Ghosting e Schadenfreude

A humorista francesa Nora Hamzawi declarou que, para ela, «ghoster é, muitas vezes, tato mal interpretado». Um modo de desconstruir a má fama do ghosting, essa maneira de, por mais de uma razão, com certeza, bruscamente ou brutalmente, deixar de falar a alguém sem explicar porquê. Geralmente, este comportamento é entendido como agressivo, não apenas porque quem desaparece deixa o outro em falta, mas também porque fica no ar que o abandonado teve alguma responsabilidade no desaparecimento. Acaba-se, pois, em falta e com culpa. Nesse sentido, falar de «tato mal interpretado» é um eufemismo monstruoso (dionisíaco descontrolado e descrente).

Ariane Nicolas num artigo para a revista Philosophie magazine, de 28 de outubro, resume bem o inferno do ghosting: «O ghosting é um mal da nossa época. Com as redes sociais e as mensagens instantâneas, esse fenómeno de “fantasmação” não pára de se espalhar — é inquietante. De acordo com um inquérito realizado pelo site de encontros Adopte, 72% dos participantes admitem já ter sido alvo de ghosting e 80% consideram essa atitude “atroz”. É preciso distinguir o ghosting do simples «bloqueio» online, que pode, por exemplo, resultar de uma situação de assédio. Deixar de falar com alguém é, evidentemente, um direito. Mas de quem nos protegemos quando praticamos ghosting sem aviso prévio? A pessoa que o faz dá a entender que foge de um incómodo ou de um perigo, quando, na verdade, é ela quem está a agir de forma agressiva. À cobardia inicial acrescenta-se uma culpabilização perniciosa do outro, forçado a perguntar-se repetidamente: o que fiz eu?» Uma passividade agressiva levada ao extremo.

Dir-me-ão que os sentimentos de culpa e de falta se desvanecerão rapidamente, como poderiam durar se se aplicam a um fantasma, a um não-ser? Nada de mais incerto. O evanescente perdura porque se defende muito bem dos ataques, esquiva-os tanto melhor quanto os deixa atravessar a sua ontologia rarefeita. Como se combate o que talvez não exista? Ou, existindo, esconde a sua condição de possibilidade, isto é, mantém secreto o seu modo de existir, que se pode situar num espectro que vai do inautêntico absoluto ao autêntico absoluto. Em resumo, o ghosting transforma o desaparecimento numa presença que assombra.

Estamos longe das boas espectrologias — da hantologia de Jacques Derrida à ausência social de Maurice Blanchot —, no primeiro caso um pensamento sobre a vitalidade escondida dos espectros de Marx, no segundo a autoproteção de uma personalidade extremamente tímida. Em ambos, nada os impedia de se parodiarem a si mesmos, enquanto nos davam coisas sérias a pensar. Pelo contrário, um praticante de ghosting nunca se rirá de si; no máximo, levar-nos-á a refletir sobre as nossas dependências, o peso e a extensão das alienações que nos habitam.

Mas, quando entramos no inferno, uma qualquer luz revela parte da face escondida dos que brindam connosco com copos cheios de veneno. Vislumbramos então o desejo desmedido dos que querem brilhar usando como combustível o sofrimento dos outros, militantes da Schadenfreude, que mais do que uma «alegria culpada», é a versão mais conseguida da «alegria pelo sofrimento de outrem». E quem assim age é porque se sente incapaz de se alegrar pelo que é e pelo que faz. É porque há muito se encontra em definhamento, talvez nunca tenha despontado, talvez nunca tenha verdadeiramente existido, num em-si indiferente ao inferno dos olhares de outrem.

Byung-Chul Han e o papel do filósofo

Byung-Chul Han, Prémio Princesa de Asturias de Comunicación y Humanidades, à sua chegada ao Teatro Campoamor para assistir à cerimónia de entrega dos Prémios Princesa de Asturias 2025, dia 24 de outubro de 2025, em Oviedo.

Artigo do jornal El Pais relacionado com a comunicação de Byung-Chul Han na entrega do Prémio Princesa de Asturias 2025. Tradução de Victor Gonçalves.

