Como alimentar uma guerra

Victor Gonçalves, traduz um artigo publicado no jornal Le Monde do historiador russo Sergei Chernyshev (cf. pequena nota no final). Interessa-lhe reverberar essa perspectiva porque, à semelhança de Svetlana Aleksievitch no magnífico O Fim do Homem Soviético, Chernyshev mostra uma realidade que escapa à maioria dos analistas: a de como o «verdadeiro povo russo», provinciano e conservador, patriota e pobre, sem mundo e com uma noção arcaica de heroísmo alimenta de bom grado uma guerra meio idiota, assimétrica e injusta (jurídica e moralmente). Alimenta-a nas urnas e com soldados, dos bons: acríticos e capazes de se sacrificarem pela Heimat. Os filhos desses combatentes honram e admiram os pais. Não estamos, pois, próximos do fim da agressão russa à Ucrânia, a ideia de que se combatem nazis e o Ocidente por inteiro permanecerá durante muitos anos nos cérebros confinados a horizontes minúsculos dos camponeses e dos habitantes das pequenas cidades da Rússia provinciana. Um maná para Putin e seus companheiros de fortuna.

«Os meus pais viveram durante vinte anos no “sector privado” de uma grande cidade. É o que os russos chamam a um bairro onde existem casas individuais ou pequenos bairros sociais. É um canto de vida rural integrado no tecido das grandes cidades. Não há estradas alcatroadas nem redes de esgotos (embora todos tenham instalações sanitárias); o telefone e o gás chegaram há cerca de quinze anos.

Ter gás significa que, no inverno, já não é preciso carregar carvão em baldes do barracão para o fogão duas ou mesmo três vezes por dia. O gás continua a ser um luxo, não está disponível em todo o lado. Há cerca de dez anos, começaram a aparecer carros estrangeiros diante das vedações. Nos últimos cinco anos, nada mudou.

Este verão, depois de um fim de semana, fui buscar o meu filho a casa dos meus pais. “Vem antes das 10 horas”, disse-me a minha mãe. Cheguei às 10 em ponto. Às 11, estava a ser organizado um funeral numa rua próxima, no “sector privado”. Às 11 horas, chega o sobrinho do “dirigente” do bairro. Ele é uma pessoa respeitada, uma espécie de chefe. O seu sobrinho, que morreu durante a “operação militar especial”, deve ser tratado com dignidade; as pessoas devem vir honrar a sua memória.

Mobilizado na primavera, combateu durante seis meses, depois voltou de licença e partiu novamente. No próprio dia em que chegou à Ucrânia, esteve debaixo de fogo. Só regressaria a casa num caixão de zinco com uma pequena janela selada. Eis porque tive de ir buscar o meu filho às 10 horas: a minha mãe sabe que não vejo com bons olhos a sua participação nesta comemoração.

Na rua dos meus pais, há outro “herói de guerra”: um ex-soldado Wagner, antes um criminoso empedernido, que vive com os pais. Desde que me lembro, ele esteve sempre na prisão, por pequenos furtos ou atos de vandalismo. Saía e, passados alguns meses, voltava a beber e a roubar e acabava de novo atrás das grades. Se, durante esses meses de liberdade, desaparecesse alguma coisa de um jardim ou de uma casa do bairro, ele era o primeiro a ser suspeito. Hoje, tem uma medalha e um carro novo. Levou os pais a passar férias junto ao mar. Eles ter-se-ão enchido de lágrimas de orgulho.

Do outro lado da rua, há uma mulher que trabalhava como condutora de elétrico — o que talvez explique o facto de ser conhecida pelos seus palavrões. No último ano e meio, diz que o genro tem pensado cada vez mais em alistar-se. Afinal, os empréstimos não se pagam sozinhos. Um outro vizinho morreu por causa dos seus empréstimos. Afundou-se no álcool, o coração falhou e, antes da primavera, toda a rua veio enterrá-lo também.

Vivi nesta rua durante dez anos. Os meus pais ainda lá vivem. É aqui que têm a sua banya [“banho de vapor”], a sua garagem, a sua horta — não como “esses apartamentos como os vossos, onde se vive uns em cima dos outros”. Quanto aos veteranos Wagner do bairro... A questão hoje é: onde é que eles não estão? Penso nesta rua sempre que vejo um daqueles debates clássicos do YouTube entre emigrantes “liberais” que explicam que, sob a pressão insuportável das sanções, não vai demorar muito até que a população compreenda que o “regime de Putin” lhes tirou tudo. As pessoas compreenderão e, esperemos, revoltar-se-ão. Talvez não se revoltem, mas pelo menos sabotarão o regime. Ou algo do género.

