O ESPECTADOR EMANCIPADO

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No passado dia 27 de Março comemorou-se o dia mundial do teatro, e eu tive a honra de ser convidado pelo amigo de longa data Miguel Graça, dramaturgo no Teatro Experimental de Cascais, para assistir à estreia da sua peça, ICTUS, no Estoril.

Este texto serve dois propósitos principais: §1) reflectir sobre a ontologia do teatro e o papel/lugar do espectador. §2) Recensear a peça ICTUS. Como introdução discutirei a relevância do dia mundial do teatro. Será pois um texto que pode interessar por partes aos leitores, façam o favor de entrarem quando quiserem e onde quiserem, saiam também quando muito bem entenderem.

§0

Os “dias mundiais” parecem resultar de exageros quase caricaturais, discriminação positiva profundamente culturalista e antropocêntrica (mesmo quando se trata de louvar a natureza, já que é uma natureza humanizada). Mas bem, é assim, e creio não ter forças para alterar o curso desta história, um milímetro que seja. Fiquemos, pois, com o que têm de positivo, no caso do teatro podem ser impulsos para se encenarem mais peças do que é habitual, estrear nesse dia é profundamente simbólico, e torna-se mais fácil envolver a comunicação social. Ainda que as pessoas continuem a ser felizes sem teatro. Uma das prerrogativas das sociedades capitalistas avançadas é terem alquimisado a felicidade: tudo pode dar prazer, massificaram-se os “pratos de lentilhas”. Contudo, tenho quase a certeza que sem teatro as sociedades ficam menos auto-reflexivas, mais pobres na capacidade e vontade de pensarem e fazerem promessas de futuro.

O horizonte de afectos, de inteligibilidade e de acção política que este ano rodearam as comemorações do dia a nível mundial foi traçado pelo dramaturgo sul-africano Brett Bailey. No texto que escreveu como carta de intenções para esta arte encontrar o tom adequado ao espírito do tempo, refere que “Onde quer que exista, manifesta-se na sociedade humana o seu espírito irrepreensível de representação.” Por isso, a responsabilidade de quem faz parte do mundo do teatro é de uma exigência assustadora: figurar nos palcos esses impulsos primordiais do humano. Bailey compõe depois um pequeno manifesto contra as injustiças sociais e a degradação ambiental, dizendo que as artes, do palco ou outras, devem fazer parte da agenda social, influenciar as decisões políticas para se alterar o statu quo ante. Tudo correcto, e creio que sincero. Já não é preciso pertencer às esquerdas libertárias/teleológicas ou sair de um mosteiro para sentir um profundo nojo perante a porcaria de sistemas político-económicos que impõe a pobreza mais extrema a uma parte significativa das suas comunidades. Já não é preciso ser um ecologista fundamentalista para combater aquilo e aqueles que conspurcam, destroem os locais mais naturalmente belos do planeta; para defender com unhas e dentes a sustentabilidade ambiental como uma das primeiras prioridades das agendas política e económica; para lutar a favor de um estatuto jurídico para os animais não humanos, distinguindo-os legalmente de meros “objectos”. Percebe-se mal que ainda não lhes tenhamos atribuído garantias legais que os dignifiquem e protejam da voragem aniquiladora dos humanos.

Como referi, vou dividir o que resta deste artigo em dois §, no primeiro falarei da questão do espectador, sobretudo a partir de Nietzsche, textos de juventude, e Jacques Rancière (Le Spectateur émancipé / O Espectador Emancipado). No segundo recensearei ICTUS, encenado por Carlos Avilez, no Teatro Experimental de Cascais (até dia 27 de Abril).

