser centro, constituído por periferias, nas margens da poesia-sol.

Não havendo poeta que se preze que não experimente algum exercício de metapoesia, procurámos, quase em vão, neste livro esse dispositivo tão apreciado (seria interessante psicanalisar este autorreconhecimento). E quando o encontrámos (em «as constelações» e «catástrofes a sério»), fomos surpreendidos por uma espessa camada de ironia. Em vez de nos revelar os segredos do ofício ou os fulgores semidivinos dos poetas que são «meia-noite porque querem», os poemas indicam as mil e uma maneiras de um poeta morrer ou os falhanços do ofício — evanescências banais, como a de qualquer outro mortal. Pior ainda, porque a expetativa era de uma certa grandeza: libertar uma alma um pouco mais redonda do que a média.

Por tudo isso, aceitamos que à nossa atual falta de sede, se contraponham os dois últimos versos do poema «os protestos»: «temos cada vez mais sede / e há cada vez menos água». Assim, conclui-se que os poemas sobrevivem às tragédias que descrevem ou sugerem, o que fica comprovado pelo apelo desesperado, mas justíssimo, depois de Auschwitz, para se deixar de escrever poesia. Ainda bem que sobrevivem: como poderíamos mudar de vida sem eles?