"Afinal"

1.

AFINAL
Quando o amante cai do pedestal,
surpreendemo-nos
Afinal, não era de loiça
a refinada arte sacra
Afinal, não quebra nem há-de partir
e só ameaça derreter exposta às altas temperaturas
do Hades, ou coisa semelhante que nos valha
Na melhor das hipóteses,
levará anos a decompor-se

Caído o fundamento ao amante,
descobre-se o santuário vívido
Afinal,
não passou de um pseudomilagre

Venderam-nos como viagem
a experiência histérica, inautêntica
Duas voltas de grotesco turismo
E nem por isso deixaremos de colocar nova estátua, novo santo,
na coluna que sustenta, afinal,
o nosso relicário.

 

2.

Façamos a sinopse
Conheces alguém, permites que se aproxime,
deixa-lo chegar mesmo, mesmo perto,
até te alimentar com palavras e gestos mansos
e ficares novamente uma criança, inocente e atenta,
ávida de doces, com o coração muito tenro; um vitelo, é isso,
transformas-te em gado novo
Só então verás o carrasco que te alimentou
Levar-te-á pelo cachaço ao matadouro

Isto acontece várias vezes na imaginação de um animal
Estudos atestam que a criatividade não é exclusivamente humana
Os estudos são, nas sociedades,
uma balança; certificam peso e veracidade aos factos.

 

3.

Por isso, e com vigor,
esfregou-lhe as gengivas e os dentes,
usando o indicador direito untado com pasta dentífrica
Numa prática contrária à das refeições,
explicou-lhe: um coração deve comer-se de boca limpa.

Cerzido, Exílio circular, Pongo en tus manos abiertas…

Cerzido   

 O avô puxa o lenço do bolso
entre os fiapos
Desfolha o pano em que guarda
ranhas e coriza
Esfrega os dedos sela o muco
Respira anônimo
Salvação de seu hábito
Monge provençal dos pombos e praças
O que é um velho sem suas desesperanças?

Contente admira a pintura do ranho
Integrado ao tecido
Ri de canto
Como quem secreta sua obra máxima
Inventa que farão comícios ao legado
póstumo que deixará num grande mosaico
Fosco entre aplausos
Encantados o MoMA, o MAM e galerias chiques
da velha Europa
Dedica a todos suas secreções
Seus cuspes abençoados
O que é um homem sem suas porcarias?
Nessa hora o olho arranhado da catarata brilha
Ele bem sabe, o universo
também faz gravuras com as coisas que sujamos.


Exílio circular

 

três meses sem ver tua cara
ando paranoico uma metade na rua e a outra
no canto do quarto
o apartamento cresceu de tamanho, agora a sala tem 40 metros e dois pés de altura
flutuo entre um cômodo busco caminhos
nas barricadas que fiz no corredor
se ela visse como o banheiro está – teria um troço ou nadaríamos até as paredes ruíre
caindo no outro lado do lado que teima não abrir

três meses e sonho com dentes no lóbulo
faço arabescos na parede do meu estômago, ele inda assim não para de doer
sabe que minha caligrafia é ruim para escrever em linha reta
perdoa se escrevo teu nome
torto em um coração de bic vermelha
mas se não fosse desse jeito eu não te abrigaria com esse rude afeto

o frio que anda sentindo nessas estradas me cobre todas as noites
beber teu perfume não foi uma boa ideia
me abdiquei da carne, mas ando mordendo tuas fotografias
tocar-te a distância
o sol é indiferente às coisas que ilumina
: rastejar       suaviza a serpente              uma pele para trás esquece                outro deserto :
não cai uma gota de chuva desde que você levou minhas nuvens em sua bolsa peruana
a brisa sopra o que sou, fecho as janelas e os vidros batem a fim de serem quebrados
guardo um dos cacos pra ver em mim a tua imagem
vozes ao longe
: não estou
cada estrela tem a duração do querosene.


Pongo en tus manos abiertas…                                                                    

para Víctor Jara
“his hands were gentle, his hands were strong”

acho tuas mãos de terra e sedimentos
enterradas (obtusas e
ósseas) em um palmo de deserto
onde os brutos corroeram tua boca até calarem teu ferrão
resgato a mão esquerda – ainda  conserva as unhas
penduradas a fio leve junto à carne
mordiscada algumas vezes – deixada  para trás
por uma família de vermes
bichos desses que servem para comer herois
sobras do jantar de domingo antes do futebol

colho a mão direita de dentro de um fundo buraco
em estado decomposto, teus dedos
já nada possuem de tua vida – não poderiam dedilhar nenhum instrumento
que não seja seu próprio tendão exposto – 
a canção de teu desaparecimento enquanto homem
em sonho ouviremos
de tua boca nostalgias e rancheiras:
Víctor teus filhos procuram teu paradeiro e eu só tenho
tuas mãos para redimi-los
dez dedos que não podem escrever poemas – dez
dedos que não podem acariciar o rosto de quem amas – dez
dedos na brancura do osso – dez
dedos e a escuridão do corte que separa a comunicação entre tato e corpo – 
dez dedos que já não podem com o mundo
 