§1

Nietzsche, seguindo a tradição da Filologia Clássica alemã, destaca o calendário primaveril dos jogos teatrais gregos [1],como se ao renascimento vital da natureza a Grécia respondesse com uma festa estética semi-religiosa: “O grego escapava à vida pública, tão rotineira e vulgar, com tanta distracção, à vida do mercado, da rua, do tribunal, para entrar na solenidade da acção teatral, onde tudo se dispunha ao repouso, convidava ao recolhimento: ao contrário do alemão de outros tempos, que tinha necessidade de distracção quando quebrava o círculo da sua vida interior e encontrava um divertimento verdadeiramente alegre no diálogo do tribunal e, por esta razão, determinou a forma e a atmosfera do seu drama. Pelo contrário, a alma do ateniense que vinha de ver a tragédia nas grandes Dionísias, tinha ainda em si alguma coisa do elemento onde nasceu a tragédia. É o instinto primaveril que se exprime vitoriosamente, uma violência, um delírio que confunde as impressões; é o que todos os povos cândidos e a natureza inteira conhecem com a chegada da Primavera.” (Das griechische Musikdrama, KSA, vol. 1, p. 520-21)

Isto permitiu-lhe imaginar o teatro grego num contexto cultural diametralmente oposto ao da época Moderna. Ali, uma atmosfera de união mística e exultação festiva, aqui um divertimento, apenas um pouco mais sofisticado, sobretudo devido a meros ritos protocolares, do que as manifestações folclóricas populares (que Rousseau preferia ao teatro). Chamando uma burguesia entediada pela vidinha ou cansada da estultice comercial.[2] À semelhança do §7 de A Arte e a Revolução (“A criação do poeta dramático só chega a ser obra de arte quando ganha a vida real frente a um público, e a obra dramática só vive quando é apresentada num teatro.” p. 102), Nietzsche insiste nas diferenças entre o espectador grego e o da sua época: aquele, porque transportava consigo reminiscências dionisíacas, seria mais um dos elementos desse organismo global que era a tragédia. Por isso, num campo mais restrito, nenhum artifício cultural separava verdadeiramente a skénè do théatron, os actores dos espectadores. Pelo contrário, o público oitocentista ia ao teatro como quem necessita de um pequeno bálsamo (euforizante ou ataráxico) para suportar a dura realidade, ou ao serviço do pequeno jogo social:“Na bela época do drama ático, subsistia ainda na alma do espectador qualquer coisa desta vida dionisíaca na natureza [dionysischen Naturleben]. Não era um público de sócios preguiçosos, cansados, que arrastam todas as noites no teatro os seus sentidos anódinos, lassos, para que os mergulhem na emoção. Contrariamente a este público, que é a camisola de forças do nosso teatro de hoje, o espectador ateniense tinha ainda sentidos frescos, matinais, prontos para a festa. A simplicidade ainda não era para ele demasiado simples. A sua erudição estética compunha-se das memórias de alegrias anteriormente experimentadas no teatro, a sua confiança no génio dramático do seu povo era ilimitada.” [3]

O objectivo nietzscheano é relativamente claro: mostrar que o drama primevo não era, ao contrário dos jogos circenses romanos, a válvula de segurança de uma sociedade desnaturalizada (e dessacralizada), usando a ficção para num processo catártico esvaziar os excessos pulsionais, na cena ou na arena. Nietzsche sabia isto que, mais de um século depois, Philippe Lacoue-Labarthe nos vem dizer: “É preciso apenas compreender que diferentemente de nós, Modernos, os Gregos são filhos da natureza, puros génios se se quiser: vivem de forma nativa na «potência do Elemento», sob o «fogo celeste»; e todo o seu virtuosismo heróico, a sua habilidade e a sua perícia, a sua arte (tekhnè), não foi suficiente para se erguerem, por pouco tempo que fosse, contra o pânico impetuoso da natureza, a selvajaria excêntrica do mundo dos mortos e o delírio sagrado que os seus deuses provocavam, os quais acabavam inevitavelmente por arrebatá-los."[4] 

Portanto, para Nietzsche a introdução do divertimento no teatro burguês e, antes isso, já com Eurípides/Sócrates, o incremento da racionalidade apolínea sobre o dionisíaco (fulguração selvagem de elementos vitais), levara à degradação desta arte representativa. Na juventude, anos de Basileia, acreditou ainda que a Obra de Arte Total wagneriana (Gesamtkunstwerk) faria renascer a tragédia, mas depois de se separar do criador de Tristan und Isolde preferiu colocar isso nas mãos de homens por vir, sobre-homens sem definição clara, irredutíveis espíritos livres desumanizados.