Byung-Chul Han, pensador alemão de origem sul-coreana, galardoado com o Prémio Princesa de Comunicação e Humanidades 2025, iniciou o seu discurso no Teatro Campoamor de Oviedo, lido em alemão, com uma defesa da missão crítica do filósofo. «O papel do filósofo, segundo Platão, consiste em despertar, criticar, incomodar e exortar os atenienses». E recordou a parábola em que um moscardo pica e incita um cavalo, «nobre mas preguiçoso», no qual Sócrates vê a sociedade ateniense. É assim que Han se vê a si próprio: «Eu sou filósofo. E, como filósofo, interiorizei essa missão socrática da filosofia». E procura, pois, despertar os outros, ainda que a sua obra, com A Sociedade do Cansaço no centro das atenções, possa causar «irritação» e «desconcerto».

O seu cavalo de batalha é a ideia de que o sistema económico neoliberal nos faz viver numa liberdade fictícia: “Hoje pensamos que somos mais livres do que nunca. Na realidade, vivemos num regime neoliberal despótico que explora precisamente a liberdade. Já não vivemos numa sociedade disciplinar governada pela proibição e pela ordem [como defendem Michel Foucault e Gilles Deleuze], mas numa sociedade do rendimento, que se acredita livre e é regida pelo «poder fazer». Mas esse poder sem limites só no início produz uma sensação de liberdade; depressa gera mais coação do que os antigos «deves».

Assim, critica a autoexploração que nos infligimos, a primazia do smartphone nas nossas vidas hiperconectadas e aceleradas e a síndrome do burnout. Na verdade, Han não é contra o telemóvel nem a digitalização, que podem ser ferramentas muito úteis. O problema, afirma o pensador, é que «na realidade, somos nós que nos tornámos a sua ferramenta. O smartphone usa-nos, e não o contrário. Não é que o smartphone seja o nosso produto, mas sim que nós somos o seu produto». A tecnologia acabou por servir para difundir o ódio e as fake news, fomentando a polarização.

Por isso, contestando a ideia de um determinismo tecnológico, Han sustenta que são os poderes públicos que devem tomar as rédeas do cavalo desenfreado da tecnologia. «A tecnologia sem controlo político, sem ética, pode adquirir uma forma monstruosa e voltar a escravizar o ser humano», advertiu. Tudo isto se aplica, sobretudo, ao crescente poder da inteligência artificial.

Para preservar a democracia, disse Han, evocando Alexis de Tocqueville, são necessárias virtudes como “bom senso, responsabilidade, confiança, amizade e respeito”. Especialmente o respeito, enquanto “cimento social”. Sem essas virtudes, “a democracia esvazia-se e torna-se um mero aparato. Até as eleições degeneram num ritual vazio. A política reduz-se então a lutas de poder. Os parlamentos tornam-se palcos de autopromoção dos políticos”. O filósofo fez ainda referência às crescentes desigualdades económicas no sistema neoliberal, que criam uma brecha pela qual a classe média já está a cair: “São precisamente esses medos que empurram as pessoas para os braços dos autocratas e populistas”.

Na sociedade contemporânea, tudo está disponível imediatamente e ao alcance de um clique, até mesmo o amor, através de aplicações de encontros. As opções parecem infinitas, assim como a sensação de liberdade, maior e mais plena do que nunca. «O mundo assemelha-se a um imenso centro comercial onde tudo pode ser consumido. O scroll infinito promete informação sem limites. As redes sociais tornam possível uma comunicação ilimitada». Apesar da hiperconectividade, os laços reais são frágeis, somos assaltados por uma sensação de vazio e perdemos a capacidade de empatia. «Vamos cambaleando de um vício para outro, de uma dependência para outra». O liberalismo deixa atrás de si um vazio que não podemos preencher com valores ou ideais. É por isso que Han insiste em continuar a ser o moscardo, como Sócrates, mesmo causando irritação aos seus semelhantes.

«Embora tenha irritado as pessoas, afortunadamente não fui condenado à morte e hoje fui distinguido com um belo prémio. Por isso, agradeço-vos do fundo do coração», concluiu.

