Platão e a expulsão dos poetas

Tradução, por Victor Gonçalves, do artigo de Frédéric Manzini, «Platon, chasseur de poètes?» publicado a 2 de julho de 2025 na revista Philosophie magazine.

Qual é o lugar dos artistas na sociedade? São essenciais ou marginais? Reler Platão sobre este tema é desconcertante: extremista, o filósofo quer excluir os poetas da sua Cidade ideal. Faz disso mesmo a sua prioridade. Medida digna dos regimes mais totalitários ou projeto político destinado a preservar a juventude destes «influenciadores» antes do tempo?

Quando se pergunta aos candidatos à eleição presidencial qual seria a primeira medida que tomariam se fossem eleitos, é raro que a resposta tenha que ver com poetas. No entanto, é isso que Platão faz na República, antes mesmo de esboçar os princípios fundadores da sua Cidade ideal, ou seja, do vasto projeto de reorganização política que empreende. Mas por que atacar poetas inofensivos em vez de criminosos ou ladrões? De que podem eles ser culpados, senão de escrever maus versos? E haverá realmente urgência em começar por querer expulsá-los, quando há toda uma organização política a repensar e uma sociedade a construir?

Que vão cantar para outro lado!
Para compreender melhor o que levou Platão
a adotar uma posição tão severa no seu diálogo A República, é indispensável situar-se no contexto geral desta obra. A questão do lugar dos poetas parece suficientemente importante para ser abordada de forma recorrente: é mencionada pela primeira vez no livro II, depois mais longamente no livro III e, finalmente, no último livro, o livro X. Isso mostra a importância que ela tem para o filósofo!

Após um livro I dedicado a trocas entre Sócrates e alguns interlocutores sobre certas ideias recebidas acerca da natureza da justiça e da vida individual bem-sucedida, Platão começa, de facto, a atacar os poetas no livro II, antes mesmo de a discussão sobre a justiça ser transposta para uma escala maior, ou seja, para o nível político, como será na maior parte do que se segue. O seu interlocutor é então um certo Adimanto... de quem não se sabe muito, exceto que é provavelmente um dos irmãos de Platão! A situação é, portanto, no mínimo perturbadora, uma vez que o filósofo relata um diálogo entre o seu mestre e o seu próprio irmão, como se ele próprio estivesse dividido em dois. Seja como for, Sócrates explica a Adimanto que os poetas são prejudiciais quando dão uma imagem deplorável e enganosa dos deuses e fazem crer que é possível ser feliz sendo injusto e comportando-se mal: por exemplo, «que os deuses guerreiam entre si, que armam ciladas, que lutam — nada disso é verdade», lamenta ele. «Contar que Hera foi acorrentada pelo seu filho, que Hefesto foi atirado num precipício pelo seu pai porque quis proteger a sua mãe agredida, e todas essas lutas entre deuses que Homero colocou nos seus poemas, isso não deve ser admitido na cidade, tenham esses poemas sido compostos ou não com uma intenção alegórica» (República, II, 378b-d).

Um desafio para a política educativa
Não é o facto de a poesia recorrer à ficção
que Platão condena, mas o tipo de histórias que ela conta. A diferença entre as que são enunciadas de forma poética ou metafórica — o que ele chama de «intenção alegórica» — e os discursos que procuram expressamente dizer a verdade (conforme à realidade) parece secundária. É bom recordar que o próprio Platão recorre de bom grado aos mitos. Na juventude, dizem, compôs ditirambos, versos líricos, tragédias e, mesmo que o seu encontro com Sócrates tenha posto fim à vocação poética, a qualidade literária da sua escrita é absolutamente notável, cheia de estilo e rica em imagens, a ponto de ser erigida em modelo por todos os professores de língua grega ainda hoje. Platão é o mais poético dos filósofos.

Mas antes de ser poeta, ele é filósofo e legislador, e sua luta não se situa no campo estético, mas inteiramente no campo educativo e político. A desconfiança que manifesta em relação aos poetas obedece, em primeiro lugar, a um desejo de proteger as crianças da pressão que eles exercem sobre elas, conscientemente ou não, quando divulgam preconceitos — por exemplo, sobre os deuses. Ao refletir sobre a forma como se deve educar a juventude, Platão teme a influência nefasta que os poetas podem exercer sobre as almas mais vulneráveis ou influenciáveis. Ao ponto de instituir uma forma de censura? Sim, porque a educação é um assunto demasiado sério para ser confiado, sem controlo, aos artistas, nem eles próprios medem as consequências políticas da sua arte! É preciso compreender que, na Atenas de Platão, era através da convivência com os poetas que os mais jovens se formavam. A «poesia» em questão é, em primeiro lugar, muito mais do que aquilo a que hoje chamamos, em sentido estrito, «poesia», como confirmam os exemplos dos poetas que ele menciona na República: Homero, Hesíodo, Ésquilo, Píndaro... É todo o teatro e toda a literatura que o termo abrange. Todos eles detêm uma espécie de soft power que pode parecer inofensivo, mas que, aos olhos do filósofo, é formidável. «Começamos por contar histórias às crianças», escreve ele, acrescentando que «em qualquer tarefa, o mais importante é o começo».

