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as saídas de emergência
Ed Ruscha - “God knows where”, 2014.
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Patrícia Lino, Arcano 2
Poemas de Marcelo Ariel & Guilherme Gontijo Flores
Desenhos de Patrícia Lino
Canto 8
Até as pedras largadas
talvez mudas
escaldadas sob o sol
junto das costas caladas
numa grandeza solene
trinam memórias do passado
ligadas à sina do meu povo.
Até o pó sob os teus pés
responde mais amor
aos nossos passos do que aos teus
são as cinzas dos nossos ancestrais
e os nossos pés descalços sabem
seu toque simpático
porque o chão é rico
da vida desta raça.
Os valentes morenos
e as mães carinhosas
e as jovens alegres
e as crianças pequenas
que aqui viveram e sorriram
de nomes hoje esquecidos
ainda amam estes ermos:
seus refúgios profundos
no entardecer crescem de sombras
com a presença de espíritos.
Fala o chefe Seattle
numa língua transcrita
e traduzida
e ainda que traída
dali floram fermento e fogo
calcinando mentes
feito neve na língua
abrasa até os dentes
feito flecha estacada
crânio adentro
ainda aduba o mundo.
Esta é a fala de neve e brasa
de flecha e adubo
porque isso somos
até o fim do mundo.
E quando o último vermelho
morrer sobre a terra
e sua memória entre os brancos
virar um mito
estas costas vão fervilhar
com mortos invisíveis desta tribo.
E quando os filhos dos teus filhos
se acharem sozinhos no campo
no armazém na loja
numa estrada ou no silêncio da mata
não estarão sozinhos:
nada na terra tem lugar
dedicado à solidão.
À noite
quando as ruas das tuas cidades e aldeias
quedarem caladas
e acharem que estão desertas
vão se apinhar com a volta de hóspedes
que antes enchiam
e ainda amam
esta terra linda.
O branco nunca estará sozinho
que seja justo
e lide bem com o meu povo:
os mortos não restam sem poder.
Patrícia Lino, Arcano 8
Canto 9
Após os oitenta tiros
retornará
o grão da voz
de Evaldo dos Santos Rosa
através do sabiá
cantando na beira do Rio.
Tradução do canto
do pássaro:
‘ Que o encantamento gere
encantamento.
Não celebro,
lamento que breves sejam
as sessões do amoroso
pensamento.
A pressa em não-saber
trará a cegueira
das vozes
silenciadas antes
que sejam,
através da alma
esboçada
como a beleza
do copo de leite
em sua brancura
de metáfora
da morte
de uma estrela
distante.
E então tudo será reencontrado.
Serão unidos os cantos lentos dos céus
e para sempre refeitos
os silêncios do mundo em ruínas
e o silêncio do canil Krishnamurti.
Pelos quartos abandonados
uma revoada de pássaros irá dormir
e veremos o sol morrendo
mudo como um olho fechado
e feroz feito pedra afundando.’
