As nêsperas

Ainda não tinha visto a Primavera cá de casa.
No terraço ao lado há uma grande nespereira.
Lembro-me de comer nêsperas e gostar
do sabor meio doce, meio azedo,
e de a minha mãe dizer que as nêsperas
faziam nódoas.
Há certas pessoas
que são como as nêsperas que comemos –
não sabemos porque falamos nelas
se há toda uma vasta botânica.

O perfil de Ana Freitas Reis está disponível aqui.

Bagos de Bastardo


Nas folhas da videira

o reflexo da canícula –

silêncio no poço.

Com esta mão partida

ao que soarão os grilos

dos meus versos?


À volta da ermida

os toalhetes

dos encontros furtivos.

Quase impercetivelmente

a leve brisa e o tempo

arredondam as fragas de granito.

Arredondadas pelo tempo

e a leve brisa

as fragas de granito.

Há mais vento

quando passo

por choupos.

Quando passo

por choupos

há mais vento.

Gosto de me sentar

no silêncio do granito

ao vento.

Ah o som do vento

no granito

esculpido por milénios.

Como um beijo

de despedida

último sol de Agosto.

Nas silvas

do dólmen

a pena dum corvo.

Que rápido secaram

as amoras

dos caminhos.

Em cima da fraga

espero a tempestade –

vento de Setembro.

Chegará a tempestade

que o vento de Setembro

anuncia?

Semeadas de vazio

as casas onde

a ruína cresce.

Na muda presença

é onde habita

o maior silêncio.

Branco ainda

este sol

de Setembro.

Nas folhas da couve

brilham

refrescantes pérolas.

Bastou uma noite

para terminar o desassossego –

palha molhada.

Um banquete para pegas

e javalis

a vinha do meu avô.

Setembro –

do mosto

apenas uma memória.

Logo abraçam

as silvas

a fertilidade abandonada.

Onde crescem agora silvas

batiam-se

por um marco tombado.

Vinhas perdidas

lapides tombadas

eis o legado.

No meio do caminho

para a vinha perdida

cresce a videira brava.

Uvas da vinha velha

amoras dos caminhos

pequeno-almoço do poeta.

Na sua breve vida

o que teme

a borboleta?

À beira do rio

sentado

só eu passo.

Pequenas bolhas

o rasto do caminho

da lontra.

Açafrão do prado

no caminho –

aproxima-se chuva.

Nos bagos do bastardo

a doçura

das tuas mamas.

Setembro

regressam as moscas

do inferno.

Tarde de Setembro –

do que se despedem

os ramos da oliveira?

Agosto-Setembro 2022

Torre de Dona Chama-Cidões-Sabrosa


"Fim, meio, início", de Anne Sexton

Tradução: João Coles

Havia uma criança indesejada.
Abortada por três métodos modernos
agarrou-se ao útero,
enganchada nele
a construir a sua casa nele,
e de nada servia
boicotá-la.

À nascença
ela não chorou,
levou as palmadas,
mas não berrou -
em vez disso caiu-lhe neve da boca.

Ao crescer, ano após ano,
o seu cabelo tornou-se como uma rosa num vaso,
e sangrou pelo rosto abaixo.
Colocaram-lhe pedras em cima para manter
o crescimento em silêncio,
e embora pisassem,
não matavam,
embora a mortandade nela estivesse enredada desde o início.

Fecharam-na dentro de uma bola de futebol,
mas ela meramente encolheu-se
e fingiu que era uma acolhedora casa de bonecas.
Empurraram para dentro insectos para a comerem às dentadas
e ela deixou-os rastejar para dentro dos olhos
fingindo que eram um espectáculo de fantoches.

Mais tarde, mais tarde,
já crescida, como soem dizer,
deram-lhe um anel,
e ela usou-o como uma raiz
e disse para si própria,
“Não ser amada é a condição humana,”
e estendeu-se na cama como uma estátua.

Então uma vez,
por um terrível acaso,
o amor tomou-a no seu grande barco
e ela escavava o oceano
em escaldante alegria.

