3 FLORES

“Pareils aux manequins;  vaguemente ridicules;
Terribles, singuliers comme les somnambules”

                                                   Baudelaire
 

A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA

 É o ponto sem gordura e
Ociosidade.

                                                     de 2016 - In “Dentes Tortos” (2017)

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  EXCESSO

 

    “Ver é por princípio
ver mais do que se vê”

             Merleau-Ponty

     
Na avaria do grande
Booom-0.1 Tecnológico de 2048,
salvaram-se, apenas, algumas dezenas
de poemas,
dos biliões escritos entre 1995
e 2048.
Restabelecidas as ligações, alguns
elementos da Primeira Ordem vieram dizer
que nada de
importante se perdeu. Mas
tudo isto será verdade?
 
O Ministro do Mundo Virtual veio
acusar publicamente o aumento da temperatura,
como a causa
primeira desse apagamento.
Ninguém quer saber de poemas escritos
na primeira, segunda,
terceira, quarta… décadas deste século.
A preocupação principal, nos dias de hoje,
 é a falta de água.
 
Aos que ainda querem ler, o
Máximo Líder sugere aquele Velho livro, de Homero,
chamado Ilíada. Segundo ele, que nunca o
leu, é o único que importa e todo o resto é mera cópia.
O que pode ser verdade!
 
Para prazer dos cidadãos
do 2º Bloco, os que têm Tempo e água ao
seu dispor, foi refeita,
digitalmente, uma versão abreviada
do mesmo livro, com apenas
12 cantos.
Todos os heróis de segunda foram
apagados.
 
Escrevo este poema à maneira
Antiga,
neste português que já não se usa.
Demorei dois meses
a escrevê-lo. Preferi estudar esta língua
antiga a entrar na Grande
Empresa Coletiva
. Sortilégio, bem sei!
Sou, entre todos, o tolo do
3º Bloco.
 
Nas noites silenciosas e escuras narro com o
pouco que sei, sabendo
desde já, que numa
nova avaria  ou atualização este
 poema
 será A PA GA D_.
 
Se tiver sorte, entre o novo apagão e
a restituição da rede,
talvez o Máximo Líder me deixe
estudar, sossegadamente, esta língua
Morta.  
 
10.2018

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DISTÓPICA POÉTICA

 

“Correr em direção à queda é
uma inclinação muito humana”

                     - Boualem Sansal.
 

Todos ligados numa rede
Imaterial:
Cérebro a cérebro, olho a olho.            
Todos ligados na mesma teia
de cola Super 3
comprada nos chineses por 2.99€.
 
Um Senhor, um só olho, enorme,
vermelho, como convém a um
monstro ditador,
dita uma só Lei, Uma só regra.
 
A verdade é já mistura com a
mentira, como o azeite na
água em turbilhão eterno.
Quem o para?
 
No meio do Metal, da Massa,
do Imposto deserto, na
cimentada cidade há um
tipo que colhe uma flor
e tem a audácia de a
renomear de Flor.
                                          30.12.18

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muhammad ali canta “stand by me” em 1963

como amantes
inexperientes, dançam.
sem querer
trocam os passos
é comovente a beleza
desse desequilíbrio
frágeis e zonzos
mas inteiros por dentro,
vê como balançam:
a equação matemática
de um movimento
que apesar de limitado
pende para a eternidade

os locutores implacáveis
em plano de fundo
comentam por cima da multidão
first real signs of weirdness;
first real signs
e numa curva
dorsal perfeita
um deles deixa que as cordas
cedam ao peso do corpo

o bailarino
chega a pensar
talvez o sino
me salve
mas isso
raramente acontece
e a valsa transforma-se agora
num quadro de caravaggio
retratando em traços de luz
a dignidade de quem contudo
se deixa bater até ao fim

agora que pode livre
cuspir o sangue dos golpes
fecha os olhos
sente ao longe o ritmo do contrabaixo
quente como a pele de um corpo
depois do embate
quando os vasos sanguíneos pulsam
a todo o vapor procurando vida
acima de qualquer ferida mais óbvia

enquanto a multidão furiosa
faz coro interior sem saber
muhammad ali discretamente sorri
e canta numa frequência infra-humana
stand by me,
stand by me,
stand by me.

