A Cadeira (do) Fantasma, pelo autor (Fernando Guerreiro)

                                                                   MARNIE

     1.

     Comecemos pela capa.

     A imagem corresponde a um fotograma em que Marnie (Tippi Hedren), depois de roubar o cofre da empresa em que trabalha, e ao ouvir os sons da mulher da limpeza ali mesmo ao seu lado, se descalça e pára num seuil  (fronteira) que ela não sabe ainda muito bem como atravessar (toda a sequência é filmada num plano único, em silêncio e em continuidade, com o ecrã dividido ao meio por essas duas acções).

     Daí a incerteza e descompostura do corpo com um pé ainda calçado e o outro já sem sapato: atravessará ela, ou não, esse limiar? (Em boa verdade ela já o ultrapassou – este não é o seu primeiro roubo – pelo que o problema é o da compulsão à repetição do acto).

     O plano é semelhante ao de Vertigo em que vemos Judy (Kim Novak) a sair de outra “caverna” (cripta): a casa de banho do quarto que ocupa e em que se compõe (metamorfoseia) como Madeleine, o “fantasma” de Eurídice por que anseia e clama durante todo o filme Scottie (James Stewart). (Em Marnie, aliás,  há várias situações em que o personagem, e a actriz, se metamorfoseia(m) noutra “pessoa”: é o que sucede logo no início quando ela passa de “morena” [brunnette] a “loura” – uma cena  que é introduzida pelo próprio Hitchcock que, numa das suas habituais aparições, a vê passar no corredor do hotel em que procederá à sua transformação de Marion (Holland) – sim, o nome de outra “ladra” (e loura) famosa (Janet Leigh), a de  Psico – em Marnie (Edgar).

     O aparecimento de Madeleine, claro, é o do próprio cinema enquanto dispositivo que nos dá a ver mutações (transformações) de corpos (e formas) em acto (E de facto, se Judy e Madeleine, enquanto personagens de ficção,  morrem, ficará para sempre na nossa memória o acto da sua tão precária aparição/ reanimação, contra todas as expectativas, perante os nossos olhos).

     No entanto, Marnie (Tippi Hedren, ela própria um “avatar” de Kim Novak [no filme , Marnie tem vários traços da persona de Madeleine: o formalismo convencional das roupas, o mesmo arranjo de cabelo, com o caracol em espiral, quando vista de costas]), ao contrário de Judy (Kim Novak) sobrevive e nessa medida, tendo de passar por outro pórtico apertado – o do pesadelo vivo do trauma que a marcou na infância (veja-se o flashback final em que revive o “crime original” de que é o produto e criação) –,  configura-se aqui como uma Eurídice que pela segunda vez regressa para salvar o real (para que ele não se afunde) e, com ele, o cinema (admirável, deste ponto de vista, é a cena em que, no barco de cruzeiro, Mark [Sean Connery] a descobre a boiar de costas na água da piscina e a consegue reanimar, trazendo-a de novo da baía de São Francisco onde se afogara anos antes em Vertigo).

     Como em certa medida sucede com Psico – aqui não só Marnie retoma o personagem de Marion como uma mãe castradora é um personagem relevante dos dois filmes –, Marnie continua e refaz Vertigo mas agora do ponto de vista de Judy (dos seus “fantasmas” e “imaginário”), um mobile de ficção e hipótese de ser a que aqui se dá um novo corpo, aura e presença, entreabrindo-se-lhe  a possibilidade de um outro futuro.

     2.

     Poder-se-á ainda dizer que o livro é também ele uma espécie de piscina ou aquário em que corpos, situações e figuras mergulham para dele (re)emergir mudados, com novas formas, propriedades e modos de ser em que, se o quisermos e nos esforçarmos, temos a oportunidade de nos projectar e (re)fundir para desse modo reformular e reatar com a nossa existência?

     Jean Louis Schefer, num livro de 1995 justamente intitulado Question de style (L’Harmattan), observa que se escreve (pensa) para “gerar formas”=”objectos”, ou seja, “hipóteses”=”teorias” (olhares sobre e para dentro) que podem servir para construir (obstruir e ao mesmo tempo des-lindar) ficções em que o segredo do real e o do sujeito se encontram entrelaçados e mutuamente incluídos: “o que legitima a interpretação”, escreve,  é a sua “parte de ficção”.

     O livro, sempre uma “formação”, entidade viva mental-sensacionalista, vê-se aqui entendido como um “retardador” ou “acelerador” de partículas que, nos interstícios da sua substância (ao mesmo tempo concreta e imaginária), é capaz de abrir frechas, áleas, ou mesmo saídas na engrenagem (monótona e repetitiva) em que regrediu e parece ter emperrado a fábrica poiética do mundo.

     Como com o cinema ou os filmes, afinal.


Fernando Guerreiro
(Livraria Linha de Sombra
[Cinemateca], 5 de Novembro 2021)                                                                                          

Um poema de Ottiero Ottieri sobre a morte de Pasolini

 
 
 



Tradução: João Coles


Pasolini morreu,
mas apesar da sua morte
nunca me resignarei.
A sua morte
é mais absurda do que a minha.
Como é possível ser mortal
o autor de obras imortais?
Onde está ele, entretanto?
Pode relê-las?
Saber que as escreveu?
Tem olhos?
Ou desapareceu totalmente
no nada? Também o nada
é alguma coisa.
Onde é? Sabem onde é?
Quero muito saber.



In Il poema osceno, Longanesi, Milão.