O poder subversivo da arte
Os bons poetas são bons educadores?
Nada é menos certo, pois a sua preocupação é agradar e emocionar, e não instruir ou tornar melhor. Será que eles se preocupam minimamente com o bem? Terão pensado no significado do que representam? Quando os mitos, lendas e outros relatos das proezas de heróis e deuses os mostram como indivíduos impulsivos, egoístas, vingativos – ou seja, feios e viciosos –, os poetas erigem-nos em modelos de maus exemplos. O episódio da fúria de Aquiles, na Ilíada, valoriza assim a raiva e pode levar a crer que se trata de um sentimento legítimo e nobre: aos olhos de Platão, Homero não é, portanto, recomendável. O talento dos poetas não está em causa, pelo contrário. Quanto mais talentosos, mais perigosos são e mais poderoso será o efeito que podem ter sobre as almas influenciáveis que se identificam facilmente com as personagens de ficção que lhes são apresentadas. O prazer que proporcionam é ainda mais indigno e pernicioso, pois habitua os jovens a ceder às paixões, não os preparando para serem adultos e cidadãos virtuosos.

Platão teme, de facto, que o imaginário criado pelos poetas veicule valores contra os quais será difícil lutar, como uma doutrinação que talvez seja impossível desfazer quando esses valores entrem em conflito com aqueles filósofos no poder considerem bons. Quem, hoje, criticaria o governo por fazer o que está ao seu alcance para impedir que as crianças sejam expostas à violência, à pornografia, a discursos ou ações sexistas e racistas? Noutras palavras, por legislar para bloquear o acesso a determinados programas de televisão, sites ou redes sociais? É da mesma forma, como defensor das crianças em perigo, que Platão intervém: expulsar um certo número de poetas da Cidade parece-lhe ser o meio de erradicar o mal — ou mesmo a simples possibilidade do mal — pela raiz, antes que ele tenha a oportunidade de se instalar na mente dos futuros cidadãos.

Compreende-se melhor que o filósofo considere este assunto prioritário e que opte por abordá-lo no momento preciso em que se prepara para lançar as bases do seu novo Estado. Como dar bases sólidas a uma sociedade se o espírito corrupto dos seus membros não tem gosto pelo belo, pelo verdadeiro, pelo bem? Muito crítico em relação ao funcionamento de Atenas tal como a conhece, Platão considera que ela precisa de medidas fortes. Repensa todo o currículo educativo e reforma toda a política cultural, ordenando-a pela lei da razão e colocando, assim, a «educação artística e cultural», como agora se diria, sob uma vigilância muito estreita. Vinte séculos mais tarde, Rousseau será animado por uma preocupação semelhante em Émile, o seu tratado de pedagogia que redefine a educação a partir do zero: aí qualificará a leitura como «flagelo», fará esperar o aluno até os doze anos antes de lhe dar livros e desaconselhará até mesmo uma fábula como «O Corvo e a Raposa», de La Fontaine, porque a moral que ela contém é profundamente cínica, valoriza o sucesso da duplicidade e apresenta como modelo um mentiroso. Tudo isso não é adequado para crianças, mas apenas — e eventualmente — para mentes mais maduras, mais experientes e suficientemente críticas para compreender os diferentes níveis de significado e distinguir o que é importante do que não é. Deveria ser proibido para menores de dezasseis anos!