O cuidado das coisas delicadas

Diz-se na filosofia cabinda que «as coisas delicadas [se] tratam com cuidado». Paula Tavares – condensação de Ana Paula Tavares, nome mais extenso que usa para as outras lides de escrita, teórica ou ficcional, como se, também, a contenção delicada da sua expressão poética exigisse a conformidade da rasura do nome, para assinar os poemas – resgata este provérbio à beira de ser verso, para epígrafe e título de um dos poemas do seu primeiro livro, Ritos de Passagem (1985), incluído na sua Poesia Reunida seguido de Água Selvagem, editado em 2023, pela Editorial Caminho. Nesse poema, a crueza agreste do primeiro verso, de uma só palavra, quase a forçar um neologismo que resiste à gramática, entra num subtil dissídio com o advérbio que forma o segundo verso do poema. É assim que, com a rarefação máxima do discurso, dois versos – duas palavras à solta na página, desalinhadas das convenções poéticas mais formais–, de uma só vez, e com um traço de ironia, dão conta do atrito nas relações, desiguais, entre um homem, uma mulher:

                                                Desossaste-me

                                                                        cuidadosamente

                                   

A afirmação de uma liberdade entranhada e que se procura desenterrar, fazendo-a romper da força bruta da terra, é bem a raiz da poesia de Paula Tavares, que convoca a memória ancestral dos saberes, dos actos, dos gestos arcaicos, primordiais. E não sendo falante das línguas autóctones do sul de Angola, onde nasceu, é, na verdade, também a toada dessas línguas que procura trazer para a sua poesia; e é no seu eco rítmico, quase cantado, que sussurram significados a que se acede pela estranheza dos sentidos. Nestes poemas, pulsa uma forte consciência da liberdade ceifada às mulheres– prática tão antiga como continuada, em culturas e tempos tão diversos–, uma aguda percepção da sexualidade reprimida, do sentimento de despertença do corpo feminino. Por isso, das suas palavras nasce uma força identitária que liga a mulher à terra, em poemas que falam na primeira pessoa, com uma voz própria, voz de mulher com timbre, a furtar-se ao peso social, quase eximindo-o: «o que me passeia nas infinitas veias/é a seiva», lê-se no seu livro mais recente, Água Selvagem (2022), publicado juntamente com a sua Poesia Reunida. Mais do que  metáforas  naturais, em que se convocam as árvores, os frutos, a natureza, o rio, o próprio trabalho da agricultura, a pastorícia, o  texto poético assume a clarividência de um argumento sociológico, antropológico, quando expõe a esta identificação, osmótica, entre mulher e  terra frutificando, vivendo, e vingando, à revelia, exibindo os seus frutos, a seiva, que em si cresce e se cria naturalmente livre sobre a carapaça do mundo, e com o poder de o romper, de com ele se permutar:

 

Aquela mulher que rasga a noite

com o seu canto de espera

não canta

Abre a boca

e solta os pássaros

que lhe povoam a garganta

                                                                        in o Lago da Lua (1999)

 

É dessa mesma terra que, num dos seus poemas, se diz que «tinha feridas na pele». Assim como qualquer mulher as tem, como todas as mães são elas próprias, elas mesmas, uma cicatriz. «As flores com que me vestiram/Eram só/ para arder melhor», lê-se em outro poema do livro Ex Votos (2003)

 Na poesia de Paula Tavares, a palavra vai-se tornando mais fina e afiada, para dizer o íntimo corpo feminino que se funde com o corpo da mulher angolana, corpo próprio fundido numa herança cultural e social. Tudo isto nos mostra o prefácio de Cármen Luccia Tindó Secco, à Poesia Reunida (2023), quando lembra, citando a poeta, a sua voz metamorfoseada «em grito que se espeta faca na garganta da noite».  A terra tocada pela mulher africana, que a molda, simbolicamente, é a herança antiga de uma memória, que se torna palavra na resistência serenamente atenta, e delicada, mesmo quando exibe a violência do gesto. Nos poemas de Paula Tavares, há versos que ressoam essa sabedoria quase proverbial, um saber que se quer próximo da terra, das suas raízes: «enquanto cresço, voo mais alto e mais alto, e quase chego ao chão.», lê-se.

