«Artes da Existência» vs. Autoajuda

Nunca li um livro de autoajuda. Porque sou snob, claro, mas também porque sou cético. Não acredito em milagres e tenho pouco jeito para a estupidez. Eis tudo o que parece haver para dizer. Tanto mais que acusar os outros nos oferece um bónus moral.

Mas como desconfio dos imperativos categóricos (contra, e. g., Kant e Valéry), sobretudo dos meus, questiono-me se não terei feito, obliquamente, uma qualquer tangente à autoajuda. E claro que fiz. Não uma «tangente», mas, em boa verdade, um mergulho. Confesso que imergi na autoajuda, mas numa autoajuda que julgo afastar-se, em elevação, do que me pode propor uma qualquer livraria.

Foi o filósofo Michel Foucault (ele não se considerava como tal, no máximo, dizia, era um jornalista, um historiador ou, em homenagem a Nietzsche, um genealogista) que consolidou a suspeita de que o «conhece-te a ti mesmo» da Grécia Antiga, verdadeiro conselho popular, certificado por Delfos, que Sócrates, através de Platão, inscreveu na cultura ocidental com a marca da filosofia, era o primeiro, e importante, passo para, sem condições a priori, nos ajudarmos. É que, como poderemos cuidar de nós, ou fazer algo de bom, se não nos conhecermos? É essa, aliás, a crítica que Platão faz na Carta VII (com muito de autobiográfico, afirmam os especialistas) ao tirano de Siracusa: como se atreveu ele a escrever um livro de filosofia se nem sequer se conhecia bem a si mesmo.

Para Foucault, as «artes da existência» tinham muito de autoconhecimento. A Antiguidade formou uma lenta, mas sólida, hermenêutica de si. Não bastou, porém, esta revelação para associar a minhas leituras mais eruditas ao movimento panfletário da autoajuda. Nos volumes II e III da História da Sexualidade (com os subtítulos, respetivamente, de Uso dos Prazeres e Cuidado de Si), Foucault assegura que o «conhece-te a ti mesmo» podia ser um truque dos essencialistas para que cada um encontrasse sempre a mesma coisa, um humano universal, uma, querendo ser platónicos, Ideia de Homem.

Por isso, com menos Platão (embora o Banquete e o Fédon sejam incontornáveis) e mais, e.g., Plutarco, Epicteto, Séneca ou Plotino, propõe umas «artes da existência» que contando com o conhecimento de si (todos concordamos que «Uma vida não examinada não merece ser vivida») conduzissem à transformação de si. Nas palavras do filósofo francês: por «artes da existência» é preciso «entender práticas refletidas e voluntárias, pelas quais os homens não apenas se fixam regras de conduta, mas procuram transformar-se a si mesmos, modificar-se no seu ser singular, fazer da sua vida uma obra com certos valores estéticos e que responda a certos critérios de estilo.» (Uso dos Prazeres, «Introdução», tradução minha) Bem entendido, isto aplicava-se somente a uma pequena parte da população: machos adultos livres.

Estas «artes da existência» passavam por «técnicas de si» relacionadas com regimes de saúde, gestão da casa e gestão amorosa (dietética, economia, erótica), suportadas pelo valor da moderação, mais perto da austeridade do que do seu contrário. Mantiveram-se ativas até ao período helenístico romano, acabando, depois disso, por perder muita da sua importância. Foucault questiona-se sobre por que razão um fenómeno cultural alargado na Antiguidade se esbateu, desqualificou e acabou excluído depois na idade Moderna. Por que razão a «procura, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessárias para aceder à verdade» foi afastada da filosofia? Tanto mais que governar-se a si mesmo era condição sine qua non para governar os outros. Responde acusando o cartesianismo de impor a primazia do conhecimento de si em detrimento das transformações de si. Bem entendido, com Pierre Hadot (o magnífico historiador da filosofia) e o próprio Foucault, que antes disso a pastoral cristã, e certas práticas de tipo educativo, médico e psicológico foram abafando um saber que dava demasiado importância às afrodisias. O medo das vertigens sexuais censurou 10 séculos de saber sobre as artes da existência.

Hoje, a ciência, que demasiadas vezes produz um conhecimento sem vida, diz-nos simultaneamente o que somos e as transformações que deveríamos fazer. Mas, bem vistas as coisas, parece não ter grande sucesso. Caso contrário, como se justificaria a edição pletórica de livros de autoajuda (também documentos vídeo e áudio)? Assim, com um sentido de oportunidade muito preciso, a indústria da autoajuda vem colmatar o fracasso da ciência e o desaparecimento das artes da existência. Resolve o problema? Não, claro que não. Somos uma sociedade doente, mesmo padecendo de fartura, como Jacinto. Mas que importa, um problema não resolvido cria e alimenta oportunidades para os mais ousados (não é a ousadia nietzschiana).

Para os mais escrupulosos, e corajosos, recomenda-se Espinosa, Kierkegaard ou Nietzsche, sobretudo este último, que lançou a ideia, sem saber muito bem o que fazer com ela, de fazermos da nossa vida uma obra de arte.