Poetas censurados, poetas autorizados
Cabe ao legislador
dotar-se dos meios para preservar os futuros cidadãos de qualquer forma de corrupção moral e afastá-los de maus educadores – atualmente, falaríamos de influenciadores tóxicos. Uma vez que não é possível afastar as crianças da cidade, a solução menos má consiste, portanto, em mandar embora os poetas. É claro que se pode argumentar que não era necessário chegar ao ponto de exilar os poetas e que bastaria regulamentar a sua prática por meio de algumas leis bem direcionadas. Por que levar a radicalidade ao ponto de exigir a sua partida? Será porque os respeita demais para lhes pedir que se submetam e obedeçam ao Estado? Não exatamente, e é a este ponto que o livro III volta. O diálogo, novamente entre Sócrates e Adimanto, evoca a formação daqueles que são chamados «guardas», que têm a vocação de se tornar a futura elite intelectual, física e moral dos cidadãos e, portanto, de desempenhar um papel crucial na nova Cidade. O que aconteceria se a poesia conseguisse seduzi-los, ou seja, desviá-los do seu caminho correto, se os colocasse num estado de transe, fora de si mesmos, onde já não se controlariam? A sociedade como um todo estaria em perigo. Os guardiões devem ser apenas guardiões, inteiramente dedicados a essa função, explica Platão, da mesma forma que os sapateiros devem ser sapateiros; os camponeses, autênticos camponeses e os soldados, verdadeiros soldados: cada um cumprindo precisamente o seu dever ao serviço da comunidade. Com o seu domínio da imitação e do jogo, os poetas são certamente artistas transformistas com um talento extraordinário, mas não têm um lugar fixo na Cidade, e o filósofo conclui que é imperativo que exerçam a sua arte noutro lugar. Trata-se de uma forma de censura? Os poetas excluídos são, como diríamos hoje, «cancelados»? Cuidado com o anacronismo, pois Platão insiste, ao mesmo tempo, que eles devem ser venerados e glorificados: é apenas no plano político que os condena, sem que isso diminua em nada a estima que tem por eles!

No entanto, nem todos os poetas serão expulsos, mas apenas uma parte. Serão bem-vindos e autorizados a permanecer aqueles que, embora «menos agradáveis», produzirem obras consideradas «úteis», ou seja, aqueles que imitam o discurso dos homens virtuosos. O leitor de A República é então tomado por uma dúvida: não haverá o risco de se chegar a uma arte moralizante e ingénua, onde os «bons» triunfam sempre no final, como nas histórias simples, previsíveis e padronizadas que hoje se servem às crianças? A um resultado servil como era a arte soviética, supostamente realista e conforme aos princípios da ideologia estalinista? A menos que Platão esteja aqui a evocar a sua própria prática, na medida em que os textos que escreve, sem procurar a poesia por si mesma, são reproduções das palavras de Sócrates redigidas com um objetivo educativo e edificante...

A ambiguidade de Sócrates e o antídoto para os happy few
O princípio da «rejeição absoluta da parte da poesia que é imitativa»
é reiterado com veemência no início do livro X, o último da República, no qual Sócrates critica repetidamente Homero, embora confesse que sente por ele uma afeição tão profunda e um respeito tão grande que lhe custa expressar-se livremente. Mas os factos estão aí: na prática, Homero foi de alguma ajuda para os legisladores? Ele «foi realmente capaz de formar homens e torná-los melhores»? É preciso reconhecer que, apesar da sua aparência maravilhosa, a sua poesia não é virtuosa e que «o mal que ela pode causar às pessoas de valor – e apenas um pequeno número é exceção – [...] é, por assim dizer, o mais terrível». Esta fórmula é intrigante: é possível resistir à influência negativa da poesia? Platão evoca, de facto, a existência de um certo «antídoto» (595b) que não é outra coisa senão «o conhecimento do que as coisas realmente são». Por outras palavras, e no contexto platónico, é preciso já ser filósofo e saber distinguir bem a realidade da ficção para poder apreciar a poesia como se deve e sem risco de danos!

Com tal elitismo, a conceção de Platão está nos antípodas dos nossos ideais democráticos atuais, que promovem a acessibilidade da arte para todos, incluindo o público jovem, com o objetivo de despertar a sua sensibilidade. O mesmo se aplica à sua decisão de banir os poetas, o que é desconcertante do ponto de vista de uma sociedade como a nossa, que promove a abertura, a tolerância e a criatividade artística. Sacrificando a arte à política e à moral, Platão prefere tratar todos os cidadãos como crianças imaturas e protegê-los contra qualquer forma de subversão que possa prejudicar o desenvolvimento da sua racionalidade, que corresponde à sua parte nobre, destinada a comandar a parte sensível. É legítimo questionar, no entanto, se o remédio que propõe não é pior do que o mal e se a exclusão da Cidade não é também o reconhecimento de um fracasso em fazer coexistir, ou mesmo dialogar, diferentes faculdades dentro da alma.

Os poetas e os artistas não dão também a pensar, despertam o gosto pelo belo, não são guias no caminho do bem, como Homero foi para Sócrates? E quem aceitaria viver numa sociedade que só admitisse como poetas funcionários públicos ao serviço de um discurso moralista e de sentido único? Ao querer monopolizar o pensamento e governar tudo na sua Cidade, Platão corre o risco de ficar sozinho.