Essencialmente nos primeiros livros, essa liberdade ferida que os poemas atravessam, também esse desabrochar do alvedrio feminino, contaminam a própria liberdade da linguagem, assim como a própria libertação formal do poema, espécie de alforria da convencionalidade poética, que se estende à disposição dos versos da página, até ao grafismo.  Em Ritos de Passagem, editado em 1985, esta conquista emancipatória da palavra escrita, face aos grilhões das convenções formais, menos parece dever às heranças dos experimentalismos vários, herdeiros dos modernismos, do que a uma genuína busca de quem simula oralidades várias mesmo quando escreve, e que vai contornando as peias formais da hegemonia da própria língua portuguesa, embebida aqui na tradição oral e nas raízes angolanas.  Uma força que se traduz em processo poético, ao assumir a liberdade de um ritmo, e que se mostra, exibe, como voz, como corpo, em paralelo com a naturalidade das flores, das árvores, da terra, dos frutos, do que há de mais natural e mais  intrínseco; é a descoberta dessa força, enquanto resgate de uma voz audível, que faz dos poemas caixa de ressonância: espécie de voz, que, em simultâneo, é escuta. É que mesmo na escrita, mesmo exibindo-se enquanto texto, é essa voz que lhe está submersa e oculta.

Transcrevo, na íntegra, o poema que comecei por citar, aliás, um dos que Inocência Mata, no prefácio à Poesia Reunida de Paula Tavares, considera paradigmático dos veios da sua poética. Como em nenhum outro, a procura da liberdade feminina sexual (e a sua concretização, aliás, nos versos finais) se alia  à própria libertação do verso e dos enleios rítmicos  e formais do poema, que avança numa quase progressão narrativa, que perpassa imagens quebradas de uma identidade devastada, um corpo diluído, enquanto pertença, enquanto garante de uma vida própria, que se pode concentrar em pleno  em todo aquele vago emaranhado que nos somos, quando a nós próprios nos designamos pelo pronome «eu». O corpo enquanto ferida, como prótese de um homem, com veias desaguando noutras veias, o pulmão reduzido a metade: o poema exibe, formalmente, também essa respiração esgotada, resultado de um percurso em esforço, que se torna mais forte, autónomo, também, por contornar as convencionalidades da linguagem e a da estrutura dos versos, ritmos, grafismos. No final do poema, encontramo-nos perante um corpo-ser já uno, aceso, que não bate a manteiga, não põe o cinto, e que assume para si um verbo em movimento: «VOU», assim em maiúsculas, ao encontro da liberdade de saltar o cercado, a sul. Leia-se, sim, o poema integralmente:

 

  As coisas delicadas tratam-se

     com cuidado

                                                                                                                              Filosofia cabinda

 

                                    Desossaste-me

                                                             cuidadosamente

                                    inscrevendo-me

                                                              no teu universo

                                                              como uma ferida

                                                              uma prótese perfeita

                                                              maldita necessária

                                    conduziste todas as minhas veias

                                                              para que desaguassem

        nas tuas

     sem remédio

meio pulmão respira em ti

o outro, que me lembre

mal existe

    

       Hoje levantei-me cedo

       pintei de tacula e água fria

o corpo aceso

        não bato a manteiga

        não ponho o cinto

                                         VOU

                                                      para o sul saltar o cercado

                  Lendo este poema, como tantos outros, e não só deste livro inaugural,  ocorrem-me — e também do ponto de vista formal– palavras como florescer, frutificar, e torna-se bem delineada a analogia da semente que cria raiz e fende a terra: desabrochar; e não por acaso a natureza, os frutos, as flores concentram as imagens por que se resgata a voz silenciada das mulheres, como se lhe devolvesse um lugar originário da terra, profundo, ancestral, arcaico que a sociedade quase sempre lhe renega e não lhe reconhece,  exibindo o descaso com que se tem tratado as coisas mais delicadas, mais enraizadas, que sustentam afinal o mundo.

            É inegável a expressa tematização feminista, a recuperação da sexualidade da mulher, da sua identidade – e a presença pulsando de vida da própria natureza —, que tem ainda mais relevância nos tempos pós-coloniais, quando se exalta o herói resistente face ao opressor, mas se relega, para a sombra, a própria resistência da mulher, subtraindo-lhe o real papel na terra que pisa, na terra que é sua, na terra que é, afinal:

                                                Apagaram o meu nome de todas as ruas

                                                Das listas organizadas dos heróis

                                                Das esquinas da escrita

                                                Do desenho

                                                Não tenho nome agora

                                                Do meu título ninguém se lembra

                                                A água da roupa das mulheres

                                                A pedra onde bate a força das mulheres

                                                Junta sílabas de Silêncio

                                                Pendurado na corda ao sol

                                                um nome antigo se desenha

                                                mãe

                                                                            in Água Selvagem

 

 

Também por isso esta primeira pessoa, este eu, com voz própria, não diluída numa abstracção poética e formal, é uma voz que ressoa enquanto se enuncia, como se fora um gesto, que aponta à memória, à consciência de um lugar de pertença, um sítio com a sua geografia própria, a cor, a terra, as raízes, seus frutos, mas também essa língua, as línguas várias desconhecidas, mas que trazem um oculto som de liberdade, de estranheza, da importância da comunicação não verbal, aquela que Audre Lord dizia ter aprendido com a mãe, que em lhe falhando palavras para dizer o mundo as inventava. Assim, a linguagem da poesia.

