25 de Abril Sempre! 1ª parte

Estivemos na Avenida da Liberdade, ritual de atualização da nossa Revolução. Havia mais gente, ou melhor, mais cidadãos, do que em anos anteriores. Mais em número e em convicção. Caramba, o 25 de Abril foi maior do que alguma vez imaginamos. Maior porque atualizou, sem grandes níveis de violência e de revanchismo, uma mudança de regime político-social, maior porque nunca confundiu a revolução com os revolucionários. Foi, à falta de melhor termo, uma revolução civilizada (continua a sê-lo, bastou ver todas as lojas de luxo abertas ao longo da Avenida, como se nada fosse). Se os seus ideais são a priori, se existem de forma autotranscendente, tiveram, contudo, de ser materializados. É aqui que muitas vezes, por exemplo na Revolução Francesa, tudo se precipita para o abismo do terror, porque se liberta a vingança acumulada numa enorme economia do ressentimento. No nosso caso, a Revolução foi conduzida por ser humanos calmos, com sentido do relativo e do finito, não impuseram uma redenção, antes projetaram um futuro radioso e bondoso, longe, bem longe, do passado e do presente. É por isto que devia ser, simultaneamente, um ritual de atualização (continuação) e de iniciação. Vincando que ninguém é dono do 25 de Abril, somos nós que lhe pertencemos. Pertencemos-lhe, mas sem nós não se cumpre. Portanto, quando se afirma que «falta cumprir Abril», queremos dizer que nós, cada um de nós, ainda não o cumpriu, nos gestos e ações de cada dia.

Faltará, então, o povo (como gostava de repetir Gilles Deleuze)? Um povo que mereça esta Revolução? Sim e não. Sim porque se nota cada vez mais que uma franja significativa da população portuguesa não vai, ou já não vai, ao 25 de Abril. Eu e Tatiana Faia comentávamos que a manifestação era da burguesia, média burguesia (desculpem-me a categorização apressada), a que mais facilmente se revê nos ideais da liberdade e da igualdade, a que reconhece as vantagens de uma sociedade cosmopolita, a que lê e reflete, sabendo, por isso, que a omnipotência messiânica só quer dizer brutalidade e miséria, a que não se deixa facilmente embriagar com promessas de ordem e progresso guinando em direção ao passado. Sim porque, em concreto, não esteve nem a alta burguesia (sem surpresas), nem o proletariado (continuo a simplificar as categorizações sociais). Este último deixou-se alienar pelo canto das sereias desafinadas da direita populista, que lhe prometem, literalmente, este e o outro mundo, uma união mística. Quanto à alta burguesia, ela vive no céu, quer lá saber dos problemas humanos. Por outro lado, não falta o povo. Esteve na manifestação quem devia estar, um povo que representa o que de melhor foi possível fazer com a massa humana, com um aglomerado de forças tanto inventivas, cooperativas e construtivas, quanto destrutivas. Um povo a que tenho a sorte (e trata-se mesmo disto) de pertencer.

Mas esses que faltam são um sintoma do enfraquecimento do sopro democrático, desta vez faltaram não por indiferença, mas por repulsa. Não será tanto porque lhe querem substituí-la pelo 25 de Novembro, as duas datas são compatíveis, devem, aliás, ser tomadas como irmãs que se complementaram para construírem a nossa democracia parlamentar. Os que agora combatem o 25 de Abril são, antes, os verdadeiros reacionários, nacionalistas primários que apostam tudo numa velhíssima luta de raças, produto da dialética sem saída do «nós» contra «eles», «puros» contra «impuros». Mas esses que se julgam únicos nada mais fazem do que cavalgar a onda antidemocrática que agora percorre o mundo, sobretudo a Europa, Continente onde a democracia estava, está, mais consolidada. Se tomarmos O Choque das Civilizações de Samuel Huntington como referência, revemos aqui o princípio da ação-reação: uma onda democrática tardia que começou, justamente, no 25 de Abril, seguindo-se a Grécia e a Espanha, passando depois para a América Latina e a Europa de Leste, substituindo regimes autoritários por democracias representativas; uma onda reacionária, antidemocrática, com claras tendências autoritárias, iniciada em França há cerca de vinte anos, depois Itália, Áustria, alguns ex-países de Leste, Países Baixos, Suécia, Alemanha, Espanha e, entre outros, Portugal (com uma aceleração incrível).

Não pretendo ver nisto uma qualquer variação do materialismo histórico, sou muito pouco historicista. Parece tudo simultaneamente mais simples e mais complexo. Por um lado, como aconteceu nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, um cansaço relativamente ao statu quo político, do regime e dos políticos que o incarnam, dispostos a quase tudo para manterem os privilégios, fazendo da política um emprego sem termo fixo. Por outro, uma má gestão de expetativas, exigindo demasiado à democracia, querendo que ela roce a perfeição, no sentido de dissolver todas as disfunções e antagonismos. Oscila-se, pois, entre «antes a barbárie do que o tédio do mesmo» e o «estamos muito longe de o melhor dos mundos possíveis». Lassidão (o cansaço pessoano) e euforia reivindicativa. Quase ao mesmo tempo, na brecha que se abriu, a esquerda abandonou a questão da identidade à direita, deu-lhe de mão beijada os campos nos quais se prolongam as narrações sociopolíticas e míticas do Estado-Nação, mas também a simbologia, principalmente iconográfica. Bastante do que define horizontes de sentido, emoldurando-os com uma esperança incondicional (modus operandi do populismo).