~
João Coles, Merda para as Musas, Fresca, 2020
emborrachado
com um maço de cigarilhas na mão
deu-se-nos a conhecer à porta da Casa Liège
“sou primo do Salgado” disse o velhote
“mas não vão pr'aí bradá-lo aos 4 ventos”
“é melhor não” respondi
nunca o vi sóbrio
e pensando bem
nunca o vi com um copo vazio -
de vez em vez entornava
um cochito ou outro -
nem tão-pouco o vi beber de empino
“eu sou o puto da Bica” respondeu
quando lhe perguntámos pelo nome
“toda a gente daqui me conhece
por puto da Bica”
puxou a cigarrilha até aos pulmões e num minuto
lá nos disse que se chamava Carlos
a minha amiga dava-lhe trela
um pouco mais de dois dedos de conversa
enquanto eu os ouvia com atenção
disfarçada
fazemos uma boa parceria
ali sentados nos degraus da Bica
somos dois bons comparsas
o equilíbrio certo
entre silêncio e rumor
entre euforia e disforia
entre vida e morte
“fui ter com o meu filho a Vilamoura”, contava ele a certa altura
“e já agora, deixe-me que lhe diga, querida,
os pastéis de nata ali não valem uma beata”
“pode dar-me uma cigarrilha” perguntei
“meu querido, este é o tabaco mais reles que
podes fumar”, respondeu mostrando-me os Chesterfield
“bom, ou isso ou o pastel”, retorqui
e lá me deu a cigarrilha e
meia dúzia de gotas de vinho branco
nas calças
“depois de uns quantos dias lá em baixo”, prosseguiu
“não tinha cheta para voltar,
e como o meu filho trabalha no casino
e percebe como tudo funciona ali dentro
disse-me «ouve, velho, é aquela a máquina que
te vai levar de volta a casa»,
e, meus queridos, parece mentira
mas aqui me têm,
venci a maldita da máquina”
o ascensor travava palmos abaixo de nós
num resmungo preguiçoso de Julho
recheado de turistas até às costuras
e o guarda-freios no derradeiro sisífico esforço
“isto é que é uma maravilha” disse o puto da Bica
olhando embasbacado para as estrangeiras que desciam do ascensor
com o copo inclinado em ameaça de
verter o vinho a qualquer instante
é um talento raro equilibrar ao mesmo tempo
a embriaguez e a volúpia
sem fraquejar
e nós cedemos sempre
vertigem
é estar montado numa Vespa
enquanto o teu amigo guia
(os dois bêbedos)
cantam o "Sarraccino" de Carosone
e a "Malafemmena" de Murolo
e tu te apoias no assento
com a mão esquerda
e falas com o teu amor ao telefone
com a mão direita
sem capacete
porque a verdadeira vertigem
é essa voz que
te sussurra ao ouvido
“Eu evito “acabá-la”. (…) E estou
sempre algures na pintura”
- De Kooning
I
Se De Kooning fosse português
teríamos apenas dois quadros e seis desenhos.
Portugal – essa entidade abstrata mistura de bom e ruim – teria
como bem sabemos amordaçado o seu pescoço até ao
último sufoco. Tê-lo-ia cedo pendurado na praça do
gozo e do desprezo. Seria apenas mais um entre vários suicidas!
Tê-lo-ia silenciosamente enterrado num qualquer
cemitério de província.
Mas cinquenta anos depois teria já feito as devidas homenagens.
Nasceriam assim penas e penas escritas em antologias elogiosas.
Iria pedir a todo e qualquer poeta de serviço poemas dignos de limpar o cu.
E aos prosadores (onde andam esses?) teria pedido longas narrativas
para encher o fosso daquilo que meteu
no lixo.
Recuperado o artista era agora possível estendê-lo como
uma pastilha elástica por todo o retângulo. E assim
a pequena exposição
seria
do Norte às várias ilhas
o acontecimento do ano.
seria uma máxima ao vento uma a dizer a todos
Somos um país culto!
Mais vale uma sardinha no prato do que um De Kooning na parede!
Dirão muitos. Ora aí começa exatamente o problema…
II
De Kooning para minha alegria não era português! Uffa!
E assim este poema já é possível com várias pinturas.
Antes de mais é preciso dizer que ninguém me encomendou
este poema. Os poetas não comem. São umas putas sem boca.
Este poema também é preciso dizer não vai enquadrar nenhum
artigo numa qualquer página de jornal ele não consegue ser tão
mau por isso não é aceite. E além disso convém dizer que não
se destina a cair nas boas intenções de uma galeria moderna.
Vou aqui dividir De Kooning em quatro partes essenciais
sobre as quais não vou dizer nada. Nada? Sim vou falar de
De Koonig sem falar dele. Assim vamos ter: períodos de mulheres
Desertos de 58 Carnes vivas de 60 a 70 e finalmente a belíssima
languidez dos 80.