  1. https://www.youtube.com/watch?v=BtIF0OqRnOE&start_radio=1&list=RDBtIF0OqRnOE

  2. A frase “first real signs of weirdness; first real signs” foi na verdade retirada da gravação de um combate entre Mike Tyson e Evander Holyfield.

2 Poemas de Jacques Dupin

Tradução: Vítor Teves

Desde que a minha palavra seja obscura ela respira
 
seus braços mergulhados na água gelada
entre as algas verdes de outras presas
geladas como as lâmpadas no dia
 
Tão pouca realidade alcança os vivos
lança violência ou a semeia
arduamente sobre a pedra e as águas
 
o céu esticou a escansão dos martelos
alguns entre nós entramos intercedendo
para produzir novas nuvens
 
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Aberta em poucas palavras
como por um remoinho, numa qualquer parede,
um recesso, nem mesmo uma janela
 
para manter a pouca distância
esta região da noite onde o caminho se perde
 
exausta uma palavra nua
 
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Tant que ma parole est obscure il respire
 
ses bras plongt dans l’eau glacée
entre les algues vers d’autres proies
glacées comme des lampes dans le jour
 
Si peu de réalite parvient au vivant
qu’il fasse violence ou qu’il séme
hardiment sur la Pierre et les eaux
 
le ciel tendu la scansion des marteaux
quelques-uns parmi nous sont entres intercédant
pour produire de nouveaux nuages
 
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Ouvert en peu de mots,
comme par un remous, dans quelque mur,
une embrasure, pas même une fenêtre
 
pour maintenir à bout de bras
cette contrée de nuit où le chemin se perd,
 
à bout de forces une parole nue

 
                                            De: “Cops Clairvoyant” (1963-1982) (Gallimard,1999) /

                                                   “Corpo Clarivedente” (1963-1982) (Gallimard,1999)

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Retrato de Jacques Dupin por Alberto Giacometti, 1965.

Postais de Boas-Festas

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Há muitos séculos, a cultura semita decidiu transformar os ritos pagãos do solstício de Inverno numa narrativa mais encantatória. Havia palavras e gramática suficientes para essa revolução, e é sabido que sempre que pode haver uma revolução, há. Assim nasceu o Natal (faço uma filologia à la Nietzsche), outra forma de enaltecer as conjuras astronómicas que travavam o avanço da escuridão.

Primeiro, quando ainda éramos biológicos, celebrou-se a emergência da vida e a fortaleza da família ou da tribo. Depois, pouco a pouco, sob o impulso de um cristianismo cada vez mais metafísico, desfiaram-se chamamentos ao Além, misericordioso e enigmático. Continuou-se a louvar a vida, mas era de outro tipo, descarnada.

Finalmente, vieram as generosidade e bondade, sem moderação, ligadas a coisas humanas, demasiado humanas. O festim gargantuesco substituiu qualquer resquício de espiritualidade (mais do que religiosa), agora arremessamos prendas uns aos outros e comemos até à sobre-saciedade. Há, é verdade, uma brisa de mudança no ar, parece insinuar-se uma nova frugalidade, mas está longe de ser relevante.

É neste quadro (talvez imitando Francis Bacon) que me permito desejar-vos, queridos leitores, boas-festas. Se possível retomando a embriaguez original do ciclo lunar, quando ainda se sentia um aperto explosivo no coração porque o dia tinha resistido ao progresso mortífero da noite.

