Arthur Rimbaud, Poesia

«É a explosão que ilumina o meu abismo de quando em quando.»

João Moita voltou a traduzir Arthur Rimbaud, porque, diz ele, falhou da primeira vez — como se fosse possível não falhar com Rimbaud. Quando, numa modéstia arrebatadora, Rimbaud se apresenta como pertencendo a uma «raça inferior desde a eternidade», é para nos prevenir contra o abismo que nos separa dele, não vá alguém pretender pausar, e posar, ao seu lado, talvez até tocá-lo, apreciando «sem vertigens a extensão da sua inocência». Ao abismal junta-se o seu erotismo sem critério, que nós consideramos heresia (pois apenas nos dispomos a amar o amável). Seríamos capazes de repetir isto: «Amei o deserto, os pomares queimados, as lojas desbotadas, as bebidas mornas. Arrastava-me por vielas fétidas e, de olhos fechados, oferecia-me ao sol, deus do fogo.»? Serei capaz, à medida que conheço um pouco melhor as heterotopias rimbaudianas, de assumir, como ele, que «a minha vida seria sempre demasiado imensa para ser devotada à força e à beleza»? Insondável e invivível, pois.

Contudo, quando Rimbaud nos obriga a ser «absolutamente modernos», fica claro, como escreve Fernando Pinto do Amaral no prefácio a este livro, que «fez de nós o que somos». Bem, não de todos nós — muitos ganharam e perderam fôlego com Bukowski, Whitman, Celan, Gamoneda, Pessoa, Franco Alexandre, Herberto, Cesário ou Camões —, mas de alguns dos mais inconsequentes seres vivos passíveis de catalogação num futuro index de eugenismo pós-racista. Nós que chegamos tarde — tarde porque já nada é moderno, tarde porque Rimbaud escreveu até aos vinte anos —, vivemos nos fluxos e refluxos de uma neo-mimesis pós-moderna. Se não o capturamos, nem com as melhores técnicas de domesticação textual, é porque, como diz João Moita, somos tardios: na idade da cultura e na da fisiologia. Falta-nos também a inspiração que torna a escrita inútil, acrescenta o tradutor. Paradoxalmente (será?), estaríamos mais próximos de Rimbaud, se nada disséssemos, caso não temêssemos queimar-nos por dentro. Tanto mais que a sua indisciplina originária (incomensurável com a dos simples aprendizes de militantes) nem sequer se aproxima de uma qualquer dialética: ele foi indisciplinado, como o foi Deus ao criar o Universo.

A categoria de «génio» que atravessa, num percurso dionisíaco, os escritos de Rimbaud, é um anzol que nós próprios lançamos e apanhamos, para nos petrificarmos, ao menos, numa certeza. Com ela podemos tergiversar sem nos dilacerarmos completamente. «Génio» é, por isso (arrisco esta consequência), o título do último poema de Iluminações, talvez o último poema que Rimbaud escreveu — com vinte anos, não o esqueçamos. Dizemos «génio» e conseguimos amar sem dominar. Ou, como escreve o poeta, o génio é uma «máquina amada pelos atributos fatais». Assim se julga compreender o que escreve em «Vidas» sobre a velhíssima esperança, que sempre aproveita o trampolim do passado para saltar mais alto: «Não lamento a minha velha dose de alegria divina: o ar sóbrio deste campo amargo alimenta muito activamente o meu cepticismo atroz. Mas como doravante esse cepticismo já não pode ser posto em prática, e como, de resto, me votei a uma nova desordem — espero tornar-me um louco muito cruel.»

De Rimbaud quero aprender, como já vislumbrara em Nietzsche, que só haverá filosofia se for feroz, «ignorantes para a ciência, extenuados para o conforto; que se quilhe o mundo que temos. É este o caminho. Em frente, vamos!» («Democracia»). Ainda que seja para acelerar a decadência. E, como desejava Nietzsche, se «um povo — como um homem, aliás — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23), então Rimbaud — e todos quantos o ressuscitam, como João Moita agora —, valeu, na moeda mais valiosa que possamos imaginar, cada ano em que foi poeta, o poeta.