Para Jacques Rancière (Le spectateur émancipé / O Espectador Emancipado), o espectador, exaltado pela indústria cultural, é francamente desprezado pela crítica e pelos produtores estéticos, já que, ao contrário dos criativos, ele é passivo, ao contrário dos actores, ele permanece consumidor. [5] É neste campo problemático que Rancière gosta de pensar, abanando argumentos que lentamente tendem a petrificar-se numa cosmovisão conservadora. Ao mesmo tempo, também vive na aposta crítica que desmonta a velha ideia platónica, com seguidores hodiernos, do teatro, das imagens e da representação como cenas de ilusão. Contudo, muito antes de Rancière, a distinção entre o ver e o fazer influenciou a definição de perspectivas críticas e artísticas que procuraram esbater a velha relação de subordinação espectador/actor. Divergindo na forma mas aproximando-se no fundamento, o teatro épico de Bertolt Brecht e o da crueldade de Antonin Artaud quiseram abolir o que consideravam ser uma separação estéril. O primeiro, quase paradoxalmente, pela distanciação, o segundo pela fusão. Para evitar a cilada da identificação (com as personagens e situações), Brecht quis transformar o espectador num “investigador”, levando-o de outra forma para dentro do palco. Diferentemente, Artaud, de acordo com o seu incansável combate ao racionalismo, quis apagar a distância entre a sala e o palco. O espectador actual reconhece facilmente um certo teatro político que continua a existir na perspectiva brechtiana; quanto a Artaud, parte significativa da estética performativa, que ridiculariza o sentido para se alienar em transes extáticas, reescreve constantemente a mensagem sobre o sacrifício da reflexão pela comunhão mística. Rancière torce, mais do que varia, estas propostas e pergunta-se se não será justamente “a vontade de suprimir a distância que cria a distância”.“ser espectador não é a condição passiva que precisaríamos de transformar em actividade, mas a nossa condição normal.” Noutros termos, quase todas as teorias do espectáculo defendem a desigualdade de posições e de condições entre aquele que faz e aquele que olha, sobre a qual nem sequer as avant-gardes reflectiram verdadeiramente. Mas para Rancière o espectador “compõe o seu próprio poema com os elementos do poema que está em face dele.”  Tanto mais que um espectador nunca está totalmente inactivo, ele compara, liga, critica. Não há, pois, de um lado os que sabem e do outro os aculturados, os que reflectem e fazem e os que papam tudo sem saber como. Rancière quer-nos iguais perante a possibilidade de manipularmos o tangível e o intangível, cultivando a diversidade de perspectivas, impedindo sempre que alguma se constitua como “Autoridade”.

§2

 Fui, então, assistir à estreia de ICTUS. Um texto sobre a Autoridade, essa que esmaga tudo o que se atreva a criticar a Verdade que impõe. Claro que dela nascem revolucionários, mas sem a força bruta, primitiva do poder ditatorial. Este discurso está na moda e percebe-se por isso o receio de Miguel Graça em ser confundido com um autor engagé (todos parecem sê-lo agora, é imperioso fazer parte desse verdadeiro), querendo lançar mais um dispositivo panfletário para a fogueira da indignação (que hoje se quer geral, ai de quem não se indigna!). Mas se pensarmos um pouco percebemos que em ICTUS estamos perante uma metafísica da dominação e a capitulação de quem não consegue suportar a ausência de sentido, uma polarização que a presente política do protesto não pode aproveitar. Esta peça celebra as fúrias, Acaso e Violência, tudo declinado até à barbárie, um espaço colérico que Miguel Graça preferiu que fosse o de Jeová, em vez de Zeus, absolutamente poderoso na vontade de domínio e nas liturgias da Verdade e Destruição. Miguel é um autor trágico, conhece o carácter perigoso e inevitável da vida. Se há uma virtude na sua escrita, é que nunca a usa para produzir truísmos.