Álcool e prostitutas sem limites

Ludmila Petranovskaya, uma psicóloga de renome, tentou recentemente fazer uma lista de todas as perdas sofridas pelo povo russo, para mostrar que “nem todos os russos beneficiam com esta guerra”. A sua lista inclui: o colapso da moeda e dos valores mobiliários; o encerramento global das fronteiras aos turistas russos; o fim das oportunidades de estudo no estrangeiro para os jovens; a restrição dos direitos e liberdades civis; a degradação da educação e da cultura; a separação das famílias devido à emigração, etc. Depois de ler esta lista, agradeci mais uma vez ao destino por não ter nascido em Moscovo e por ainda não ter perdido todo o contacto com a realidade.

Porque se considerarmos que dois terços da população russa são “o povo russo”, então “o povo russo” não perdeu nada disso. Pela boa razão de que nunca o teve. A última vez que o cidadão comum teve dólares nas mãos foi em 1997, e não passou de uma curiosidade. Nunca foram ao teatro e nunca se aperceberam de que os maiores realizadores tinham abandonado a Rússia, deixando-os também sem nada.

Os seus filhos frequentam a mesma escola que eles próprios frequentaram. Por vezes, com a mesma professora, que tem agora mais de 70 anos. Nunca lhes ocorreu que a educação pode ser dada sem gritos, ou que não seja proibido andar no relvado. E se as suas famílias foram “separadas”, foi apenas pela prisão, mobilização ou contratos de serviço militar. Nunca partiram para a Geórgia ou o Cazaquistão — porque nenhum dos seus pais foi mais longe do que a sua própria cidade.

Os preços subiram nas lojas. Mas quem é que está a contar com as lojas? As pessoas têm batatas e frascos de pepinos nas suas caves para todo o inverno. De uma maneira ou de outra, havemos de aguentar. Por isso, no final, as pessoas não perderam nada. Porque não têm nada de especial a perder. Mas o que é que ganharam? Bem, ganharam muito. E, antes de mais, muito dinheiro. Na cidade natal da minha mulher (não tão grande como a nossa, mas muito mais industrial), um homem voltou para casa [dos combates] com 3 milhões de rublos [30 595 euros] que ele e os amigos delapidaram em dez dias, 300 000 rublos por dia cada um, em álcool ilimitado e prostitutas: isto é que é boa vida!

Muito dinheiro sem grande esforço

Os que têm família regressam e vão passar férias à beira-mar, compram apartamentos e trocam de carro. Além disso, têm a sensação de fazer parte de algo grande. Tal como os nossos avós lutaram contra o fascismo, nós estamos a lutar contra o nazismo na Ucrânia (e onde quer que ele se encontre). Ao mesmo tempo, estamos a lutar contra os gays, os judeus, todo o Ocidente, os maçons, todo o mundo.

A geração mais velha regozija-se com o regresso dos pioneiros, com o treino militar nas escolas, com os uniformes escolares e, de um modo geral, com tudo o que marcou a sua juventude. Já não era sem tempo. Os jovens de hoje iam dar-se mal! Por isso, há muito a ganhar, e tudo isto é feito com muito pouco esforço, muitas vezes sem sequer ter de sair do sofá.

Então, o que é que podemos oferecer a estas pessoas que, graças à guerra, ficaram ricas, enobrecidas aos seus olhos, como reis? Filmes sobre os palácios de funcionários corruptos? Mas as pessoas já sabem há muito tempo, desde os anos 90, que estão a ser roubadas. Nada de novo. Discussões sobre o facto de os que ficaram serem culpados dos crimes do regime? Debates sobre a democracia e os direitos humanos? Relatos trágicos sobre a prisão de Evguenia Berkovitch [encenadora detida em maio] ou de Grigory Melkonyants [codiretor do grupo independente de observação eleitoral Golos]?

Mas quem são exatamente estas pessoas? Ninguém falou delas na televisão ou na Internet. Esta torrente de dinheiro — que, mesmo depois de anos de trabalho, nunca ninguém teria ganho —, associada a um tal sentimento de grandeza, é um cocktail explosivo. É porque as pessoas se recusam a compreender isto que ainda se surpreendem com o facto de, nas últimas eleições, a maioria dos habitantes das zonas rurais (e não das grandes cidades) ter votado em governadores nomeados pelo Kremlin e pelo “partido do poder”, apesar de terem sido eles a suportar o custo da mobilização.

Adesão sincera

Foi este cocktail explosivo que levou as avós às urnas — com vestidos comprados há vinte anos — para votarem no regime. A sua adesão é sincera: o regime, acreditam, está a preparar-se para construir um grande país, livre dos seus inimigos, claro. Nas nossas conversas de intelectuais que esperam que o pesadelo acabe em breve, esquecemo-nos disto: as centenas de milhares de homens e mulheres que já participaram na guerra atual e no processo de “reconstrução dos novos territórios” têm milhões de filhos.

