Coordenadas do Invisível: A partir de Os Degraus do Parnaso de M. S. Lourenço

O presente ensaio, afastando-se de uma pretensão de conjunto, visa olhar para alguns dos textos da obra Os Degraus do Parnaso, do poeta, ensaísta e tradutor M. S. Lourenço.

Assim, o ponto de partida será constituído pelas seguintes quatro meditações: Canções com PalavrasA Abelha do InvisívelUm sonho de Mallarmé e Os Estilos de Wittgenstein, o que não impedirá referências e conexões com outras obras do autor.

Além do desvelo de nós temáticos singulares saídos da nossa escolha, aceitaremos o convite de expansão, materializado em incontáveis diálogos possíveis, que cremos estar contido nas deambulações de M. S. Lourenço. É o autor que se mostra.

 

 

1. No princípio era a Literatura

 

Numa entrevista, M. S. Lourenço diz o seguinte: “ (…) com 25 anos de idade, já não me foi possível desfazer o hábito de pensar que só pessoas de uma imaginação inferior pensam que o mundo é a realidade imediata e permitem que a sua vida seja ditada por ela.1” 

Ao lermos esta afirmação, que praticamente conclui uma entrevista dada poucos anos antes da morte do poeta, somos intimados a ver uma pequena, mas fundamental e sintomática, cadeia lógica: a opressão que resulta de uma perspectiva estropiada, porque pobre, da vida. A pedra-de- toque é, pois, a imaginação.

Se fosse possível, num exercício quiçá arriscado, tentar encontrar a presença mais obsidente em Os Degraus do Parnaso, talvez não errássemos por muito ao dizer que é a Literatura, nas mais diferentes e originais construções, constituindo uma espécie de núcleo de irradiações da obra. 

Ora, em Um Templo no Ouvido, M. S. Lourenço assimila a ideia de Poesia lato sensu à de Literatura, perspectiva que poderá possuir suporte no étimo grego poiesis (ποίησις) que significa fazer ou criar. 

No ensaio Canções com Palavras – cujo título já deixa antever a relação (bastante) próxima entre ambos os domínios artísticos – a frase inicial é uma verdadeira interpelação, reforçada pelo tom sentencioso: “Toda a Arte aspira a alcançar o estatuto de Música.” Em M. S. Lourenço, o adjectivo “musical” serve precisamente para elogiar a escrita de alguns dos seus escritores dilectos, como sejam Samuel Beckett e a sua “prosa musical” (Lourenço, 2009, p. 463) ou todo o universo criado por Marcel Proust (ibidem, p. 450 e ss)2.

O estádio elevado da Música fica a dever-se à “ausência de um conceito de denotação” - ideia que iremos reforçar aquando da referência a Ludwig Wittgenstein – e ao seu carácter fluido, ou seja, descontínuo e que sobretudo enforma ou estiliza.

Pegando no exemplo nacional privilegiado para expor na prática a sua construção ideiativa, M. S. Lourenço serve-se de Camilo Pessanha e da “mais bem sucedida tentativa de reclamar para a poesia lírica o estatuto de Música” (ibidem, p. 454). Se bem que Pessanha,  mormente no seu poema Violencelo, seja visto como “continuador” do trilho criado por Cesário Verde – ambos os poetas, mas especialmente o segundo, são presenças regulares no Parnaso, como se pode constatar, por exemplo, no olhar direccionado para o poema O Sentimento dum Ocidental, especialmente em As Três Graças e Epopeia Crepuscular  – a verdade é que terá sido o simbolista português o mais perfeito descendente de Paul Verlaine e da sua Art poétique assente no primado da Literatura melódica ou ritmada3.

O trabalho encetado pela “eufonia”, pelo “contraponto” e pelo “material temático que possibilite a construção e o desenvolvimentos do pensamento lírico” (ibidem, p. 455) é a conditio sine qua non para a Literatura recuperar – note-se que M. S. Lourenço ao empregar a palavra “reapropriação” faz menção a um passado em que a Poesia ocupou um degrau mais elevado na medida em que se aproximou da Música/musicalidade – o estatuto de “poesia pura”, cujo parente mais próximo será a “música absoluta” (ibidem, p. 457). Lado a lado, Música e Poesia criam obras de arte que fogem à mera representação – entendida como mimésis – desembocando numa “suspensão temporária do sentido”, i.e., não se preconiza um desaguar no vácuo mas, pelo contrário, a dimensão propugnada poderá ser vista como a-significante. O que se elogia não será a arte pela arte, a técnica pela técnica, mas a abertura de infinitas hipóteses irredutíveis até porque não cristalizáveis num sentido essencialista porque pré-existente e absolutamente definidor e definitivo. 