“essa noite lá pelas bandas de San Ignacio - um homem foi visto andando à procura de duas mãos que lhe foram arrancadas há quarenta anos.”

terá um indivíduo assim mutilado o direito
de voltar depois de morto?
um viés de vingança e soldo, revogar o que lhe foi tirado
vivo Víctor você estará ou estarei eu com as mãos de outro?
Víctor sem mãos para pedir aos céus
sem mãos para apertar o pescoço – de quem – 
mas por baixo da camada morte – tua retidão – 
tuas mãos agora inúteis ainda fariam miséria
a qualquer tocador de viola ­
quem poderá desfazer tuas notas – diapasão inquebrantável – 
outrora poderíamos cantar em coro o que só a capela fará
em teu isolamento – figura etérea das noites chilenas – 
mesmo que teu fantasma andarilho por aí se perca
a ninguém assombra antes ilumina.

Hemofilia, Banda Gástrica, Hotspot, Tundra, Crucifixo

Hemofilia

Passar-te nos dedos os papéis em corte.
Deglutir sincera na direção oposta.
Por um triz levaste nos bolsos um esboço sorrindo.
Uma quase neblina que em raiz perdura.

Estancar-te na ferida que abres ainda,
na generosa oferenda cálida do magma,
antes de explodir em sabor bélico,
difuso e torto na mucosa efervescente.

Repete-me:
um corpo nunca é apenas um corpo
é sim, um choque em cadeia numa auto-estrada coberta de chuva,
a um domingo.


Banda Gástrica

 

A minha mão. medida exacta do teu ombro.
Áspera felicidade na certeza da tua ausência,
Oscilo no meu daltonismo emocional.Meia lua ou meia laranja.

Metade sejas de algo que nem início tem.
Estimo distâncias em que te encontro.
Expiro em dobro só para me fazer leve.
Só para me antecipar em nervos e artilharia.
Sempre agitando o já mexido pensamento.
Mostrando em cores o que te escondo.
Opacidade de te ter imaginado e sabido.
Tenaz como o vento soprando violento nos ouvidos.
Tentando o que não torna e não tem conserto.
Organizando-te as entradas e as saídas.
Retocando o tom neutro das tuas investidas.
Nunca desistindo das melodias ocas.
Até que me distraia o ranger dos dentes na noite rouca.


Hotspot

 

Sinto-me basáltica.
Concreta, no brilho escuro das profundezas afectivas.
As vísceras cristalizam,
num processo de compressão das memórias.
Movimentam-se em gestos compactos,
activando a justa melodia de uma voz primária,
instrumento de afinação absoluta.

Passo as mãos a seco pela topografia do texto.
É interrompido e fosco. Pungente como um bom vinho.

Não há nada tão revelador como a intensidade da luz,
batendo certeira no vidro de uma janela imaginada.
Todas as tardes são ecos desses diálogos originais.
As palavras tropeçando vertiginosamente na vergonha partilhada,
convertem-se num excesso de saliva difícil de engolir e percutir. 

Negociamos um acordo, argumentado com diferentes graus de silêncio.
A ausência de palavras,
não nos liberta da análise inútil das nuances e significados.
Planta-se segura no ventre,
transformando a elasticidade dos tubos digestivos em ímpeto tectónico. 

Nasce assim uma história que inverte a sequência natural do processo narrativo.
A distância aumenta durante o ritual de aproximação dos personagens.
A partilha torna-se inversamente proporcional à intimidade.

Procuro conforto na geometria,
nas leis fundamentais da física,
no borbulhar quente e fecundo da geologia.
Calo os psicanalistas e as suas cantigas hipnóticas de adoração à força centrípeta.

Não há nada de errado com a geografia protetora das ilhas.

Já me deitei outrora, em atitude esperançosa,
caindo sôfrega na sua barriga áspera,
tendo acordado saciada, coberta da magma e frutos doces,
dádivas que incham carinhosamente o estômago,
maciando os cabelos da criança que responde pelo nosso nome.  


Tundra

Altivo mastro descendo-me em espaços.
Cortante vento que cristalino nos sussurra cegos.
Oscular-me-ias se eu fosse por aí gritando?
Rasgando-te o baço pela acidez do gesto e do pranto?
Dar-me-ias a mão pela mão, no segredo de seguir-te?
Anoiteço aos pedaços na ilusão de ser mais dócil.
Imaginada e fértil como nos contos da estremecida infância.