Afastemos, porém, o fatalismo. Podemos mitigar a embriaguez de fantasias oferecidas, sem esforço, pelos antidemocráticos. Mostrando, demonstrando que a omnipotência, a pureza étnica e a riqueza abundante não passam de slogans retirados de uma cartilha que tem tanto de antiga quanto de funesta, uma distopia revisitada. Regressando, também, ao espírito conciliador e utópico dos pais revolucionários, em vez de cair na tentação de exacerbar antagonismos, os sectarismos estão mais do que testados, nada de bom proveio deles. Lançar uma onda de veracidade, honestidade, respeito e solidariedade. Um antídoto contra a vociferação dos pequenos esbirros ungidos pela miséria moral. Devemos projetar um futuro mais do que mitificar o passado. Mesmo que o mundo pareça dobrar-se sobre si e não arrastar-se obstinadamente para a frente. Mas são dobras em espiral, um eterno retorno que seleciona, capaz de edificar uma ética, um ethos no qual cada vida só valha tanto quanto outra vida, nunca mais, nunca mais.

25 de Abril sempre!

Ripley

Ripley, de Steven Zaillian, é uma série americana de thriller psicológico em oito episódios de 55 minutos, criada por Steven Zaillian e transmitida desde 4 de abril de 2024 na plataforma Netflix. É uma adaptação do romance policial Mr Ripley, de Patricia Highsmith (1955), e prolonga as versões cinematográficas Plein Soleil (1960) e The Talented Mr Ripley (1999).

Sinopse (com spoilers)

Em Nova Iorque, no início dos anos 1960, Tom Ripley (magnífico Andrew Scott), um trafulha solitário, abandonado, com pouca sorte (um looser), é abordado por um detetive privado que lhe transmite o desejo de um rico armador, Herbert Greenleaf, de se encontrar com ele. Este último foi informado, equivocadamente, de que Ripley era um velho amigo do seu filho, Richard Greenleaf (Johnny Flynn), apelidado Dickie, que vive, há vários anos, a dolce vita em Atrani, Itália, com a sua namorada, escritora de viagens, Marge Sherwood (Dakota Fanning), sonhando em ser pintor. Quer contratá-lo para convencer Dickie a regressar aos Estados Unidos. Apesar de Tom não conhecer Dickie, aceita, pela aventura e pela recompensa financeira.

A descoberta que Tom faz do estilo de vida confortável, hedonista e elegante de Dickie inicia uma trama complexa de mentiras, manipulação e morte. Mas parte de uma admiração verdadeira por Dickie. Tom insinua-se na relação entre Dickie e Marge, o jovem casal, e semeia alguma discórdia. Numa viagem a San Remo, enquanto Richard tenta afastá-lo da sua vida, Tom assassina-o em alto mar num bote alugado, afundando depois o seu corpo amarrado à âncora. Esconde o bote e apanha o comboio de volta a Atrani e começa a fazer-se passar por ele, substituindo-o na dolce vita (sem Marge), que ele acredita merecer.

Marge, Dickie e Tom Ripley em Atrani

Ripley é uma personagem que percorre vários livros de Highsmith, e se este diz respeito ao livro de 1955 citado acima, tem contudo a espessura de várias camadas que ultrapassam o Mr Ripley. Por isto e porque os filmes anteriores — Plein Soleil (um Alain Delon vingativo e sedutor) e The Talented Mr Ripley (um Matt Damon que se vê ultrapassado pelas circunstâncias e muito mais dependente do talento e ousadia, também performativas, de Jude Law) — lhe abrem oportunidades estéticas (narrativas, iconográficas e cinematográficas) que talvez não tivesse se fosse originário (a primeira obra deve ser mais escorada no verosímil do que as versões que lhe possam seguir). Nesta série, a opção pelo preto e branco, um claro-escuro com inúmeras gradações, recusa a ideia de uma Itália de sol e praia (central nas duas versões anteriores) sem parecer arbitrário, como se fosse um lance de dados estético inoportuno. A fotografia, Robert Elswit, pôde, assim, ser composta a partir dos princípios das pinturas de Caravaggio: um fundo escuro com iluminações intensas de partes dos elementos que as compõem, incandescências. Um Caravaggio omnipresente, pelo que acabei de dizer, mas também pelas citações diretas, história dentro da história e a circunstância de ter sido um assassino perseguido (matar eleva tanto quanto rebaixa). Ripley é, pois, sombrio e luminoso. Mas como o fio narrativo se desenrola a partir do ressentimento (em Plein Soleil talvez seja a vingança), um Ripley desconsiderado que tem mais talento do que os senhores (Dickie, Marge, o inspetor). Um Ripley que não é reconhecido, mesmo quando só pretende ser o melhor amigo de Dickie. Ser reconhecido como o cão de Dickie. É a escolha desta variação, que com certeza muito deve à Andrew Scott (que conhece Hamlet de trás para a frente), que justifica tudo o resto.