Recurso e Pobreza, lançamento

«Je cherche en même temps l’éternel et l’éphémère»
(Georges Perec)

 Hoje, celebramos essa coisa estranha, incompatível com qualquer teoria evolucionista ou criacionista, a que chamamos poesia, cujos jogos de linguagem resultam dos desvios, amplamente tolerados, mas não excessivamente aleatórios, às normas linguísticas, que, aliás, ajudaram a constituir. É assim que se autoriza o poeta a decidir onde termina uma linha, onde põe maiúsculas ou como usa a pontuação. Pode até grafar onomatopeias e fazê-las produzir sentido. Por outro lado, como um poema raramente vem com um contexto pronto a usar, o leitor ainda possui uma grande margem de ação. O sentido final, mas nunca fixo, de um poema é, portanto, uma aventura hermenêutica, uma pontaria afinada sem alvo, para a qual é necessário invocar os grãos de loucura do próprio Hermes. É por isso que Terry Eagleton nos avisa de que «A poesia é a mais complexa forma de discurso imaginável.» (Como Ler um Poema). E, na recôndita metafísica da Floresta Negra, Martin Heidegger descobre que ela é a própria morada (Heimat) do Ser, a única via de acesso às coisas mesmas que aparecem no ente.

 O que faz, então, aqui um pobre diabo que dedica mais tempo a ensinar, escrever e ler filosofia — embora não seja um escravo acrítico do racionalismo instrumental —, a jogar ténis do que a imergir na constelação da linguagem com o máximo poder demiúrgico; espaço-tempo onde o caos se ordena e a ordem se caotiza, onde a vitória na desordem é mais importante do que uma folha de Excel? Só pode ter sido uma decisão pharmakon: da Tatiana em convidar-me; de mim em aceitar. Aqui estou eu… sugerindo um pedido de piedade, como faziam os extraordinários Gregos para amansar o auditório. Tatiana, antes tivesses escolhido um crítico universal, desses que medram com facilidade na nossa terra, e sabem incendiar o público, porque há anos que cospem fogo, que boxeiam no vazio; que, como nos alertou Nietzsche, são feiticeiros que em vez de criarem algo a partir de nada, criam o nada a partir de algo, deixando, por onde passam, um rasto radioativo. Mas se me escolheste — no que isso teve com certeza de fortuito — foi também porque tu própria admites que os teus poemas não ofendem: «às vezes os meus poemas cometem esta grande falha / pela qual queria pedir antecipada desculpa / não ofendem ninguém» («catástrofes a sério»).

 Conheço Tatiana Faia há anos, li todos os seus livros, muito dos seus textos, ouvi bastantes dos seus discursos e, sobretudo, conversei várias vezes com ela sobre tantas coisas humanas, demasiado humanas; sei, portanto, porque gosto dela. Não será principalmente pela sua pureza (que, aliás, sou incapaz de calcular, ao contrário de tantos neotorquemadas que por aí pululam) mas sim pela sua complexidade. Que se reforça com Recurso e Pobreza, o livro da Tatiana que mais me marcou, e que, em todos os dias dos últimos dois meses, me queimou um pouco mais. Não porque fosse o último e tivesse evoluído darwinisticamente, mas porque nele o seu olhar, atento ao interior e ao exterior, se interessou mais do que costume pelas estrias, por vezes minúsculas, que ligam e desligam as membranas da vida. Um olhar acompanhado por recursos estilísticos que lhe oferece as lentes apropriadas a cada circunstância; não para abarcar tudo, mas para pairar sobre o que mais importa.

 Vou agora, com as devidas reservas, expor algumas linhas da minha leitura de Recurso e Pobreza. Utilizarei apenas uma vez a enumeração, porque depois de assistir ao lançamento de um livro (também ele de poesia), no qual a lançadora — investigadora científica e moral muito promissora — esquartejou a obra com uma tática impiedosa de quatro vezes quatro enumerações (truque que agora deve ensinar nas mais altas esferas da academia vocacionada para a congelação), prometi vigiar com rigor as minhas tendências taxonómicas. Contudo, não posso fugir à evidência de uma geopoesia: quase todos os poemas deste livro têm a marca do tempo e do lugar, do Genius temporis e do Genius loci. Tatiana Faia assinalou o mês e ano, o lugar ou os lugares: tempo presente e tempo ausente, o da durée, desdobrado no interior do sujeito poético e do poema; lugares presentes e ausentes, visíveis e invisíveis, um vasto mundo virtual que, por exemplo, nos permite comprovar que uma rua é uma rua, ou melhor, que uma certa rua está em devir-rua. É por isso que talvez possamos entender a sua poesia como um prolongamento do olhar (que, no entanto, quando observa se sabe observado); sentir, num pequeno vislumbre, que a Tatiana deseja, creio, ser lida com uma hermenêutica menor que se aninhe na sua visão. E se o seu olhar abre e fecha observações, o que realmente importa é a duração e o meio, não onde começa ou acaba, mas a viagem entre esses dois pontos, que são sempre imaginários. («caminhamos pelas montanhas / como se pudesse regressar do abismo / tu à frente, eu atrás / tu com uma corda às costas / calças curtas, uma camisola de malha / às vezes perdes-te à minha frente no trilho / pelo nevoeiro, o azul / da tua camisola confunde-se / com o cinzento da montanha / e eu chamo o teu nome / um som em perfeita queda / como a água ou a noite descendo / aguçada sobre os penhascos». «antonia»).