Irei exposta até ao precipício que me inundará calma.
Rimando perdida a virgindade no teu aclamado perjúrio.
Mostrando a cor aos mastros que me afundam verdadeiros.
Arrepiada na pele que me baptiza pelo tom e pelo sexo.
Nunca ser o cordeiro em cujo sangue banhamos a diferença.
Dar-me nas mãos o compromisso em detrimento do desejo.
Acordar.
Dispersar-me em pólen doce, frágil magma de correntes seguras.
Encontrar um equilíbrio forte na certeza de uma perfeita tradução.


Crucifixo

 

Quero escrever-me divertida.
Rir alto por cada movimento esquivo.
Por cada passo que te aproxima da porta.

Rir.

Quero ser divertida. Mas não sou.
Já vasculhei em cada canto,
no cesto da roupa suja.
Não há aqui qualquer vestígio de ameaça ou excitação.
Qualquer gargalhada perdida que não uma que solto para ser menos

Vazia.

Se não fosses frustração eu ria.
Mas não queria rir de escárnio.
Queria que as gargalhadas me perfurassem como longas pernas,
Daquelas que em cócega semicerram a barriga,
Numa embrulhada de vísceras quentes e doces
Como um olhar novo estampado num banco de cozinha
Longo e trôpego como o primeiro passo de uma criança.

janeiro

exercício: rodear de qualquer forma a hora da partida
deixando de parte o momento em que os outros se afastam

recordar: não pedi para ser pontual nem para sufocar com a multidão

ansiar por dezembro não deixa nada por adivinhar nem ninguém no encalço
as horas envelhecem e espero que todos os outros partam
deixo-me ser janeiro enquanto houver quem prefira correr até ao final dos dias

Peso líquido

Inquilino na casa
Suspeita, me convenço
Aos poucos
De que, até ver,
Não terá isto passado
De palavras se jogando
À melhor de uma
Delas, a
Estraçalhando
Até perder os sentidos.

Se asseguram aqui
Serviços mínimos. Inventando
Afinal, formas e sinais
Vitais.

Pode
A tensão absoluta
Da verdade, espantar
A origem do olhar?

O engano a tracejado,
Sinalizado de invisível,
No limiar de toda expressão,
Disposto nas entrelinhas
Da coisa pensada.

A solidão não é flor
Que se cheire,
Nem se dá por ela
Ao olhar, é sim
A fria maioria de um
Coração claro
Partindo a direcção.

A natureza
Desta natureza, é imagem
Fora de forma,
Extravagante mão
Quase firme,
Em parte lume
Em toda a parte.

O erro, sério, ainda
Assim postiço, é implantado
Na boca materialista,
Beneficiando em vida, de algum
Corpo perigoso, intruso,
Com princípio
Sem fim.

Dirigido, o objecto
É parte do problema e
Padrão do hábito.

Alguém exagerou, assim
Dizendo, o lugar de olhar,
O lado sintético,
O grau contrário,
De tudo determinado.

Pouco mais longe é
Do motivo a disposição
Integral do texto
Entregue um nada
Aos impulsos da forma. Negativo
Aberto à mão,
No paramento da existência.

Não entra aqui
Luz natural seja
A hora qual ela for,
Em mim enfraquecendo
As paisagens.

Lábios armados
De inocência, residindo
À pele
Na longa multidão
De tons tentados.

Assumo. A intimidade do vocábulo
Repugna, dilacera o mais
Vulgar no espaço
Sóbrio do verso.

Percepções insignificantes,
Consequências
Da intenção.

Enquanto pedras, acreditamos
Para lá do mundo
Matemático. Nada
Pode ser verdade
Inquestionável.

O silêncio é um canto
Estreito, no conforto
Da rua. Vagueamos
Pela espessura mínima
Do céu, aos contrários.

Sobre a fé, há toda
A nomenclatura da neurose,
A negação
De todas as nações, um erro
Encantador. Com belas palavras
O medo canonizou
O perigo no mundo. O maculando
Impressivamente, de impressão
Digital.

Em mudando a hora,
É tempo de
Interrogar os vestígios
Desse animal
De pó. Há
Quem lhe chame
Instinto.

Um conceito entendido
Pelo objecto.

Sacrificava o destino por
Algum brinquedo herdado
De outra existência.

Em profundidade
Uma imagem sofre
Seu grão,
Seu encantamento
Ao ruído, aumentando
Sua obediência
À vida.

Um lume
De fracassos.

Inverter num Deus
Doentio,
A armadilha
Da sua forma
Exacta.

De insuportável grau,
O eco de um
Homem da música
Conformado pela
Sujidade das notas,
Se expressando por
Admirável degeneração,
Se tocando a si
Mesmo.

Estamos acordados para
O instinto
Do suicídio.

Os poetas
Podem mentir
Com as mãos,
Mas nunca sobre
A múltipla compreensão
Das condições adversas,
Sintagma climactérico,
Desta nova realidade
Proposta. Lançam pois,
Contra a ousadia
Da seriedade, a mais volátil
Das armas, dando sua palavra
De honra.