Poemas Estivais - Parte 1

Fome na cidade

Ando subindo e descendo com fome
as ruas do bairro e as que dão nos bairros vizinhos 
O meu corpo não me revela o
segredo deste apetite
que me movimenta nesta noite
onde aqui um avião além
rasga à uma da manhã
sonicamente os céus de Lisboa
Tenho uns chinelos azuis
tipo havaiana
o que também
não acrescenta nada
ao mistério desta fome
nem desta pele
que se articula em boca
e ocorre-me a ideia dum
fogo interno
e do terreno de pasto
e a parcela de pinhais ardidos
que fazer com a cinza
talvez em tempos
houvesse um vulcão aqui
um vulcão que explodiu
matando gente
com outra fome
que esta que nem à luz
duma erupção se revela  

Lisboa, Julho 2025

*

Fissura no colchão

Temos esta manhã
o corpo atado com um laço
tenho de aprender
mais uma vez
que uma vez desatado
não é sempre o amor
o que fica do acto
para além do cansaço
apenas dois corpos
cada um em sua margem
e entre eles naves

*


Sede à beira-rio

Uma doença gera outra
o vento bate na água verde do canal
os barqueiros encalham
nas plantas invasoras
que escapam ao controlo camarário 

Os mortos geram outros mortos
a terra que ladeia o canal
está empapada de água
Nestes dias as margens
têm menos sede de corpos
Mas assim molhados e moles
São de deglutição fácil após a chuva
pensa a mente que crê
organizar tudo

 *


Um prosaico poema sem tema

Acorda-se na cabeça
por fora os cabelos
desregrados
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias 

O fluxo matinal das águas esvai-se
estival nos esgotos os corpos
deitam fora o que o sonho cuspiu 

O querer dormir-se mas o que vale 

o querer a esta altura da vida
em que só há sons de canos
e passos no andar de cima

Nem se sabe se são de gente
ou se o mundo na noite se mudou
e são os gatos que se erguem
eretos nas patas traseiras
a arder de ideias 

O homem que grita na rua de Crimeia

Ao longe vejo ainda,
numa ilusão que me atravessa,
talvez gerada pelo corpo,
afastar-se a aura invisível
do homem que grita para além da ponte
como se o mundo num gesto violento e louco
lhe abrisse a boca para lhe pôr lá dentro uma palavra

Mais do Mesmo - Haikus

 

Tua

 

A pele do futuro

coberta de cinza –

Agosto em Portugal.

 

Quando beberei

deste sol

que agora me queima?

 

À beira do rio

conspurcar outro corpo

com a minha vontade.

 

No ar o cheiro

dos tomates podres

que ninguém colheu.

 

Enquanto o sol dá

os últimos retoques

um pardal à sombra.

 

As paredes caiem

mas as uvas

amadurecem.

 

Encostado à parede da estação

trabalha à sombra

o cara de sapo.

 

Depois da peregrinação

às três capelinhas

sento-me e descanso.

 

Do cimo da fraga

vejo tudo

o que tenho que ver.

 

Do alto da fraga

a gente tem

um tamanho mais real.

 

Sentado na fraga

escrevo um poema

e toco harmónica.

 

No papel seco

marca de batom

de beiça de cu.

 

Dos antigos amores

apenas permanecem

as memórias e o granito.

 

Cidões

 

É mais fresca

a sombra

do velho castanheiro.

 

Torre de Dona Chama

 

Quais os bandidos

preferem os figos

fumados?

 

Que silêncios

afugentam

as aves?

 

Pousa no telhado

da casa abandonada

um bando de pombas

 

Põe-se o sol

aos poucos um inferno

amanhece nos montes.

 

Com a barriga cheia

de amoras maduras

custa menos partir.

 

Agosto 2025

 

João Bosco da Silva

 

 

Livros a mais

Thomas Williams

Não há livros a mais, assim como não há amizade a mais ou beleza a mais. Thomas Williams, escritor norte-americano, ajuda-nos a dar sentido ao que muitos consideram a loucura da desmesura livresca: uma boa ou má húbris, a hipertrofia de uma biblioteca composta por parcelas cada vez mais vastas de porler (neologismo que creio ter forjado há algum tempo para um artigo da Enfermaria 6). A «antibiblioteca», como lhe chama Nassim Taleb, é mais importante do que a própria biblioteca. Mudar de paradigma axiológico acerca do valor do que ainda não foi lido talvez implique começar por conjurar linguisticamente o que parece supérfluo ou inútil — como fizeram os japoneses com o termo tsundoku.

Vejamos o que Williams tem para nos dizer na entrevista abaixo, traduzido por Victor Gonçalves do jornal Le Monde (publicada a 22 de agosto de 2025).