Um olhar que nos ensina a ver, ou melhor, já que depois de Sócrates deixou de existir boa pedagogia, nos convida a acompanhá-la, numa cumplicidade que acrescenta mundo ou que testa as suas próprias intuições. Um com-observar que não garante, contudo, um final feliz: às vezes podemos prosseguir o caminho a coxear. Não se trata, pois, de edificar, de extrair o excecional do vulgar, mas de uma sagração do existente. Talvez só assim se inventem novas possibilidades de vida: transmutar os sistemas de adversidade em sistemas de oportunidade, visto que o viver deve ser mais autoafirmação do que conservação. Mesmo se, nos tempos que correm, quase nenhuma odisseia possua a sua Ítaca, não parecendo haver nenhuma utopia disponível.

Tatiana Faia deseja saber o que é o humano, espantando-se tanto com a sua perfídia quanto com a sua bondade. Parece que tudo o que é humano lhe é estranho, estímulo constante para a passagem da curiosidade ao discurso, poético ou outro. O seu poema «a lição» é o exemplo acabado disso. Mas há muitos outros fragmentos para uma antropologia poética, por exemplo: «o ódio nas terras pequenas / não se rarefaz como nas cidades / chega até à mais ínfima partícula do sangue / mata por calor, irracionalidade / e uma pobreza partilhada / com uma impaciência / que reconhece de olhos fechados / que as múltiplas intrigas / se podem esvair num ápice / perante a mais perfeita crueldade da terra» («história quase apócrifa dos mortos em armeni». No final, estamos certos de que Tatiana está à altura das coisas, dos homens e dos semi-deuses.

Essa necessidade de apaziguar o espanto através da compreensão, da semi-compreensão, obriga a observar o mundo sensível. Será, então, uma poesia fenomenológica. Com ela, traçamos linhas sobre o caos e arrumamos um pouco o nosso espaço mental. Entendemos melhor o crime e castigo das «mãos sujas», o desespero de um curador com génio organizador a mais para a arte disponível, a pressão mortífera da paixão, a falsa beleza dos abismos ou o valor de «mil pesetas». Mas, muitas vezes, trata-se de uma fenomenologia lírica, o que só acrescenta força à observação. Noutras situações, o olhar da Tatiana detém-se em experiência que ainda não aconteceram. Potência pura e capacidade de reinvenção: a poesia da Tatiana ajuda-nos a mudar de pele — talvez mais do que o amor, o trabalho, a guerra ou a amizade — porque nos fornece amostras de outros mundos.

Apesar disso, as palavras parecem estar acima do tempo: «mas seria uma desculpa fácil dizer / que as palavras por que vivemos / não nos podem erguer acima / do tempo / breve de uma vida humana» («as mãos dos poetas»). Acima do tempo, mas não fora do corpo: «para que sopro a sopro, palavra a palavra / lentamente te recordes / de que a terra nos usa todos os dias» («ver pior ao perto»).

 Deixem-me realçar a arte do contrapé, que Tatiana Faia pratica com a desenvoltura de quem prefere os impasses, as hesitações à linha reta. Desde o aparecimento da cultura da ilusão e da criação do espetador estético, conhecemos o valor das peripécias, tanto que a maioria delas já foi codificada. Mas a Tatiana introduz a perplexidade ao nível micro, não na estrutura do poema, mas dentro ou entre os versos, no lugar onde habitualmente encontramos continuidade. Isso permite-lhe transubstanciar as palavras (a favor e contra os formalistas russos: tudo pode ser outra coisa, os sentidos articulam-se, imbricam-se, mas também se contradizem e digladiam). Por exemplo: «apaixona-te / mas com o ritmo certo / lentamente / é muito importante / que não seja com demasiada intensidade / e demasiado depressa» («poema sobre como queimar a ferida e passar a viver melhor nas cidades». «que não te menti quando te disse / que te quis mais até do que me diverte estar vivo» («anunciação, filippo lippi, ca. 1453»).  «estou a abrir todas as janelas / para deixar entrar a noite / e há muito que nada / do que me acompanha / é uma educação» («onde»).