Tom Ripley em Roma

Em primeiro lugar, a demora. Diálogos, com o dito e o não dito, prolongados (de uma precisão semântica e performativa incrível, só assim o inspetor parece estar próximo de descobrir o que acaba por ficar encoberto). A câmara que espera pelas personagens, ou fixa longos planos (contra o frenesim atual dos planos curtos, multiperspetívicos, em movimento), planos fotográficos mais do que cinematográficos. Cenas em que sentimos o tempo longo, quase angustiante, de uma subida dificílima para dentro de um bote, ou as várias escadas que se sobem e descem, marcando um cansaço (e simbolicamente uma moral icariana) que só pode ser sentido se a câmara e a montagem aceitarem mostrar quase todos os degraus. O tempo que é necessário para os micromovimentos do rosto serem reveladores. O tempo que domina e é dominado, domesticado pelo olhar de Ripley, quando passa da afeição e observação para a geometria da manipulação, da omissão e da previsão (neste caso parece um olhar vazio, mas é apenas um olhar que se desvia da culpa e da descoberta que outrem pode fazer, é o olhar de um assassino que se quer safar e, por isso, não tem tempo a perder com a vidinha). Para este tempo da demora também contribui uma banda sonora frugal, com alguma música ligeira italiana da época (1960). Em contraste absoluto com o histrionismo do jazz (Miles Davis e Charlie Parker) de The Talented Mr Ripley. O ritmo lento contribui para uma hipnose que o espetador aceita como forma de aceder, talvez sem sucesso, ao mistério de Ripley. Não ao de um assassino que quer escapar, mas ao seu para lá bem e mal, de uma contenção emocional que fere as leis da humanidade.

Ripley no barco para palermo

Patricia Highsmith escreveu livros policiais, mas escreveu mais do que isso. Escreveu sobre direitos e deveres humanos, sobre a forma de subvertermos o que somos e o que devemos ser. Sobre uma maldade banal que só desordena, sem força para converter, para originar novos mundos. Tom Ripley só pretende que o reconheçam e deixem viver não outra vida realmente única, mas repetir e prolongar a vida de Dickie (arruinar a ordem da identidade). No limite, será uma vida falsa, um falso Dickie (de quem se liberta no final). E como em tudo o que é falso, reduz-se a intensidade vital, até na composição dos exteriores feitos numa Itália sem enxames de vespas e magotes de crianças e adolescentes capazes de enganar, sem remorsos, os mais incautos. O ruido italiano é abafado pelas sombras do mal e pelo desvanecimento do autêntico. Dickie é, aliás, um pintor medíocre que tem um Picasso em casa mas que quase o omite para destacar, sem convicção, as imitações grotescas que realiza. O cunho da verdade está em Marge (diferente no último episódio), mas falta-lhe a força e o talento para a impor, e em Caravaggio. Só este último nos mostra, sem rodeios, como as lâminas são cortantes e a vida se faz com reais golfadas de sangue. Nos mostra como a arte (engano) é mais viva do que a vida.

a ideia fechada

risco minimizado
o escopo bem definido
ainda assim
o segmento de mercado
ardia
em justa indignação
o jantar
estava atrasado
e na televisão
a menina do telejornal
anunciava um novo crime
em tudo igual
ao do dia anterior

velhos senis
confinados a minúsculas celas
sem livros
batem com a mão no peito
nós cumprimos
os nossos deveres
com zelo e afinco
e nem um obrigado
a casa em ordem
o livro de contas organizado
a reserva de enlatados reebastecida
papel higiénico em abundância
junto à retrete
tudo pronto
para a geração seguinte

lá fora
a floresta arde
e a doença e a solidão
afiam
as facas

Dois poemas de "Silvina" de Leonor Buescu

isso é a tua incumbência
que eu não chego às plantas
tu quem trata lá no alto
a ligeireza
inteireza fresca com que
levas a água à existência
verde forte do caule

cresce porque lhe
dizes o dia a hora
do sol franco embora
tímido
por vezes na sua rega

contigo a folha vence
brota o botão
a flor capaz


machadinha

pomba
pombinha
se tu és minha
aí na rua
também eu sou tua
quieta
esmagada
impressa
plo pneu
e pla chuva

nem distinguem
as penas do alcatrão
camuflada
tudo cinza
aberto
opaco e mudo
leque de espinhas
e sangue morto

pomba
pombinha
há quem te diga
grande praga
mas esses
não te vêem
quando voas

Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades

Peter Sloterdijk, lição inaugural no collège de france, 4 de abril de 2024

Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.

Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).

«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.

II

Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).

Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.

Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.

Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.