E então,
lentamente,
o amor esvaiu-se,
o barco transformou-se em papel
e ela, por fim,
sabia qual o seu destino.
Vira para onde pertences,
para o surdo-mudo
aquela casa de metal,
não deixes que ele te perfure em ninguém.

Do livro póstumo 45 Mercy Street.


End, middle, beginning

There was an unwanted child.
Aborted by three modern methods
she hung on to the womb,
hooked onto it
building her house into it
and it was to no avail,
to black her out.

At her birth
she did not cry,
spanked indeed,
but did not yell-
instead snow fell out of her mouth.

As she grew, year by year,
her hair turned like a rose in a vase,
and bled down her face.
Rocks were placed on her to keep
the growing silent,
and though they bruised,
they did not kill,
though kill was tangled into her beginning.

They locked her in a football
but she merely curled up
and pretended it was a warm doll's house.
They pushed insects in to bite her off
and she let them crawl into her eyes
pretending they were a puppet show.

Later, later,
grown fully, as they say,
they gave her a ring,
and she wore it like a root
and said to herself,
'To be not loved is the human condition,'
and lay like a statue in her bed.

Then once,
by terrible chance,
love took her in his big boat
and she shoveled the ocean
in a scalding joy.

Then,
slowly,
love seeped away,
the boat turned into paper
and she knew her fate,
at last.
Turn where you belong,
into a deaf mute
that metal house,
let him drill you into no one.

3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022

Página do livro

"Lugares Comuns" de Ana Luísa Amaral

In memoriam Ana Luísa Amaral (1956-2022)

Um dos meus poemas preferidos de Ana Luísa Amaral passa-se num café inglês. Chama-se “Lugares Comuns.” Nele, uma mulher a fazer tempo para apanhar um avião entra num café manhoso em Londres. Em parte, gosto desse poema porque aquele café me é familiar. Tenho a certeza de que já lá entrei muitas vezes, embora não faça a mínima ideia de onde fica ou que café possa ser ao certo. Na verdade, à medida que vamos lendo o poema, fica claro que todos sabemos que café é este e que todos já lá entrámos, em Londres e noutras cidades. A qualidade do café não é má, mas também não é espetacular e muitas vezes temos sido cúmplices deste café. A qualidade é, na verdade, melhor do que tínhamos esperado em face do sítio. Neste poema, no entanto, a familiaridade do lugar aponta constantemente para a absoluta necessidade de o estranharmos. E acho que esta tensão entre estranheza e familiaridade, tantas vezes traduzida num jogo entre escala épica e quotidiano noutros poemas de Ana Luísa Amaral, é um dos aspectos mais singulares da sua poesia. É algo que está muito vivo na relação com coisas, pessoas, lugares que aparecem noutros poemas. É uma das coisas de que mais gosto no seu estilo.

Neste poema em particular, este manhoso café inglês que é um lugar-comum está povoado de homens. Exactamente vinte e três, diz-nos a narradora. Uma mulher entra então num manhoso café inglês onde está sentada uma tribo de vinte e três homens e apenas uma mulher (quieta, a ler a um canto) e, assim nos é dito, ao entrar, “todos os preconceitos” de mulher da narradora vieram ao de cima: só havia homens a comer bacon com ovos e tomate. O outro preconceito não tem muito a ver com comida, mas a narradora repara que, estando sozinha neste café onde só há homens, não é necessário querer saber muito deles, que os homens ingleses até nem se metem muito com mulheres, ao contrário dos “nossos” (homens portugueses, isto é). Reparo que nunca em momento nenhum do poema o cheiro do café é descrito, mas a impressão desse cheiro entranha-se em nós à medida que vamos lendo. A narradora diz-nos que o café é manhoso, mas não é mal-intencionado e que ao ver a mulher que lê a um canto se sentiu mais forte e que não sabe porque é que se sentiu mais forte, mas que assim foi. A voz que se ouve no poema é parte da instabilidade que constantemente nos acompanha ao lê-lo.