A sua poesia contém também uma preocupação com o logos partilhado, com o diálogo. Nos Gregos aprendemos que o pensamento é relacional, que ninguém pensa realmente sem ser incitado a isso — forçado pelos fenómenos, mas sobretudo pelo logos de outrem. Em vários poemas, o sujeito poético dirige-se a alguém, mais ou menos real, a outrem a posteriori ou a priori. («é verdade, gabriel, sou vulgar / porque sou voraz como o mundo» «anunciação, filippo lippi, ca. 1453»). Deste princípio surge um estilo que a distancia daquela poesia que se arroga o direito de acrescentar à realidade suplementos de metafísica, para a encaixar, à força se for preciso, nas grelhas do bem e do mal, da verdade e da mentira ou da pureza e da impureza. A poesia da Tatiana mantém-se no mundo mediano, onde raramente medram os presunçosos e os imbecis: um espaço que não pretende ser centro, constituído por periferias, nas margens da poesia-sol.

Não havendo poeta que se preze que não experimente algum exercício de metapoesia, procurámos, quase em vão, neste livro esse dispositivo tão apreciado (seria interessante psicanalisar este autorreconhecimento). E quando o encontrámos (em «as constelações» e «catástrofes a sério»), fomos surpreendidos por uma espessa camada de ironia. Em vez de nos revelar os segredos do ofício ou os fulgores semidivinos dos poetas que são «meia-noite porque querem», os poemas indicam as mil e uma maneiras de um poeta morrer ou os falhanços do ofício — evanescências banais, como a de qualquer outro mortal. Pior ainda, porque a expetativa era de uma certa grandeza: libertar uma alma um pouco mais redonda do que a média.

Por tudo isso, aceitamos que à nossa atual falta de sede, se contraponham os dois últimos versos do poema «os protestos»: «temos cada vez mais sede / e há cada vez menos água». Assim, conclui-se que os poemas sobrevivem às tragédias que descrevem ou sugerem, o que fica comprovado pelo apelo desesperado, mas justíssimo, depois de Auschwitz, para se deixar de escrever poesia. Ainda bem que sobrevivem: como poderíamos mudar de vida sem eles?

Sete andamentos em torno de Córtex de Hirondina Joshua

Primeiro andamento:  um possível auto-retrato

  

pássaros chamam: — "hirondina"
convocam a limiar vocação das imagens:
o que assusta é a nitidez:
a possibilidade da fala em exercício.
a tirana condição de escapar do sangue.

 

Segundo andamento: Exterioridade em relação à língua

Córtex tem um conjunto  de poemas, que poderíamos dizer dissecam a língua, e a anatomizam em experiência criativa. Trata-se aqui de um olhar de exterioridade em relação à língua, pensada como heterogeneidade, percecionada e sentida como léxico objectal, e ritmo sintáctico, decomposto e ou reconfigurado.

A poeta moçambicana fala outras línguas como o chope  e o changana por exemplo, a par do português; quero com isto dizer, sem entrar em simplificações, que a sintaxe da língua portuguesa se reconstrói num cruzamento de outros ritmos e a escrita é pensada como quase um trabalho de escultura rítmica, lexical e sintáctica , desconstruindo  a força do sentido normativo das estruturas da linguagem.

de repente as palavras estão na minha cara
brincam no meu rosto
basta olhar os animais diante da pedra
nos corredores da insónia
os fortes animais trilham na noite
pelas mãos cruzam a remota
barbárie  
alumiam
velocidades.
às vezes o rosto é
palavra  que os
animais trilham.
 

Terceiro andamento: “Não se pode escrever com as chaves no bolso”

Um dos poemas diz: “Não se pode escrever com as chaves no bolso,  implicando que a porta do sentido é múltipla e nas “gargantas ancestrais” outras línguas se movimentam. Leia-se o poema:

o poema rebarbativo exalta a inocência nos pontos cruciais da fala
poderia trazer o sol na saliva
nas gargantas ancestrais da vocação  erro ao chamar-lhe falo
não se escreve permanentemente com as chaves no
bolso    
nem com a gnose diante dos olhos

O Córtex é a sede do entendimento, da razão. Se não houvesse córtex não haveria linguagem, percepção, emoçãocognição e memória. Aí se situam aspectos básicos da percepção, movimento e resposta adaptativa ao mundo exterior; e outras importantes actividades como a linguagem e o pensamento abstracto.

Tomando em linha de conta esta relação entre córtex e linguagem, o livro de Hirondina Joshua permite, entre vários veios temáticos possíveis de leitura, revelar esse trajecto pela observação da língua enquanto materialidade.

Quarto andamento:  um espaço kórico da linguagem

Ocorre-me aqui a distinção que Julia Kristeva estabelece entre dois planos e modalidades constituintes da linguagem e da significação, um semiótico, pulsional, rítmico, que designa como Kora, pura significância, anterior á figuração, e outro simbólico, lógico, lugar de significação, organizado em discurso, planos que se interpenetram.

