Cartas: Alberto Moravia a Elsa Morante, 7 de Agosto de 1950

 
 
Alberto Moravia e Elsa Morante numa viagem à Pérsia

Alberto Moravia e Elsa Morante numa viagem à Pérsia

 

Tradução: João Coles

Solda, 7 de Agosto de 1950

Cara Elsa,

A tua carta finalmente chegou hoje, segunda-feira, dia 7, e provocou-me tristeza porque vejo que estás infeliz e que nada te faz bem, nem estar comigo, nem estar sem mim. Gostaria muito de te dizer alguma coisa que te consolasse, mas apercebo-me de que é impossível, também porque normalmente as razões para a tua infelicidade são obscuras e obscuramente expressas. De qualquer modo, se bem entendi, a viagem a Roma não fez senão agravar a tua situação. Qual foi, entretanto, a misteriosa ocorrência que perturbou a tua relação com o LV [Luchino Visconti] não percebo, mas imagino que, como sempre, não seja algo irreparável.

Ai de mim, é difícil dizer coisas que não pareçam superficiais neste casos, por isso espero que te baste saber que gosto mesmo muito de ti e que desejo que sejas feliz.

Quando receberes esta carta já terás o meu telegrama para Sorrento. Penso que Sorrento é um lugar bonito e calmo onde se está bem. Poderíamos ficar, digamos, até dia 22-23, isto é, uns dez dias. Eu disse que chego dia 14 por precaução, porque a viagem é longa e gostaria de deter-me cá em cima até dia 10, e depois um dia em Roma. Daqui a Roma são dois dias de viagem aproximadamente, depois com o dia em Roma faz três dias, e depois o dia seguinte até Sorrento faz quatro, isto é, dia 14.

Espero que corra tudo bem. Depois iremos a Veneza, e depois Deus decidirá. Eu recuperei do braço, o médico daqui meteu-me um curativo vesicante que quase me curou.

Até breve, até já, um abraço,

Alberto

Almoço em Boa Companhia  

Ao almoçar num banco de jardim com uma gralha-de-nuca-cinzenta,

Com quem partilho o meu cachorro-quente, bem frio, do Lidl,

Dou-me conta, que se calhar, fui realmente poeta, agora não,

Agora vejo apenas, vejo que rapidamente as palavras escritas

Se esquecem, porque não foram lidas, mal se apagou o brilho

Da juventude e já o interesse desaparece, ao menos a gralha,

Dá-me a atenção de todos aqueles olhos cinzentos,

Eu sei que a vontade é de um pedaço do pão, mas ao menos

Não finge interesse nos belos rabiscos de merda, que deixo

No bloco ridículo, que já não é mais que um hábito,

Como sacar mais um cigarro no meio de um fumo de aborrecimento,

Também isso deixei, pensei que me salvava com um comprimidinho,

Todos os dias ao acordar, mas não vou andar a obnubilar

A minha vontade de que todos se vão foder, não me parece

Que andar a cheirar rosas e cantar primaveras, a esta época

Do apocalipse, seja uma atitude saudável, fui poeta,

Agora como cachorros-quentes em bancos de jardim na companhia

De gralhas, silenciosas, como gosto, sem sequer um Acho que devias,

Nem um Seria melhor se, nada, uma fome silenciosa, simples,

E a primavera lá vai, como muitos lá foram, agora que se foda,

Poetas há muitos, acho que é uma questão de conseguir aguentar

A queda nas graças, um equilibrismo entre meia dúzia de versos

E um bater palmas, o tempo tornou-se demasiado curto,

Não há tempo para alimentar bois nem burros,

A palha custa madrugadas e muitas garrafas de vinho,

Palmadinhas nas costas e sorrisinhos falsos matam a fome

A quem tem a barriguinha cheia, vamos gralha, já não

Estamos para esta merda, vamos, antes que alguém dê por nós.