E esses milhões de filhos estão convencidos de que os seus pais e mães estão a fazer um ato heroico. Acreditam sinceramente nisso porque não conseguem conceber que os seus pais sejam monstros. Estes milhões de crianças usam todos gravatas tricolores no dia 1 de setembro, o primeiro dia de escola, veem os mesmos programas na televisão, ouvem as histórias dos seus pais sobre os ukropy (termo pejorativo para designar os ucranianos) e atravessam, com ou sem os seus pais, as ruínas de Marioupol quando vão de férias à Crimeia.

Para que o arrependimento público após a guerra seja possível, teremos de esperar que estas crianças cresçam e tenham os seus próprios filhos, e que lhes seja explicado — a estas crianças que ainda não nasceram — que os seus avós cometeram atos indignos. É mais fácil ouvir falar de avós do que de pais. O arrependimento interno, e não apenas o arrependimento público, começou na Alemanha nos anos 70, precisamente quando os filhos dos filhos dos nazis se tornaram adultos.

Só, pois, no final da década de 2040 é que será possível falar das perdas que a sociedade russa sofreu efetivamente em consequência da guerra em curso. Nessa altura, pelo menos algumas pessoas estarão a ouvir. Nessa altura, aliás, os professores cujas carreiras começaram sob Brejnev terão finalmente deixado de exercer a sua profissão. Entretanto, o povo vive talvez o melhor momento das suas vidas. Claro que alguns deles regressam regularmente da guerra em caixões de zinco. Mas, pelo menos, toda a rua está lá para assistir aos funerais. E é isso que faz renascer os valores tradicionais.

Sergei Chernyshev, historiador, vive em Novosibirsk (Sibéria Ocidental), onde fundou várias instituições de ensino que continua a gerir apesar das pressões das autoridades. Tal como muitos opositores e ONG, é classificado por Moscovo como “agente estrangeiro”. Uma versão longa do seu texto foi publicada pela primeira vez em russo no site Sibir.Realii, a secção da Sibéria da Radio Liberty, um meio de comunicação financiado pelo Congresso dos EUA.»

Dois Templos

Não há luxo, nem opulência que ultrapasse a importância da primeira fase da vida, não há nada que satisfaça tanto como algo simples, que nos permita de alguma forma um vislumbre daquele tempo, algo que nos leve, por um momento, de volta, algo como o cheiro do musgo.

 

Ah a frescura

do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

na cara a frescura

do musgo em Ginkaku-ji.

 

Por isso entre o Kinkaju-ji e o Ginkaku-ji, o que me tocou mais profundamente, foi o segundo. Apesar do dourado ter habitado durante anos a minha vontade adulta, uma ideia quase mítica, contruída em parte com a ajuda de Yukio Mishima, uma vontade quase erótica de lhe pôr os olhos em cima, como de possuir aquele corpo, que depois do alívio da consumação, se torna apenas em algo demasiado real, levando o desejo,

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

preferir o que leva de volta às tardes passadas nas fragas a contruir casinhas com pedras de granito e paus de giesta, cobertas com musgo, ou à altura de fazer o presépio, os primeiros natais, com aquelas figurinhas de barro, quase brinquedos, mas com as suas sérias imperfeições, aquele cheiro, quase o cheiro da infância, que se trazia impregnado na jovem pele.

Por isso o ouro, ao qual reconheço o valor que me foi doutrinado, o magnetismo e a beleza que me atraem, perde para a humilde frescura do musgo que rodeia o templo prateado (Ginkaku-ji):

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

 

Quioto, Novembro 2023

 

Tratoria da Ubaldo

depois de subirmos as escadas da torre
alcançarmos a árvore no cimo
atravessámos a piazza vazia
e parámos para comer e descansar
na Tratoria da Ubaldo
onde um pirata cortês
nos conduziu à nossa mesa
e trouxe
uma garrafa
de Vino di Cazzo

di dove sei?
o louco local
di dove sei?
o seu corpo septuagenário
tremia de alegria
Portogallo!
Portogallo!
e cantou para nós
incitando-nos
a que acompanhássemos com palmas
a dança que
em nossa honra
fazia

Sobre o terramoto, à distância

Marija Dejanović
Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

Metade do edifício colapsou
Aquelas paredes que deram asma ao meu irmão 

A outra metade foi de onde
há vinte anos
um vizinho atirou o cão
e um par de anos mais tarde, a si próprio também 

Nos corredores
brinquei com Barbies
e cuspi aguarelas
para pintar a porta do quintal
quando ficava sozinha em casa

Ainda acredito
que não merecíamos os castigos
que se abateram sobre nós

Nas entranhas sinto o pássaro que voa sobre
as casas arruinadas
as traves fendidas
o pranto das bicicletas e as costas curvadas das pessoas

Atravessam em pijamas e chinelos
um mal estar que partilham
como que passando por águas profundas

Lendo
um amigo de infância escrever
que alguém devia finalmente deitar abaixo aquele velho
edifício
porque os seus tijolos caem no telhado da sua casa
sempre que a terra estremece
alguma coisa dentro de mim cai como um tijolo
e fica em silêncio

CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.