«Quando eu tinha 22 anos e morava em Lille, pedi um dia à minha mãe que me enviasse a edição em seis volumes da gigantesca obra Em Busca do Tempo Perdido. Todas as tardes ou noites chuvosas eram então dedicadas ao projeto de terminar aqueles milhares de páginas. Para minha grande tristeza, essa empreitada permanece inacabada — na verdade, ainda não consegui ir além de A l’ombre des jeunes filles en fleurs. Mas o simples facto de ler Proust transformou-me e deu-me confiança em mim mesmo: tornei-me alguém que lê Proust, ou seja, um homem novo. Aliás, continuo a considerar-me alguém que, um belo dia, terá lido Proust, ou mesmo alguém que relerá Proust (ficamos com isso para o próximo verão, ou talvez para o seguinte!). Os bibliófilos experientes reconhecer-se-ão facilmente nestas linhas.

Tal como vestir-se ou viajar, ler é uma atividade que, em última análise, pode estar ao serviço de uma ambição. Trata-se de nos reinventarmos, de nos imaginarmos mais fortes, mais autênticos, capazes de se nos elevar acima das circunstâncias e de ganhar um novo impulso para enfrentar o mundo. Assim, surge uma outra versão de nós mesmos: parecida connosco, mas um pouco mais sofisticada, mais interessante, mais próxima daquilo que gostaríamos de ser... E então esforçamo-nos para moldar a vida real a esse ideal. É assim que começamos a assemelhar-nos com o que o poder indomável da imaginação nos permitiu vislumbrar.

Este verão, parece que, sem dar por isso, adquiri algumas dezenas de livros novos. Uma biografia de James Baldwin com 600 páginas, outra de William F. Buckley Jr. com quase 1000 páginas, poesia com Henri Cole e Ishion Hutchinson, ficção com Joyce Carol Oates, história da arte com livros sobre Max Beckmann ou Hieronymus Bosch, a coleção de relatos de viagem de um amigo que se aventurou da Turquia ao México... e muitos outros, demasiados para citar.

Comprei alguns e outros foram-me enviados para recensear na revista The Atlantic. Todos, sem exceção, despertaram em mim um desejo irreprimível de leitura. Mas esse desejo choca com a realidade matemática do meu quotidiano: é simples, não tenho tempo suficiente para ler todos esses livros. Não agora, pelo menos. É a desculpa a que me agarro à medida que as minhas paredes se cobrem de estantes adicionais e as minhas pilhas de livros continuam a crescer. Quando era mais jovem, sentia-me culpado por não conseguir ler tanto quanto gostaria. Mas, com o passar dos anos, passei a ver uma certa beleza, e até mesmo uma forma de nobreza, em acumular à minha volta mais escritos — mais pensamentos — do que se pode consumir numa vida inteira.

Tarefa hercúlea

O criador de moda Karl Lagerfeld (1933-2019) frequentava a minha livraria parisiense favorita, a Galignani, na rue de Rivoli, e a sua casa, nas proximidades, abrigava uma biblioteca absolutamente lendária, com 250 000 títulos no momento da sua morte, em 2019. O escritor italiano Umberto Eco tinha «apenas» 30 000 a 50 000 livros, mas, segundo os seus cálculos, esse número representava ainda assim um volume de leitura impossível de alcançar numa só vida. Ler um livro por dia durante setenta anos seguidos perfaz apenas um total de 25 000 títulos. Existe um vídeo no YouTube que nos permite acompanhar o escritor pela sua biblioteca labiríntica — um passeio tão exaustivo quanto fascinante.

Há quinze anos, publiquei Losing My Cool [Une soudaine liberté, traduzido do inglês (EUA) por Colin Reingewirtz, Grasset, 2019], que narra em parte a minha infância num subúrbio residencial de Nova Jérsia, onde o meu pai formara uma biblioteca com pelo menos 15 000 títulos. Os livros empilhavam-se nas paredes, em todas as superfícies, em todos os cantos disponíveis, e até na casa de banho, na cozinha, na garagem, na lavandaria e no sótão. É possível ler 15 000 livros numa vida — e o meu pai tenta (ainda e sempre, o que me encanta) corajosamente alcançar esse objetivo —, mas a tarefa é hercúlea.