 

 

Turku

 

17.06.2021

espiões

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

às vezes chegam a meio da noite
e algum tempo mais tarde acabam por ser
fuzilados junto aos muros
que dividem as cidades
onde nós vivemos nas nossas apertadas
parcelas de amargura e felicidade
e que não se parecem nada com as vidas complicadas deles 

não conseguimos entender porque fazem este trabalho
mas às vezes conseguem voltar a casa
quando não voltam morrem anonimamente
e muito poucas pessoas dão pela sua falta
as suas famílias raramente sabem
o que fazem eles ao certo
ou o que lhes aconteceu exactamente
às vezes um ou outro extraviado
bate à porta de casa muitos anos mais tarde
pela calada da noite
e não fica por muito tempo
as suas mães quando envelhecem
sofrem de ainda mais melancolia
do que as mães dos exilados 

usam sempre nomes falsos
e dormem com mulheres casadas
que amam ou não amam
e nisso parecem-se mais connosco
queixam-se que é sempre um inferno
quando se apaixonam
mas apaixonam-se com mais perigo
do que nós e temos inveja deles por isso 

parece por vezes
que viveram sempre no nosso país
e falam a nossa língua sem sotaque
outras vezes não mentem sobre de onde vieram
explicam que isto é para que não se esqueçam
muito das histórias que têm de contar
quando precisam de mentir
a outros espiões que por vezes
precisam de recrutar
para cumprir as suas missões 

tornaram-se nossos amigos
porque sabem que somos
estrangeiros como eles
mas sentem uma certa satisfação
por saberem que são mais estrangeiros do que nós 

vivem em casas que nunca serão suas
e têm carros estacionados
em todas as garagens da cidade
porque nunca sabem quando é necessário fugir 

às vezes contam-nos que quando se apaixonam
de verdade precisam de deixar armas carregadas
em estações de metro ou de comboio
e as pessoas por quem se apaixonaram
acabam por ter de fugir
ao cair da noite em aviões privados 

são eles quem os transportam
debaixo do seu chapéu de chuva pela pista do aeroporto
ou têm de se manter discretamente ao longe
nas salas de espera ou nos baldios em redor dos hangares
para se certificarem que os amantes
conseguiram escapar no último minuto 

conhecem sempre as melhores janelas
de onde ver as vidas monótonas dos escritores
de onde espiar o crepúsculo depois de longas horas
observando gente que se move
por salas em esquemas
onde nada acontece
onde tudo acontece 

estão sempre num estado de hipervigilância
reparam em coisas nas quais nunca pensamos
e são perigosos porque sabem
como invadir a nossa privacidade
mesmo quando não precisam de alterar
magicamente a frequência do microfone
dos nossos telefones
para ouvir todas as nossas conversas
e ler todas as nossas mensagens secretas 

todos os seus papéis são falsos
nenhumas das suas roupas lhes pertencem
de vez em quando não podem aparecer
para beber café connosco
porque estão ocupados a ser interrogados
ou mesmo torturados
por espiões mais espertos do que eles
o que nos confessam ser duplamente irritante
porque se atrasam para o café
e porque às vezes se magoam gravemente
às vezes pedem-nos coisas bizarras
e pouco razoáveis

nunca nos falam do seu trabalho
nunca sentem a necessidade de explicar ao certo quem são
têm sempre as melhores histórias para contar
e contra nós sabem sempre como disparar
as perguntas a que nunca tínhamos pensado ter de responder

 

  

Oxford, 2 de Junho de 2021

Gilgámesh, Enkídu (dois poemas do novo livro de João Gabriel Madeira Pontes)

Gilgámesh

Os bichos fogem à distância

Não nasci do silêncio
nas estepes ou da argila morna
da Mesopotâmia

A água não alegra os meus sentidos
mas o pão, a cerveja e esta cidade

que alguém lhe trouxe da feira
depois de apostar todo o salário na loteria

e perder a quina premiada.