III
É preciso toda esta explicação para os meninos perceberem.
Lá está. É preciso um poema que explique aquilo que não era
suposto explicar um que diga: Senhor leitor coloque aqui o seu
pé depois a testa ali e vai em frente.
Pensando bem teria de recuar ainda mais: Quem é
afinal o De Kooning? Alguém pergunta. Bom querido leitor
vou fingir que não ouvi esta pergunta e vou continuar pode ser?
É que é cansativo ter de explicar o uso da palavra X
e Y em cada frase que se usa. Eu sei Eu sei este é
um discurso um tanto ou quanto irritante mas
tenho de ser irritante para ao chegarem ao fim
dizerem Ele tem razão! Mas se não o fizerem
não fico magoado
já estarei noutro poema
e este ser-me-á totalmente indiferente.
Não fico magoado porque lá no fundo
também conheço bem as linhas como que me coso.
IV
Período das mulheres. Dona Olga ilustre defensora das
mulheres já veio a público dizer que alguns dos meus poemas
são um atentado aos bons costumes ao nome e trabalho das
mulheres. Caro Vítor Teves que tem a dizer sobre isso?
“Misógino é coisa que nunca fui. Toda a mulher
tem o seu devido valor até mesmo a chata da
Dona Olga que passa a vida a policiar as palavras
e as intenções dos outros. Outro dia por usar a
palavra “Mulata” fui racista. Ora “Mulata” são
as bolachas açorianas da Moaçor. São uma delicia!
Hoje sou misógino na quinta fui racista e amanhã
serei homofóbico coisa que o meu namorado já me tem
vindo a dizer sempre que lhe digo que o arroz tem muito sal.
Sobre o período das mulheres pouco sei confesso!
Sobre o período de De Kooning das Mulheres gosto imenso.
A minha mulher preferida é a “Mulher V” aquela que traz
o Báton esborratado. Lembra-me a Barbara Stronger à saída
da discoteca às 07h da manhã toda bêbada e descabelada.
Era uma grande Mulher!
V
Auto-estrada de Montauk. Muita coisa acontece nas auto-
-estadas dos Estados Unidos. Mas ali não há nenhum sangue na
longa planície deserta. O deserto imenso absoluto lindo. Nele não
há portas para o rio apenas o
tédio de domingo à tarde.
O Longo longo tédio de
uma longa longa
estrada.
VI
Carnes de 60. Um par de Accabonac. Como
se a carne deslizasse sozinha sem o suporte
dos ossos. Amores em espera vestidos de
pinceladas e massa cor-de-rosa.
VII
A languidez. A plana e lenta pincelada desce pelas
curvas do teu ventre e a sensual linha sobe ao
teu lábio superior. No caminho
a paisagem diz ao corpo:
Juntos para sempre!
VIII
E chego ao ponto – aqui – a este – em que tenho de
reescrever tudo. Pois está visto ser poeta e pedagogo
dentro do mesmo poema não funciona
são águas que não se misturam.
Outro dia voltarei a De Kooning e claro
aí ninguém me vai perceber.
Olha que bom!
Pierre Bonnard, Paraíso Terrestre, 1916-20
vieram
em vários camiões
baldes e baldes
ao terceiro dia
ficaram sem azul
tantos céus
é o que dá
a seguir o verde
ao quarto dia
as folhagens
durante milénios
por terminar
ao quinto dia
amarelo e vermelho
o sublime
teve de ser
racionado
na conclusão do crepúsculo
o sexto dia foi
de acabamentos e limpeza
ao sétimo
os anjos descansaram
fizeram um piquenique
vieram as famílias
eles
ainda de fatos-de-macaco
um deles
o de sobretudo cinzento
(começava o outono dos homens)
ergueu-se sobre os campos
dedilhou triste
a rebeca que trazia
Livros, filmes, ideias.