Esse plano rítmico, semiótico, é fundamental no livro Córtex, e corresponde talvez àquilo que Mallarmé designou como Mistério das letras,  escrita indiferente ao intelegível, ao sentido, à noção de sujeito; um espaço musical e dispersivo:

desfaço o mioma nas regiões da dor o que fulgura está nas danças
a gravação do solo
o idioma atravessado 

Não se faz um poema com ideias, mas com palavras, afirmava Mallarmé. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser também encarado como um objeto em si mesmo. Cito o poeta: "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma ideia que ele termina o seu poema experimental:  Un Coup de Dés jamais n’abolira l’hasard. (Um lance de dados nunca abolirá o acaso).

 

Os poemas de Mallarmé representam um esforço para esgotar as formas poéticas tradicionais, como nos sugere um dos versos do poema acima citado: “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados. Considerado um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, promoveu uma grande revolução na poesia durante a segunda metade do século XIX e, mais tarde, influenciaria movimentos vanguardistas do século XX, principalmente os de vertentes futuristas e dadaístas.

 

Quinto andamento: como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”

 

Poderíamos dizer que a poesia de Hirondina Joshua também se radica nessa família ancestral de desarrumação das estruturas linguísticas, e que no espaço da língua portuguesa, a poeta vai ler/recolher, muito especialmente, em Herberto Hélder uma vocação, que sintetiza a surrealidade, não em expansivo, mas em económico e contido verso, como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”.

queria falar das linhas africanas nos orifícios dos rinocerontes
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
alguém diz não entender a veia no meio da cara dos rinocerontes
a severa desordem do ouro no centro das paixões
o chifre equilibrado no cimo dos poemas

Com efeito neste livro parece que o córtex está ameaçado de uma certa desorganização lógica e sintáctica da linguagem,  de um certo “caos”, recuperando a kora rítmica da linguagem, “antes de o poema parir o mundo”:

o mais terrível era o personagem saído das esferográficas gigantes
chamando pelas cidades
agarrado ao silêncio mortal
antes do poema parir o mundo
com as formas cálidas dos fonemas.

Sexto andamento: “Que farei com esta boca feroz?”

 

Roland Barthes em A Lição afirma que “A língua é fascista”, porque obriga a dizer, na sua normatividade sintáctica; a poesia e a literatura trapaceiam a língua, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem. Uma espécie de ferocidade e de manducação da língua, diríamos, retomando um verso da poeta, que nos diz: que farei com esta boca feroz?

 

de súbito vejo um animal carnívoro diante do poema

basta ter fome, a fome vem.
alucino ao esquecer a potência maior dos olhos
escrever é uma demência que patina a cada instante

 

Sétimo e último andamento: “o braço anterior, o lado etéreo da mão”

Esse espaço kórico, rítmico da linguagem - “o braço anterior, o lado etéreo da mão” - vem representado no livro de Hirondina em alguns poemas, associados ao espaço uterino  de abertura ao mundo, à infância primeira, lactente, lactência, câmara pulsional anterior  à noção de sujeito:

construo a ferocidade no seio da mãe,
o resto que vai à boca
desmancha o lado etéreo da mão. 

braço anterior ao líquido.
escolho olhar antes de deitar a pálpebra no rosto
o buraco na minha cabeça aquece
— pai! vem e me olha.

 

A poeta Hirondina Joshua constrói o poema, abrindo o córtex, imergindo no caos da pulsação inicial dos sons, nesse lugar sem luz, em que “está escuro”, para auscultar e simultaneamente analisar, construindo, a formação da linguagem e do verso.

   está escuro acendam a luz
—  a luz está acesa

a cegueira um cheiro que se move no centro do caos
acendam os peixes nas vulvas salgadas
ou dentro da fala toquem na ortodoxa abundância das imagens

Ana Mafalda Leite
(Itálicos meus)

dois ou três movimentos em Leopardo e Abstracção 

(13 de novembro de 2021)

 

​​Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema  fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.

Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”. 

Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:

 

“os teus pensamentos têm a violência 
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)

“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)

“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)

“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego 
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável 
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)

“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)

“a rapariga que trabalha sentada à minha frente 
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)

“o nosso tempo é cortado 
numa série de momentos 
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)

Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário -  enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:

 

“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto (leçon de tenèbres, p. 44)  

Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção,  mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:

“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44) 

E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.

“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas (p. 58) 

“oito caixas de kleenex” (p. 52)

“o mesmo café à mesma hora

(...)

este meio copo de cerveja barata” 

“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos 
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49) 

“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:

“os muitos fragmentos 
de vasos venezianos ou bizantinos 
fragmentados em centenas de cacos 
que uma mão teima em reconstruir 
povoando de remendos a sala 
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12) 

“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)  

Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).

Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:

“como adormecer 
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56) 

Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).

Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã. 

Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte: 

“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)

“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16) 

“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23) 

“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)

“uma força confiante como a dos leopardos 
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34) 

“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36) 

“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42) 

“o mundo fechou-se 
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57) 

“o girar cada vez mais rápido 
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42) 

“inesperado centro a que
com velocidade desarmante 
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44) 

“ele roda no sentido do relógio 
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64) 

E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:

“a madrugada há de romper de novo 
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20) 

“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20) 

“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25) 

“mas quando o dia começar 
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33) 

“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34) 

“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28) 

“não sinto que tenha autoridade 
para pensar no medo e na luz 
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48) 

“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro 
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43) 

Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):

“é como ser um deus do sono ou da morte 
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno 
onde vai apontando nomes como um delator”  

E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt.  Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta. 

Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?".  Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo  movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei 
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde. 
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice 
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma 
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.

(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

Isabel de Sá. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

Mas o nosso amor resistirá
 às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
 da felicidade universal.

 

        Isabel de Sá, A Alegria da dúvida.

 

 

A beleza de um texto fala pelo seu fogo. É difícil explicar o fogo. “Porque sem beleza não se aguenta estar vivo” (p. 11) é o título do primeiro poema desta antologia de poesia de Isabel de Sá com organização de Graça Martins. De títulos surpreendentemente belos, feitos de imagens vitalíssimas que se querem dentro, que se querem saber de memória: é possível um poema transformar-se no tecido do próprio coração, como o ar o sangue, a poesia, tudo a transformar-se também em nós, no nosso próprio tecido, estamos também feitos de imagens, de histórias, como diria Mia Couto em O Universo num grão de areia (2019): “A humanidade nasceu em África. Mas podemos também dizer que a humanidade nasceu da capacidade de produzirmos e contarmos histórias. Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados” (COUTO, 2019, p. 27). E por isso ter os pés no chão é uma revolução e escrever é também caminhar, traçar uma rota segura, da poesia de Isabel de Sá poderia dizer-se, como Camus “escrevo como nado, porque o meu corpo assim o exige” (CAMUS, 1978, p. 87); os poemas de A Alegria da dúvida celebram um mergulho na vida em que tudo se mede através do corpo (enquanto escala humana e divina), celebrada através de uma reivindicação urgente no “poder redentor das palavras” (p. 23), na esperança como um mínimo relâmpago que ainda assim nos ilumina e ilimita por dentro; a sensação de fluidez é contínua e vital, na celebração da memória e do amor é que estes poemas nascem como constelações que se tocam, há por isso uma infância e um fogo e uma ressurreição contínua que atravessam, como se a nado, cada um destes poemas, e nisso as palavras são redentoras e são libertadoras; livres de constrangimentos, e de imposições linguísticas, e nisso se pode afirmar que a poesia de Isabel de Sá é livre, digna, verdadeira, transparente, nítida e concreta, e por isso tudo é bela, habitada pelo espanto e pelo estremecimento de imagens que nos enchem e humanizam no seu sentido mais pleno, no seu sentido criador, de verbo: “Tudo o que disseste / no desaforo da paixão / só podia incendiar a vida inteira / e encher de esperança o universo” (p. 31), a esperança é aqui parte indissociável do corpo e da experiência amorosa, que faz lembrar um verso, muito feliz e cheio do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “A poesia deste momento inunda a minha vida inteira” (ANDRADE, 1978, p. 16). É desta inundação (enchente de luz, de amor, de paixão, aguda, estrema e central), que os poemas de Isabel de Sá nascem, disso só podemos ter a certeza, como de uma esperança, redentora que nos cure da “mentira de um amor que acaba” (p. 35). É talvez para resistir à mentira de um fim que se escreve sempre, e nisso A Alegria da dúvida é um livro de resistência: resistência contra o acabado, o pré-feito, resistência contra o estéril e contra o vazio, resistência contra o medo e contra qualquer imposição, contra o ódio e o ignóbil, contra os muros de fogo e a injustiça. Escreve-se para resistir, para insurgir, para dizer eu sou sendo ao mesmo tempo tudo em toda a parte, escreve-se para celebrar e aproximar, para preencher com vida e para acender a vida: “Se a arte /não for insubmissa / se não permanecer / desobediente / e não escapar ao controlo / é o quê? // Se a arte / não for inssurrecta / se não permanecer / pedra viva escaldante / é o quê /a arte / se não disser eu sou?” (p. 37).

 

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

CAMUS, Albert. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1978.

COUTO, Mia. O universo num grão de areia. Lisboa: Caminho, 2019.

SÁ, Isabel de. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

 

 

        Nuno Brito, 30 de Julho de 2021.