A instabilidade do olhar da narradora, que se expressa com uma ironia sarcástica, mistura de familiaridade e desconforto, que não é muito raro uma mulher sentir em certos cafés manhosos por esse mundo fora, é decisiva na forte impressão opressiva que nos é comunicada. Este poema sobre este café que é um lugar-comum lembra-me um pouco a cena de abertura do Inglorious Bastards de Quentin Tarantino. E imagino que talvez Ana Luísa Amaral se risse desta comparação e talvez discordasse. Mas é uma mistura de opressão e potencial de violência que só sentimos quando damos com as forças mais opressivas da história. Começa com o facto de que, com um sarcasmo magistral, que satiriza em apenas uma estrofe tanto o colonialismo português, quanto o inglês, quanto o provincialismo mesquinho de ambos, deixando-o a pairar sobre o palco do poema, e que segue uma linha que continua no breve diálogo que a narradora tem com o homem que lhe serve o café, cujo sotaque cockney se houve de longe numa das frases mais batidas que empregados de cafés manhosos gostam de dizer a mulheres em cafés de Londres: “There you are, love.” Consigo ouvir o sotaque e a inflexão com que esta frase é pronunciada não só quando a imagino proferida em poemas de Ana Luísa Amaral passados em cafés manhosos de Londres, mas dita por motoristas de autocarro, vendedores de bilhetes de comboio, polícias... e reparo que é sempre um homem que a profere. Claro que numa década de viver em Inglaterra é bem provável que em algum ponto uma mulher que me tenha vendido um café algures me a tenha dito, talvez até muitas vezes. Mas nunca me lembro dessa frase dita numa voz feminina. Admito que é um preconceito de mulher dizer que esta é uma frase para ser dita por um homem.

A outra coisa que causa tensão e instabilidade no poema, e que explica porque é que ele me faz pensar em Tarantino, é a resposta que a narradora imagina dar a este homem, “go to hell,” mas é uma frase que nunca é proferida. E a outra ponta solta do poema é a mulher calada a ler a um canto, com a sua força inexplicável, com o seu “That’s it” de leitora absorta, pronunciado quase no fim do poema, que comunica força à outra mulher. E penso que parece que este poema não muda nada, mas há nele um olhar profundo que denuncia tudo. E uma vez visto o que ele descreve, não é possível deixar de o ver. Denuncia a complacência com que olhamos os lugares-comuns, as nossas baixas expectativas em relação a eles, o facto de que queremos passar por eles incólumes, não respondendo apenas para beber o nosso café em paz (não parece, mas neste café há um eco oblíquo de outro café, um pouco mais mítico, que um poeta português bebe noutro sítio da Europa, o de “Em Creta com o Minotauro”), um tipo de violência quotidiano e intolerável que de tão entranhado deixamos de o ver, tão entranhado que destrói até o outro mais provinciano dos mitos e preconceitos portugueses, o de que lá fora é que é, porque dentro das nossas fronteiras já não há nada a fazer. Exceptuando que esta mulher que entra neste café sai dele e sabe exactamente o que ele significa, e sabe explicar o que é que ele quer dizer, e no fim está menos sozinha porque encontra até a voz da outra mulher.

            O meu café preferido em Londres fica em Monmouth Street. Vou lá normalmente para encontrar-me com uma amiga que gosta de se sentar ali a ler ou a escrevinhar. E nunca entrei neste café, que não é manhoso, nem nunca os meus olhos deram com os desta amiga quando ela os levanta do que está a fazer, sem me lembrar deste poema de Ana Luísa Amaral. Talvez os poetas de quem gostamos continuem vivos no amor que temos aos poemas que deles mais amamos, na forma como vemos o mundo pela lente desses poemas. Podemos perder coisas que nunca nos aconteceram. Sinto uma tristeza indizível de não ter conhecido melhor Ana Luísa Amaral e de agora não a poder levar a beber um café em Monmouth Street. Mas quero crer que ela está agora no céu dos poetas, a beber um café com Emily Dickinson.

O poema pode ser ouvido lido e ouvido aqui na sua voz.

 

Tatiana Faia
Oxford, 7 de Agosto de 2022