«É irracional pensar que é preciso ler todos os livros que se compram, assim como é irracional criticar aqueles que compram mais livros do que podem ler», disse Umberto Eco. Na vida, há coisas das quais é preciso ter sempre uma reserva abundante, mesmo que, no fim, só se use uma parte.»

Ao longo das décadas, eu próprio acumulei alguns milhares de livros; eles têm valor suficiente para mim para que eu me esforce ao máximo para os enviar para o outro lado do oceano quando tenho de me mudar – mesmo aqueles que não li, mas cuja presença me tranquiliza sempre que o olhar se detém na sua lombada familiar. Acabei por compreender que não são tanto um fardo, mas sim uma forma de riqueza, no sentido literal da palavra.

Em The Black Swan [Le Cygne noir. La puissance de l’imprévisible, traduzido do inglês (EUA) por Christine Rimoldy, Les Belles Lettres, 2021], Nassim Nicholas Taleb vai mais longe, afirmando que os livros que já lemos têm menos valor do que os ainda não abertos: «[…] À medida que envelhecemos, acumulamos mais conhecimento e obras, e o número crescente de livros não lidos que povoam as prateleiras da nossa biblioteca fita-nos de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, mais aumentam as filas de livros não lidos. Chamemos “antibiblioteca” a esse conjunto de livros não lidos.»

Milagre temporal

A palavra «antibiblioteca» soa um pouco estranha, mas talvez haja uma opção melhor na língua japonesa com tsundoku, ou seja, «uma pilha de livros comprados, mas ainda não lidos». O fenómeno tem uma dimensão bastante positiva, sobretudo se concordarmos com o que explica um artigo memorável do The New York Times, assinado por Kevin Mims, de 2018: «A biblioteca de uma pessoa é muitas vezes uma representação simbólica da sua mente. Uma pessoa que deixou de aumentar a sua biblioteca pessoal talvez tenha chegado a um ponto em que pensa que sabe tudo o que precisa saber e que nada do que não sabe a pode prejudicar. Já não tem o desejo de crescer intelectualmente. A pessoa cuja biblioteca está sempre a crescer compreende a importância de manter uma mente curiosa, aberta a novas vozes e ideias.»

É isso que me parece tão crucial — até transcendente — na aquisição quase perpétua de livros em formato físico, erigida como um modo de vida. Mesmo e talvez especialmente na era dos livros eletrónicos e dos recursos digitais ilimitados. E nunca qualquer apelo à frugalidade ou ao pragmatismo me convencerá de que não vale a pena.

Os livros não são apenas uma forma de informação ou comunicação entre outras, num mundo onde estas duas grandes fontes de distração abundam. São antes uma tecnologia extraordinária, capaz de realizar uma espécie de milagre temporal. O próprio tempo contrai-se entre o autor e o leitor, e anos de reflexão conseguem ser articulados, afinados e transmitidos num formato que pode ser absorvido em apenas algumas horas.

O meu terceiro livro, Summer of Our Discontent, acaba de ser publicado em inglês, comecei a escrevê-lo na primavera de 2021, mas só terminei as revisões no outono de 2024, revendo minuciosamente ideias e frases já lidas centenas de vezes, na esperança de alcançar a expressão mais pura. No entanto, em não mais de oito horas qualquer pessoa o pode ler. Escrever e ler são atividades fundamentalmente diferentes deste ponto de vista. Por isso, parece-me útil considerar os livros que nos rodeiam — e, em particular, todos os tesouros que ainda esperam ser descobertos — não em função do espaço que ocupam nas nossas estantes, mas sim pela imensa extensão de tempo que nos permitem explorar.

Tudo o que a mente humana pode produzir de melhor e mais completo num século pode caber num metro de livros. Para mim, é mesmo a oportunidade [affaire] perfeita.»

Platão e a expulsão dos poetas

Tradução, por Victor Gonçalves, do artigo de Frédéric Manzini, «Platon, chasseur de poètes?» publicado a 2 de julho de 2025 na revista Philosophie magazine.

Qual é o lugar dos artistas na sociedade? São essenciais ou marginais? Reler Platão sobre este tema é desconcertante: extremista, o filósofo quer excluir os poetas da sua Cidade ideal. Faz disso mesmo a sua prioridade. Medida digna dos regimes mais totalitários ou projeto político destinado a preservar a juventude destes «influenciadores» antes do tempo?