Victor Gonçalves


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O Natal é também um ritual de transição. Todos os anos bebemos à pessoa que fomos nos últimos doze meses, com mais ou menos alívio de abandonar esta pele, abraçando o que é novo com mais ou menos sofreguidão. Celebremos os que já não estão connosco à mesa. Sejamos preguiçosos. Tiremos uns dias para ver filmes, para ler livros, para passar tempo com aqueles que amamos. Talvez façamos menos merda no próximo ano. Talvez seja possível sermos melhores. Para todos um Feliz Natal e um bom 2019.

José Pedro Moreira


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Fra Angelico pintou esta Anunciação em meados do século XV e pode ser vista no Convento de S. Marco em Florença. Não sei se alguém alguma vez escreveu algumas linhas sobre o desastre que este fresco parece ser em termos de linguagem corporal da Virgem. “Porquê eu??, meu Deus!!,” é o que todo o corpo dela diz. O rosto dela deveria expressar a gravidade do momento e a sua inata bondade, a humildade que recai sobre os escolhidos para um dever que em muito ultrapassa as suas capacidades. Mas há na postura do corpo qualquer coisa de defensivo, como implícito nos braços cruzados e que não encontra eco na postura do anjo (embora os braços dele estejam na mesma posição, o corpo inclinado para a frente sugere mais ataque do que defesa, e os braços cruzados são um reconhecimento da tensão no corpo da Virgem). E, no entanto, qualquer coisa no rosto dela trai o princípio de uma abertura.

A vida, assim o prova o ciclo de um ano, está cheia de situações impossíveis, tensas, imprevistas. Politicamente o ano foi um desastre. O mundo é um lugar menos aberto. Restam-nos os pequenos mistérios, a felicidade que existe em coisas inesperadas, a possibilidade de não nos fecharmos no nosso lugar, de querermos viver entre as coisas que nos ultrapassam. E talvez até isso que um frade nascido na periferia de Florença há mais de seiscentos anos entreviu ao pintar as asas coloridas deste anjo doce e um pouco efeminado: o lado misterioso das mensagens que os outros nos trazem, a adequação do imprevisto enquanto resposta tanto para os perigos quanto para as monotonias da existência (se nós não cairmos no desespero ou na indiferença quando eles nos calham), a urgência da vida que nos varre com ela.

Não me apetece decidir muita coisa para 2019, ainda que isso seja mais ou menos inevitável: depois desta breve trégua, o ano novo virá com os seus velhos combates e as suas parvoíces renovadas, mas um dos melhores poemas que li este ano (em Fuck the Polis de João Miguel Fernandes Jorge) acabava com dois ou três versos em que se podia ler qualquer coisa como: come a tua comida, lê os teus livros, vais continuar a existir. Pode existir entre o lado forte do mundo, que ataca, e o lado que se defende, alguma ternura, uma aliança de onde algo de melhor possa vir.

Que sempre que penso na Virgem, grávida sem querer, também pense que o mundo precisava de uma Anunciação pintada por Paula Rego é matéria para outro postal.

Tendo dito isto, um excelente 2019, meus caros leitores!

Tatiana Faia


Que este ano o Natal seja sinónimo de alienação para todos: vivam as fantasias, vivam as desconstruções, mas vivam sobretudo as alienações: é daqui que nasce o caos e do caos também nascem flores.

João Coles

Porto Ainda 

Tenho levado repetidas vezes amores à nossa cidade, 
Todos acabaram por se perder, ao contrário do que de ti 
Ainda uso em sonhos, lá fui feliz com elas, dias de Sol, 
A cidade contigo aparece-me sempre cinzenta, 
Mesmo assim preferia ter recebido das tuas mãos 
O prazer que trocamos em crepúsculos dourados, 
Estranhamente não encontro mais as nossas ruas, 
Não sei mais se é a cidade que não é a mesma ou eu, 
E tu apenas a recordação ridícula de um pedaço de caminho, 
Fundo como o vento, devias estar com o que já passou, 
Estranho-me quando penso que as espelhei no rio, 
Uma a uma, ainda com os seus sabores na boca, 
Como comparando-as com o que mais amei 
Daquela cidade, a vontade do teu desejo triste. 
 

17.12.2018 

Turku