O texto A Abelha do Invisível vem reforçar a ideia de elogio ao intangível.

Se algumas das tentativas para identificar o objecto da Poesia resvalaram praticamente no inútil– são referidos os empreendimentos de Dante, Shelley ou Hegel, entre outros –, na opinião de M. S. Lourenço isso poderá ter ficado a dever-se a um entorse pré-existente advindo do estudo aristotélico sobre o tópico. Mais concretamente, é a poesia lírica – afastada do estudo por Aristóteles, o que suscita a crítica feita ao estagirita e à sua “irrelevante geografia conceptual” (Lourenço, 2009, p. 589) – que facilita uma aproximação ao objecto da própria Poesia.

Assim, após retirar a lírica da sombra, M. S. Lourenço olha para Martin Heidegger encarando-o como detentor do contributo que se revela mais interessante. Ao caber na categoria, algo abrangente, de “autêntico criador de enigmas” (ibidem, p. 589) pode, assim, depreender-se que a necessidade do enigmático - ou, porventura, da enigmaticidade que remete para o reino do sentir -, é uma ferramenta imprescindível para ensaiar algo próximo a uma tangibilidade de sentido, uma vez que, como se poderá ir constatanto, a Poesia furta-se a perspectivas que se pretendam completamente deterministas e consensuais.

O ensaio de Heidegger, de 1946, parte de Friedrich Hölderlin – e da pergunta-lamento “...e para quê poetas em tempo indigente?” - de modo a problematizar uma caracterização bem mais elástica e que se prende com a posição e contributo do poeta na sociedade, mormente numa época “estéril”, mas, mais concretamente, com a relação entre a poesia/arte e a existência do humano no mundo – grosso modoDasein e Da-sein

Se Rainer Maria Rilke nos aparece em Heidegger como ensaio-resposta à questão colocada por Hölderlin, essa aproximação hermenêutica encetada pelo filósofo é aproveitada por M. S. Lourenço que, contudo, acabar por se distanciar, uma vez que sugere um caminho tendencialmente complementar e pessoal.

O conceito heideggeriano de “descompreensão”, que será sinónimo de um recalcamento involuntário dirigido ao objecto das percepções cognitivas, o qual vem a causar a esterilidade ou, pelo menos, o entorpecimento da imaginação com a correlativa produção inconsciente de um artifício daninho, serve a M. S. Lourenço para condensar o rio de pensamento de Heidegger no seu ensaio. Estando a imaginação e a capacidade de conhecimento como que sequestradas, será necessário elaborar uma saída que mais não será do que uma sucessão de intervalos. De novo, M. S. Lourenço deixa-se ir, continuando a porta aberta por Heidegger, Rilke e Hölderlin, este último um poeta “para quem o único objecto da Poesia é a própria Poesia” (ibidem, p. 590), dimensão fundamental para que o terreno de exploração acerca do objecto da Poesia possa veicular-se graças e através do desdobramento da Verdade incalculável4. 

Tendo a Técnica dado ao humano a obsessão pela objectivação e imediatismo, reforçados pela ideia de M. S. Lourenço de “filistinismo” que serve para reafirmar a pobreza espiritual humana, o tal amolecimento da disponibilidade para o êxtase terá de ser substituído pelo “exercício da memória, o qual é um retorno ao coração”, por força a que se opere “o insistente zumbido da abelha do invisível, a qual é o símbolo do poeta que canta o carácter preliminar de tudo o que é apenas objecto de visão.” (Lourenço, 2009, p. 591) O múltiplo, mais do que o plural, é o que postula a abertura ao mundo, a relação e reacção à Verdade: só “a voz da Poesia [nos] pode salvar”. Não parece haver espaço nem lugar para pretensões que visem o abandonado da palavra, entendida como proveniente do reino da Literatura; muito pelo contrário, e sublinhando de novo a tónica na intangibilidade, M. S. Lourenço volta a lançar a ponte com a Música, ou mais concretamente, com o melódico e o intraduzível porque integrantes de uma relação de confiança. Stephen Dedalus no Ulisses, de Joyce, diz-nos “Fecha os olhos e vê”: é precisamente a criação desse espaço-tempo em relação ao qual em grande medida só se pode inferir, tactear ou, melhor dizendo, sentir, a que se vem aludindo nestes ensaios de M. S. Lourenço, e que é o tal “sonho de Mallarmé”5 6.