Quando se pergunta aos candidatos à eleição presidencial qual seria a primeira medida que tomariam se fossem eleitos, é raro que a resposta tenha que ver com poetas. No entanto, é isso que Platão faz na República, antes mesmo de esboçar os princípios fundadores da sua Cidade ideal, ou seja, do vasto projeto de reorganização política que empreende. Mas por que atacar poetas inofensivos em vez de criminosos ou ladrões? De que podem eles ser culpados, senão de escrever maus versos? E haverá realmente urgência em começar por querer expulsá-los, quando há toda uma organização política a repensar e uma sociedade a construir?

Que vão cantar para outro lado!
Para compreender melhor o que levou Platão
a adotar uma posição tão severa no seu diálogo A República, é indispensável situar-se no contexto geral desta obra. A questão do lugar dos poetas parece suficientemente importante para ser abordada de forma recorrente: é mencionada pela primeira vez no livro II, depois mais longamente no livro III e, finalmente, no último livro, o livro X. Isso mostra a importância que ela tem para o filósofo!

Após um livro I dedicado a trocas entre Sócrates e alguns interlocutores sobre certas ideias recebidas acerca da natureza da justiça e da vida individual bem-sucedida, Platão começa, de facto, a atacar os poetas no livro II, antes mesmo de a discussão sobre a justiça ser transposta para uma escala maior, ou seja, para o nível político, como será na maior parte do que se segue. O seu interlocutor é então um certo Adimanto... de quem não se sabe muito, exceto que é provavelmente um dos irmãos de Platão! A situação é, portanto, no mínimo perturbadora, uma vez que o filósofo relata um diálogo entre o seu mestre e o seu próprio irmão, como se ele próprio estivesse dividido em dois. Seja como for, Sócrates explica a Adimanto que os poetas são prejudiciais quando dão uma imagem deplorável e enganosa dos deuses e fazem crer que é possível ser feliz sendo injusto e comportando-se mal: por exemplo, «que os deuses guerreiam entre si, que armam ciladas, que lutam — nada disso é verdade», lamenta ele. «Contar que Hera foi acorrentada pelo seu filho, que Hefesto foi atirado num precipício pelo seu pai porque quis proteger a sua mãe agredida, e todas essas lutas entre deuses que Homero colocou nos seus poemas, isso não deve ser admitido na cidade, tenham esses poemas sido compostos ou não com uma intenção alegórica» (República, II, 378b-d).

Um desafio para a política educativa
Não é o facto de a poesia recorrer à ficção
que Platão condena, mas o tipo de histórias que ela conta. A diferença entre as que são enunciadas de forma poética ou metafórica — o que ele chama de «intenção alegórica» — e os discursos que procuram expressamente dizer a verdade (conforme à realidade) parece secundária. É bom recordar que o próprio Platão recorre de bom grado aos mitos. Na juventude, dizem, compôs ditirambos, versos líricos, tragédias e, mesmo que o seu encontro com Sócrates tenha posto fim à vocação poética, a qualidade literária da sua escrita é absolutamente notável, cheia de estilo e rica em imagens, a ponto de ser erigida em modelo por todos os professores de língua grega ainda hoje. Platão é o mais poético dos filósofos.

Mas antes de ser poeta, ele é filósofo e legislador, e sua luta não se situa no campo estético, mas inteiramente no campo educativo e político. A desconfiança que manifesta em relação aos poetas obedece, em primeiro lugar, a um desejo de proteger as crianças da pressão que eles exercem sobre elas, conscientemente ou não, quando divulgam preconceitos — por exemplo, sobre os deuses. Ao refletir sobre a forma como se deve educar a juventude, Platão teme a influência nefasta que os poetas podem exercer sobre as almas mais vulneráveis ou influenciáveis. Ao ponto de instituir uma forma de censura? Sim, porque a educação é um assunto demasiado sério para ser confiado, sem controlo, aos artistas, nem eles próprios medem as consequências políticas da sua arte! É preciso compreender que, na Atenas de Platão, era através da convivência com os poetas que os mais jovens se formavam. A «poesia» em questão é, em primeiro lugar, muito mais do que aquilo a que hoje chamamos, em sentido estrito, «poesia», como confirmam os exemplos dos poetas que ele menciona na República: Homero, Hesíodo, Ésquilo, Píndaro... É todo o teatro e toda a literatura que o termo abrange. Todos eles detêm uma espécie de soft power que pode parecer inofensivo, mas que, aos olhos do filósofo, é formidável. «Começamos por contar histórias às crianças», escreve ele, acrescentando que «em qualquer tarefa, o mais importante é o começo».