Não terá sido só Paula Tavares, poeta, que venceu, tão justamente, agora, em 2025, o prémio Camões, mas também Ana Paula Tavares, escritora, historiadora, antropóloga, etnóloga, por este cuidado poético, tão amplo, com que trata feridas do mundo tão delicadas, mostrando, pela poesia, mais do fazendo compreender que as mulheres, mais que donas de casa, talvez sejam, sim, as donas da casa. Desta casa: o mundo como o corpo.

5 poemas de Hidra

Velha Vendedora de Lenços

 

O que te levará, velhinha, a acordar tão cedo,

Para arrastares o teu carro cheio de pacotes de lenços,

Até ao porto de Pireus e como quem pede esmola,

Com esses olhos baços de quem viu demasiado,

Com uma dignidade silenciosa, passas pelos que esperam

Os barcos, entre o sono e a indiferença de mundos

Que nem tu conheces, mostrando a tua preciosa mercadoria,

Um pacote de lenços, que sempre fazem falta,

Como tudo o descartável, como se a vida,

Numa escala cósmica, não fosse também, um lenço de papel,

Compro-lhe um pacote e nos olhos baços

Uma nuvem se move e me deixa de troco um sorriso puro

Como a brisa marítima do Egeu e o sol finalmente se revela.

 

30.09.2025

 

Gatos de Hidra

 

Meu amigo, meu companheiro gato,

Não preciso saber sequer o teu nome,

Olhas-me e conheces-me, houvesse ou não

Queijo de cabra, tivesse eu quase vazia

A garrafa de Malagousia, o teu silêncio

Compreende-me, logo somos irmãos,

Ninguém me exige palavras no tom certo

Como esses olhos de instinto e sabedoria,

Nem sei se és o mesmo de há momentos,

Ou outro, tanto faz, a tua fome furtiva

É igual e a tua leve companhia, um mel sem ferrão,

Obrigado meus amigos pela companhia do silêncio.

28.09.2025

Bálsamo

 

Em pouco mais do que isto encontro a paz,

Isto e o teu sorriso, torna-se o sol pequeno,

E na minha enrugada face nasce limpo outro

Com vontade própria, cai-me a máscara,

Como só quando pouso a caneta no vazio

De uma página em branco, pouco mais que isto

E no prurido constante da minha alma leprosa,

Um bálsamo bíblico, sabes que te amo

Com o tamanho avassalador do medo maior,

Os meus sonhos são agora mãos abertas

Para te receberem, outras páginas em branco

Onde desenhas aviões como se fossem verdades

Numa perdida língua babilónica, os gatos rodeiam-me,

Como se destas páginas algum maná

Ou o resto de umas sardinhas, acenderão amanhã

O teu entusiasmo e com ele o teu sorriso,

Esse bálsamo que leva a pena dos dias.

28.09.2025

Prece Nocturna

 

Que estrelas faltarão ao céu nocturno,

Quando de mim não restar mais nada

A não ser tu, que humanidade a dos homens

Do futuro, depois de todos os pecados cometidos

Serem perdoados pelo brilho baço da extinção

E do ouro, virão dias frescos e limpos

Como na minha longínqua primavera,

Espero melhoras, não me custe tanto o peso

Das estrelas que não verei, nem a maior victoria

Para uma responsabilidade que ecoará

Após o pó soprado do último dente.

28/09/2025

No Museu

 

Olhando esses dentes, ainda tão dentes,

Brancos como a eternidade, tu tão pequenina,

Cabeça virada para a direita, para sempre,

Coberta de adornos, foste amada, pelo menos

Na tua morte, quem te terá trazido aqui minha pequena,

Exposto os ossos à curiosidade de um futuro alheio,

Longínquo, que nunca poderia ter sido teu,

O que terão mordido esses pequenos dentes,

O que te trouxe aqui minha pequena,

Ao silêncio de tantos olhos, que em ti vêem

O reflexo da sua própria humanidade,

Curta foi a tua vida, longo tem sido o teu sono.