Pasolini è morto,
anche se della sua morte
non mi rassegnerò mai.
La sua morte
è più assurda della mia.
Come è possibile che sia mortale
l’autore d’opere immortali?
Dov’è, intanto, lui?
Può rileggerle?
Sapere che le ha scritte?
Ha occhi?
O è totalmente scomparso
nel nulla? Anche il nulla
è qualcosa.
Dov’è? Sapete dov’è?
Voglio assolutamente saperlo.


In Il poema osceno, Longanesi, Milano

Fernando Guerreiro, A cadeira (do) Fantasma

 

Fernando Guerreiro

A cadeira (do) Fantasma

Cinema excêntrico

ensaio/ cinema

Enfermaria 6, Lisboa
Outubro de 2021, 304 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

16€

 
 

Cada um, com efeito, vem ao cinema com o(s) seus ”fantasma(s)” e introduz-se (fraudulentamente) nas ficções (hipóteses) dos filmes (ficções) em curso, alterando-as no seu sentido, procurando sempre dar corpo e fazer crescer os seus cenários, de modo a, como o personagem de Sonny em Texasville (1990) de Peter Bogdanovich, se tornar parte pregante da super-produção (elementar e pobre) .

 

Homem Sério

Era um homem tão sério que, depois de várias tentativas, lá conseguiu petrificar-se. Terminou, assim, a embaraçosa, e degradante, vontade de, muito de vez em quando, se rir. Não de si, isso nunca lhe aconteceu, meu Deus, mas do que havia de cómico nos outros ou nas cada vez mais frequentes situações caricatas. Antes de se transformar em pedra, o homem sério leu o Nome da Rosa, no qual Umberto Eco reescreveu, e corrompeu, a bela história da dramaturgia antiga ao elevar a comédia a uma dignidade estética e filosófica que a rigorosa censura monástica lhe teria recusado. Obra engraçada e oportunista (produto para um tempo hedonista), pensou o homem sério.

O homem sério a que me refiro não é o homem sério, e muito menos, mutatis mutandis, a mulher séria da nossa cultura popular. Estes são-no pela confiança e fidelidade que demonstram, o masculino na economia do capital, o feminino na do eros. O outro homem sério pode ser pensado a partir de modelos como os de Hitler, Estaline, Franco, Fidel Castro ou Mao Tsé-Tung. Conseguem imaginar as gargalhadas de Hitler? Estaline em autoirrisão? Fidel a contar anedotas sobre a civilização comunista?  Mao a rir com Dr. Strangelove? Franco a sorrir, ainda que ligeiramente, enquanto lia o Dom Quixote? Difícil, não é? O homem que é sério a sério julga, numa intuição que raramente questiona, que foi enviado pela Transcendência para endireitar a humanidade. Impor a verticalidade dos costumes e dos atos, acabar com as curvas da facécia, a impostura da complexidade, o terrorismo do relativismo, a fraqueza da hesitação. Impor a sobriedade social, a verdade revelada, os desejos domesticados, a frugalidade monástica, o castigo categórico dos crimes de lesa seriedade, o rigor de espírito (fundado na pobreza), um vasto e definitivo quadro monocromático que nenhum museu de arte contemporânea, apesar da sua natural tolerância à parvoíce, quererá no seu depósito.

No mundo da filosofia, Hegel, Kierkegaard ou Nietzsche viram bem o peso mentiroso do espírito da seriedade. Sartre, Ionesco ou Beckett escreveram e encenaram peças memoráveis sobre a tirania do sério. Musil, Orwell ou Gunter Grass mostraram a mediocridade da ação e o medo incrível da liberdade dos homens sérios. De uma ou de outra forma, estes pensadores críticos (autocríticos, antes de mais) denunciaram o perigo do homem sério, que, se não sucumbir a niilismo que o leve a transformar-se numa rocha, quer sempre tornar-se tirano. Porque julga que através dele, como muito bem viu Simone de Beauvoir (Pour une morale de l’ambiguïté), se «afirma o valor incondicionado do objeto». Isto é, de qualquer coisa exterior ao sujeito, tangível ou intangível, mas sempre visto como universal, sem qualquer antinomia.

Genial simplicidade, a do homem sério. E perante a desilusão tem a fórmula mágica de se transformar num niilista, que é o outro lado do fanatismo. Foi nisto que desembocou o nosso homem-sério-rocha.

KRAKATOA É MAIS PERTO QUE O VESÚVIO (continuação)

você

abduzida a todo instante reluz o único jeito de abdução ao pé do único vulcão ainda ativo ao pé do sul da itália onde ainda existia a pedra filosofal a mesma de bolonha a mesma pedra rosa aquela descoberta pelo sapateiro que queria ser alquimista a pedra essa da cor de piacenza da cor dos muros de bolonha do chão todo feito de mármore toda a pedra a pedra que incandesce durante a noite feito o meu corpo que não quer dormir a não ser que


acendo uma vela apago a luz
a pedra me leva ao único vulcão possível e imaginado
a teoria em mim
ao único vulcão possível e oceânico
que existirá num futuro
em que um passado desejado jamais
terá sido escrito por medo de como nós
nos atravessaríamos
sem destruir uma cidade por inteiro

 

 

tudo se transpassou em história
um vírus que nos deixou entregues ao anjo sem guarda
quando até as cartilagens parecem desfeitas

 

  

um vulcão visto de cima
pode se parecer
muito
com uma cona
vista de frente.

A primeira parte deste poema pode ser lida aqui.