O poder subversivo da arte
Os bons poetas são bons educadores?
Nada é menos certo, pois a sua preocupação é agradar e emocionar, e não instruir ou tornar melhor. Será que eles se preocupam minimamente com o bem? Terão pensado no significado do que representam? Quando os mitos, lendas e outros relatos das proezas de heróis e deuses os mostram como indivíduos impulsivos, egoístas, vingativos – ou seja, feios e viciosos –, os poetas erigem-nos em modelos de maus exemplos. O episódio da fúria de Aquiles, na Ilíada, valoriza assim a raiva e pode levar a crer que se trata de um sentimento legítimo e nobre: aos olhos de Platão, Homero não é, portanto, recomendável. O talento dos poetas não está em causa, pelo contrário. Quanto mais talentosos, mais perigosos são e mais poderoso será o efeito que podem ter sobre as almas influenciáveis que se identificam facilmente com as personagens de ficção que lhes são apresentadas. O prazer que proporcionam é ainda mais indigno e pernicioso, pois habitua os jovens a ceder às paixões, não os preparando para serem adultos e cidadãos virtuosos.

Platão teme, de facto, que o imaginário criado pelos poetas veicule valores contra os quais será difícil lutar, como uma doutrinação que talvez seja impossível desfazer quando esses valores entrem em conflito com aqueles filósofos no poder considerem bons. Quem, hoje, criticaria o governo por fazer o que está ao seu alcance para impedir que as crianças sejam expostas à violência, à pornografia, a discursos ou ações sexistas e racistas? Noutras palavras, por legislar para bloquear o acesso a determinados programas de televisão, sites ou redes sociais? É da mesma forma, como defensor das crianças em perigo, que Platão intervém: expulsar um certo número de poetas da Cidade parece-lhe ser o meio de erradicar o mal — ou mesmo a simples possibilidade do mal — pela raiz, antes que ele tenha a oportunidade de se instalar na mente dos futuros cidadãos.

Compreende-se melhor que o filósofo considere este assunto prioritário e que opte por abordá-lo no momento preciso em que se prepara para lançar as bases do seu novo Estado. Como dar bases sólidas a uma sociedade se o espírito corrupto dos seus membros não tem gosto pelo belo, pelo verdadeiro, pelo bem? Muito crítico em relação ao funcionamento de Atenas tal como a conhece, Platão considera que ela precisa de medidas fortes. Repensa todo o currículo educativo e reforma toda a política cultural, ordenando-a pela lei da razão e colocando, assim, a «educação artística e cultural», como agora se diria, sob uma vigilância muito estreita. Vinte séculos mais tarde, Rousseau será animado por uma preocupação semelhante em Émile, o seu tratado de pedagogia que redefine a educação a partir do zero: aí qualificará a leitura como «flagelo», fará esperar o aluno até os doze anos antes de lhe dar livros e desaconselhará até mesmo uma fábula como «O Corvo e a Raposa», de La Fontaine, porque a moral que ela contém é profundamente cínica, valoriza o sucesso da duplicidade e apresenta como modelo um mentiroso. Tudo isso não é adequado para crianças, mas apenas — e eventualmente — para mentes mais maduras, mais experientes e suficientemente críticas para compreender os diferentes níveis de significado e distinguir o que é importante do que não é. Deveria ser proibido para menores de dezasseis anos!