 

26/09/2025

Hidra

Arthur Rimbaud, Poesia

«É a explosão que ilumina o meu abismo de quando em quando.»

João Moita voltou a traduzir Arthur Rimbaud, porque, diz ele, falhou da primeira vez — como se fosse possível não falhar com Rimbaud. Quando, numa modéstia arrebatadora, Rimbaud se apresenta como pertencendo a uma «raça inferior desde a eternidade», é para nos prevenir contra o abismo que nos separa dele, não vá alguém pretender pausar, e posar, ao seu lado, talvez até tocá-lo, apreciando «sem vertigens a extensão da sua inocência». Ao abismal junta-se o seu erotismo sem critério, que nós consideramos heresia (pois apenas nos dispomos a amar o amável). Seríamos capazes de repetir isto: «Amei o deserto, os pomares queimados, as lojas desbotadas, as bebidas mornas. Arrastava-me por vielas fétidas e, de olhos fechados, oferecia-me ao sol, deus do fogo.»? Serei capaz, à medida que conheço um pouco melhor as heterotopias rimbaudianas, de assumir, como ele, que «a minha vida seria sempre demasiado imensa para ser devotada à força e à beleza»? Insondável e invivível, pois.

Contudo, quando Rimbaud nos obriga a ser «absolutamente modernos», fica claro, como escreve Fernando Pinto do Amaral no prefácio a este livro, que «fez de nós o que somos». Bem, não de todos nós — muitos ganharam e perderam fôlego com Bukowski, Whitman, Celan, Gamoneda, Pessoa, Franco Alexandre, Herberto, Cesário ou Camões —, mas de alguns dos mais inconsequentes seres vivos passíveis de catalogação num futuro index de eugenismo pós-racista. Nós que chegamos tarde — tarde porque já nada é moderno, tarde porque Rimbaud escreveu até aos vinte anos —, vivemos nos fluxos e refluxos de uma neo-mimesis pós-moderna. Se não o capturamos, nem com as melhores técnicas de domesticação textual, é porque, como diz João Moita, somos tardios: na idade da cultura e na da fisiologia. Falta-nos também a inspiração que torna a escrita inútil, acrescenta o tradutor. Paradoxalmente (será?), estaríamos mais próximos de Rimbaud, se nada disséssemos, caso não temêssemos queimar-nos por dentro. Tanto mais que a sua indisciplina originária (incomensurável com a dos simples aprendizes de militantes) nem sequer se aproxima de uma qualquer dialética: ele foi indisciplinado, como o foi Deus ao criar o Universo.

A categoria de «génio» que atravessa, num percurso dionisíaco, os escritos de Rimbaud, é um anzol que nós próprios lançamos e apanhamos, para nos petrificarmos, ao menos, numa certeza. Com ela podemos tergiversar sem nos dilacerarmos completamente. «Génio» é, por isso (arrisco esta consequência), o título do último poema de Iluminações, talvez o último poema que Rimbaud escreveu — com vinte anos, não o esqueçamos. Dizemos «génio» e conseguimos amar sem dominar. Ou, como escreve o poeta, o génio é uma «máquina amada pelos atributos fatais». Assim se julga compreender o que escreve em «Vidas» sobre a velhíssima esperança, que sempre aproveita o trampolim do passado para saltar mais alto: «Não lamento a minha velha dose de alegria divina: o ar sóbrio deste campo amargo alimenta muito activamente o meu cepticismo atroz. Mas como doravante esse cepticismo já não pode ser posto em prática, e como, de resto, me votei a uma nova desordem — espero tornar-me um louco muito cruel.»

De Rimbaud quero aprender, como já vislumbrara em Nietzsche, que só haverá filosofia se for feroz, «ignorantes para a ciência, extenuados para o conforto; que se quilhe o mundo que temos. É este o caminho. Em frente, vamos!» («Democracia»). Ainda que seja para acelerar a decadência. E, como desejava Nietzsche, se «um povo — como um homem, aliás — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23), então Rimbaud — e todos quantos o ressuscitam, como João Moita agora —, valeu, na moeda mais valiosa que possamos imaginar, cada ano em que foi poeta, o poeta.