Preparação para futuro nenhum

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Um possível retrato do nosso tempo, infectado pela cacofonia quotidiana (talvez já não haja reflexões puras, amigas do universal), parece fazer-se em torno da noção de futuro. Noção preenchida por pensamentos e, sobretudo, sentimentos. Como pensamos e sentimos o futuro?

Em primeiro lugar, parece claro que o futuro já não ilumina o presente. Não se dá ainda o caso de assumirmos uma cosmologia geral de uma Idade de Ouro pretérita, mas em pouco tempo, e não apenas devido às atuais pandemia sanitária e crise ambiental (que por si sós têm força bíblica), dividimos por muitos a crença, ingénua diga-se, do progresso imparável, de um futuro que viria, como nalgumas religiões maiores, conjurar todos os males da humanidade.

Isso oferecia um capital de esperança incomensurável, sustentado em duas ou três novidades tecnológicas, embebidas, por sua vez, em retórica comercial e política. Para lhe resistir era preciso ou uma heterodoxia lúcida, pagando-se o preço do isolamento social, ou pertencer a uma comunidade de neo-selvagens, alimentada pela pose do guru e psicotrópicos biológicos.  

Hoje, a ortodoxia entrou em depressão, só se realçam as disforias, que acumuladas fazem já do futuro uma consistente distopia, esse não-lugar cheio de mal. O inferno parece estar à nossa frente. E aqui penso em duas alternativas (eu, que sou de um signo astrológico estranho): ou, como dizia Karl Valentim (comediante berlinense), aceitamos que “Dantes o futuro era melhor”, e caímos numa boa ou má resignação; ou, como escreveu Philip Roth, “preparamo-nos para futuro nenhum” (Os Factos – Autobiografia de um Romancista), como quem decide vestir-se a preceito para ser fuzilado em segredo.

Empobreceu-se a economia (sentido lato) da redenção, sem futuro e sem deuses (que, aliás, viviam nesse tempo), nem uma extrema coragem da simplicidade nos poderá afastar do abismo, que numa escala planetária será sempre auto-induzido. Pois é, o futuro é apenas o nosso futuro, podemos assim esperar, fora do egoísmo da espécie, que tudo isto não passa de uma pequena nota falsa na partitura infinita do universo. Recordo que, entre outros, Lars von Trier soube, em Melancholia, sentir isso mesmo antes de nós.