No texto intitulado Um sonho de Mallarmé, que é o de “escrever um período que pudesse ser considerado um labirinto” (ibidem, p. 582), M. S. Lourenço, mais uma vez partindo de uma hipotipose pessoal – a qualidade estética da prosa kantiana - mas ampliando-a em feixes criativos, diz-nos que “Em última análise conta para a definição do valor estético de uma obra de arte literária o papel desempenhado pela, e os resultados alcançados na, criação de símbolos, que são ao mesmo tempo ícones e veículos, eficientes e plásticos, da representação do pensamento.” Se o diálogo, eminentemente estético mas não só, entre Immanuel Kant e Samuel Coleridge é aí posto a nu, não se trata, porém, de forçar a união absoluta entre filosofia e literatura – desejo que raia o cliché; como lemos, a criação de símbolos deve-se à “imaginação”, ou “navegação”, sem as quais “a obra de arte literária nem é sequer pensável” (ibidem, p. 582). A proposição de hipóteses, do que se materializa necessariamente numa abertura, encontra apoio directo quando M. S. Lourenço veicula o seguinte:

 “Quando falo da eficácia de um símbolo não quero ser entendido num sentido exclusivamente pragmatista, mas antes num sentido alargado, segundo o qual a utilidade de uma construção simbólica é medida pelo impacto que a construção simbólica tem em criações do mesmo domínio ou domínio afins”. (Lourenço, 2009, p. 582)

O conhecimento, e muito concretamente a sua busca, são magmáticos. Ainda nesse texto do Parnaso, tomamos contacto com três características ou “predicados estilísticos” que têm relevo para o caminho infinito que é o labirinto de Mallarmé: a “repetição”, a “expansão” e a “ramificação”. Aniquilando o pretensiosismo de quem menoriza a prosa de Kant, M. S. Lourenço, graças às três referidas componentes da “prosa de arte”, regressa à valorização da ideia de movimento ou fluidez que contribui para a valorização estética da prosa. Se, simbolicamente, em Kant e em Coleridge encontramos a “Ilha da Verdade” rodeada pelo “oceano da Ilusão”, a referida “navegação”, símbolo-irmão da potenciação criativa, materializa a des-cristalização de que a busca do conhecimento carece. 

Prosseguindo os gestos de densificação topográfica relativamente à Literatura, M.S. Lourenço, no ensaio Nihil Sub Sole Novum, revela-nos as duas faces da mesma: a cognitiva e a intuitiva7.

Ora, a primeira, a de teor cognitivo, prende-se com a “investigação das leis da vida interior” (Lourenço, 2009, p. 480), i.e., a literatura pode ser/é um medium privilegiado para o (auto) conhecimento, tornando-se imperioso, nesta sede, referir Paul Ricoeur e toda a sua construção hermenêutica no que respeita, precisamente, a identidade-narrativa como auxiliar da identidade-pessoal (ipse). Atente-se que para o filósofo francês, as identidades pessoal e narrativa não se confundem: a segunda pode, sim, influir na primeira, na medida em que a ficção literária pode constituir um veículo interessante e importante de auto-conhecimento para quem com ela toma contacto. Apoiando-se em Proust, mais concretamente, quando o escritor francês nos diz que deseja que os seus leitores sejam leitores deles mesmos, o pensamento filosófico de Ricoeur precisa de ser, a propósito de M. S. Lourenço, como que peneirado8.

Inferindo, a verdade é que a segunda faceta da literatura - “face intuitiva” - possibilita, através de “uma linha de um texto literário (...) ouvir o som do infinito.”, prisma que, em conjugação com a índole cognitiva, cimenta a posição tida como optimista do autor (Lourenço, 2009, p. 480). Mais uma vez, numa recorrência que simboliza evidência, M. S. Lourenço enfatiza a importância da imaginação, umbilicalmente ligada ao ambíguo e à infinitude, como força propulsora, no caso, do fazer artístico ou poiético. E é aqui que cabe incidir o foco no autor porventura mais presente, se bem que muitas vezes a título implícito, nestes ensaios de M. S. Lourenço: Wittgenstein.

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