Enkídu

 Há quem duvide disto

mas a criação da humanidade
não pode ser mero fragmento
na epopeia particular do herói

não importa qual herói
não importa qual humanidade

De toda maneira
dramas, façanhas e fiascos
quase sempre se acabam
em palavras estéreis

que devem ser batidas no liquidificador
com um toque de lima-da-pérsia
e uma pitada trágica de benzedrina

Os salões dos museus
também são alternativas viáveis

Destinado a ser o orgulho da Suécia
na guerra contra a Polônia
o navio Vasa afundou
em sua viagem de estreia

Hoje não passa de quinquilharia colossal
em algum museu de Estocolmo

Diz uma de suas biografias que, em visita
à capital sueca, Wisława Szymborska
comentou, referindo-se ao Vasa:

“É muito lindo quando, depois
de um conflito bélico entre nações, resta
apenas uma exposição num museu.”

Anos antes, os futuristas
clamaram por heróis
que glorificassem a guerra
e destruíssem os museus

Para eles, não eram simples palavras.

João Gabriel Madeira Pontes, Manobra de Heimlich, 7 letras, 2021

Make Holywell great again [um poema do novo livro de José Pedro Moreira]

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para Shirley e Gordon Clark

 

1

quando terminou
a peça de Clara Schumann
e depois dos aplausos
o pianista se levantou
para apresentar a obra
de uma jovem compositora
Natalie Klouda
(n. 1984)
Mrs. Regan
agora convertida
em futura viúva
de um matemático britânico
não conteve
a sua indignação
e abandonou a sala em protesto
contra o progressivo aviltamento
dos padrões artísticos
da Holywell Music Room
a mais antiga
sala de concertos
da Europa
espalhando
à sua passagem
a redolência violenta que leva
alguns de nós
a evitar
o lado este da sala

 

2

o que me trouxe à memória
o dia
em que pela primeira vez ouvi
os Carducci Quartet
tocarem
o Oitavo Quarteto de Cordas
de Shostakovitch

Mrs. Reagan
alardeava triunfante
um cachecol vermelho
ainda mais nauseabundo

insuportável
aquele Shostakovitch
porque é que ele não se matou logo
e nos poupou o sofrimento?
mas o Beethoven que tocaram a seguir
era muito agradável

 

3

debatendo-se com os sintomas iniciais
de esclerose lateral amiotrófica
forçado a tornar-se membro
do Partido Comunista
Shostakovitch
fechou-se num apartamento em Dresden
e no espaço de três dias
12 a 14 de Julho de 1960
compôs
o que ele julgara ser
uma nota de despedida
um epitáfio que fala
da alegria de noivos
suados e exaustos
mas por fim reunidos
na conclusão
da mitzvah tantz
de aventureiros de mascarilha
em arriscadas cavalgadas nocturnas
por entre bosques românticos
da mão do assassino
seca e tremente
cada vez mais incapaz
de tocar o piano

no centro está
um homem sozinho
fechado numa casa
a chorar
a sua miséria

lá fora
chovem bombas

quando as iluminações cessarem
da cidade
restará apenas
a linha do violoncelo

 

 4

a saída é sempre penosa
anciãos venerandos
recusam deixar o assento
arrastam os pés em protesto
adiando o mais possível
pagar o preço
que a cidade impõe
aos que se refugiam
na terra da música

se um dia houver um fogo
morremos aqui todos
diz-me o Professor Clark
e sorri
um homem sábio
sabe
como negociar
as pequenas derrotas
como quando
teve de correr pelas ruas de Tóquio
em fuga
de um grupo de bacantes
em frenesim
por o terem confundido
com Harrison Ford

chegados por fim à rua
a Shirley abraça-nos
até para a semana meus queridos

e de cada vez
nos sentimos
um pouco menos estrangeiros

José Pedro Moreira, Por favor não dê de comer aos unicórnios, não edições, Junho de 2021

Sobre o autor

Nasceu em Lisboa, em 1983.

Vive em Oxford.

Publicou traduções do 'Agamémnon' de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012) e de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012). Em 2020 foi publicada a sua tradução dos 'Hinos Homéricos' (juntamente com Tatiana Faia e Miguel Monteiro).

É um dos fundadores e editores da Enfermaria 6 (www.enfermaria6.com).

Em 2018 publicou o seu primeiro livro de poesia, 'Gatos no Quintal'. O seu segundo livro, 'Porque canta um pequeno coração', seria publicado na Colecção Mutatis-mutandis da não (edições) em 2019.