Poetas censurados, poetas autorizados
Cabe ao legislador
dotar-se dos meios para preservar os futuros cidadãos de qualquer forma de corrupção moral e afastá-los de maus educadores – atualmente, falaríamos de influenciadores tóxicos. Uma vez que não é possível afastar as crianças da cidade, a solução menos má consiste, portanto, em mandar embora os poetas. É claro que se pode argumentar que não era necessário chegar ao ponto de exilar os poetas e que bastaria regulamentar a sua prática por meio de algumas leis bem direcionadas. Por que levar a radicalidade ao ponto de exigir a sua partida? Será porque os respeita demais para lhes pedir que se submetam e obedeçam ao Estado? Não exatamente, e é a este ponto que o livro III volta. O diálogo, novamente entre Sócrates e Adimanto, evoca a formação daqueles que são chamados «guardas», que têm a vocação de se tornar a futura elite intelectual, física e moral dos cidadãos e, portanto, de desempenhar um papel crucial na nova Cidade. O que aconteceria se a poesia conseguisse seduzi-los, ou seja, desviá-los do seu caminho correto, se os colocasse num estado de transe, fora de si mesmos, onde já não se controlariam? A sociedade como um todo estaria em perigo. Os guardiões devem ser apenas guardiões, inteiramente dedicados a essa função, explica Platão, da mesma forma que os sapateiros devem ser sapateiros; os camponeses, autênticos camponeses e os soldados, verdadeiros soldados: cada um cumprindo precisamente o seu dever ao serviço da comunidade. Com o seu domínio da imitação e do jogo, os poetas são certamente artistas transformistas com um talento extraordinário, mas não têm um lugar fixo na Cidade, e o filósofo conclui que é imperativo que exerçam a sua arte noutro lugar. Trata-se de uma forma de censura? Os poetas excluídos são, como diríamos hoje, «cancelados»? Cuidado com o anacronismo, pois Platão insiste, ao mesmo tempo, que eles devem ser venerados e glorificados: é apenas no plano político que os condena, sem que isso diminua em nada a estima que tem por eles!

No entanto, nem todos os poetas serão expulsos, mas apenas uma parte. Serão bem-vindos e autorizados a permanecer aqueles que, embora «menos agradáveis», produzirem obras consideradas «úteis», ou seja, aqueles que imitam o discurso dos homens virtuosos. O leitor de A República é então tomado por uma dúvida: não haverá o risco de se chegar a uma arte moralizante e ingénua, onde os «bons» triunfam sempre no final, como nas histórias simples, previsíveis e padronizadas que hoje se servem às crianças? A um resultado servil como era a arte soviética, supostamente realista e conforme aos princípios da ideologia estalinista? A menos que Platão esteja aqui a evocar a sua própria prática, na medida em que os textos que escreve, sem procurar a poesia por si mesma, são reproduções das palavras de Sócrates redigidas com um objetivo educativo e edificante...

A ambiguidade de Sócrates e o antídoto para os happy few
O princípio da «rejeição absoluta da parte da poesia que é imitativa»
é reiterado com veemência no início do livro X, o último da República, no qual Sócrates critica repetidamente Homero, embora confesse que sente por ele uma afeição tão profunda e um respeito tão grande que lhe custa expressar-se livremente. Mas os factos estão aí: na prática, Homero foi de alguma ajuda para os legisladores? Ele «foi realmente capaz de formar homens e torná-los melhores»? É preciso reconhecer que, apesar da sua aparência maravilhosa, a sua poesia não é virtuosa e que «o mal que ela pode causar às pessoas de valor – e apenas um pequeno número é exceção – [...] é, por assim dizer, o mais terrível». Esta fórmula é intrigante: é possível resistir à influência negativa da poesia? Platão evoca, de facto, a existência de um certo «antídoto» (595b) que não é outra coisa senão «o conhecimento do que as coisas realmente são». Por outras palavras, e no contexto platónico, é preciso já ser filósofo e saber distinguir bem a realidade da ficção para poder apreciar a poesia como se deve e sem risco de danos!

Com tal elitismo, a conceção de Platão está nos antípodas dos nossos ideais democráticos atuais, que promovem a acessibilidade da arte para todos, incluindo o público jovem, com o objetivo de despertar a sua sensibilidade. O mesmo se aplica à sua decisão de banir os poetas, o que é desconcertante do ponto de vista de uma sociedade como a nossa, que promove a abertura, a tolerância e a criatividade artística. Sacrificando a arte à política e à moral, Platão prefere tratar todos os cidadãos como crianças imaturas e protegê-los contra qualquer forma de subversão que possa prejudicar o desenvolvimento da sua racionalidade, que corresponde à sua parte nobre, destinada a comandar a parte sensível. É legítimo questionar, no entanto, se o remédio que propõe não é pior do que o mal e se a exclusão da Cidade não é também o reconhecimento de um fracasso em fazer coexistir, ou mesmo dialogar, diferentes faculdades dentro da alma.

Os poetas e os artistas não dão também a pensar, despertam o gosto pelo belo, não são guias no caminho do bem, como Homero foi para Sócrates? E quem aceitaria viver numa sociedade que só admitisse como poetas funcionários públicos ao serviço de um discurso moralista e de sentido único? Ao querer monopolizar o pensamento e governar tudo na sua Cidade, Platão corre o risco de ficar sozinho.