Como sabemos, as estreias teatrais são relativamente falsas, já que à estreia oficial antecede normalmente um conjunto de outras a fingir, para se afinarem pormenores, testarem intensidades emocionais, consolidarem representações, observar o funcionamento da peça como obra global... Ora, neste caso penso que foi extemporâneo estrear a 27 de Março. Bem sei que fazê-lo no dia mundial do teatro, pelas razões que apresentei supra, é uma vantagem que não se deve abandonar de ânimo leve. Mas a peça ainda não tinha chegado à fase de “organismo vivo”: algumas linhas soltas nas marcações, pedaços de texto insuficientemente interiorizado, diálogos ainda pouco entrelaçados... Tanto mais que a peça é densa, à polifonia, com a qual temos já um certo à-vontade, junta-se uma politemporalidade (vaivém entre passado e presente, mas sobretudo múltipla contaminação das temporalidades individuais, fragmentação de cada personagem por acção da interpretação das outras, biografias que nunca ganham consistência devido ao dissenso que forças exteriores impõem à sua linha de vida), aumentando o nível de complexidade, não apenas para os actores, encenador, dramaturgo (que na verdade nunca a abandonou aos artífices do palco), mas igualmente, bem entendido, para o público, que fica com a sensação de que falta à peça alguma maturidade, consistência, fluidez. A boa notícia é que tudo isto vai melhorar, ao longo do mês de Abril ela vai aperfeiçoar-se, as melhores representações estão por vir.

Já conhecia o texto, e na verdade prefiro outros de Miguel Graça. Além disso, tenho um juízo de valor prévio em relação às últimas produções, escrituras do Miguel: queria muito que experimentasse novos estilos, para saber até onde consegue ir, testar o seu poder libertário, não se alienar numa zona que ele pensa ser de conforto. Quando li ICTUS pela primeira vez disse-lhe que havia uma série de maneirismos que me desagradavam. Respondeu-me que era um texto para o palco, e tinha toda a razão, no palco ele funciona muito melhor. Mas precisa de actores a apanhá-lo na sua seiva mais pura, e tempo, muito tempo, para o encenar.

Por isso, a mãe/Ela (Teresa Côrte-Real), por exemplo, fetiche miguelista (sem termos de ir à psicanálise), entrou mal no enredo, não passou despercebido que, na forma como foi composta, forçava demasiado a presença na peça, é preciso quase uma cunha para a enfiar lá, e nunca fez parte de qualquer fio condutor importante. Pelo contrário, o General (Fernando Luís) é o centro desta máquina teatral, para onde e de onde confluem todas as forças estéticas que alimentam a peça. Não apenas por ser a pedra angular da composição, mas também porque Fernando Luís incarna magistralmente a personagem, vivendo exuberantemente na sua extrema brutalidade, construída sobre a ironia e a convicção cruel dos ditadores messiânicos, filhos de deuses que vêm impor mais um conjunto de verdades e sacrificar mais uns “cordeiros” (não se chamasse a peça ICTUS). Aqui estamos verdadeiramente dentro da nebulosa teatral, através do General, Miguel Graça deu vida a uma parcela de teatro. Bem dentro da tradição das grandes personagens trágicas, embora sem um fim mortífero exemplar a la grega [6], soube revelar através dela a ontologia do próprio teatro, porque ela induz, seduz, indica e depois impõe verdade, quando a representação corre bem, impõe verdade. Foi isso que Fernando Luís conseguiu fazer, era isso que o General exigia. Na minha condição de espectador, colei-me à peça por ele, não bastaria a sua presença, mas ele foi a minha porta de entrada na verdade da peça.

O Caçador (muito bom Tobias Monteiro) é a outra centralidade da peça, devido à própria economia narrativa. Por ele perpassa a ideia de estarmos a fugir do inevitável, já que mais tarde ou mais cedo seremos caçados. Num registo mais meta-narrativo, o Caçador é totalmente credível, a representação é excelente, o olhar que parece vir do Inferno está absolutamente ajustado a uma personagem incarnando a vontade de destruição, ou melhor, de supressão. O Caçador vive para caçar e sentir a máxima potência de vida na morte da presa. A actriz (Raquel Oliveira), espécie de mulher global: puta, mãe, amante, esposa, criminosa, vingadora, angélica... tem menos peso na peça do que devia, a multiplicação de egos não lhe fez bem, e está longe do eterno feminino trágico. O Autor (Pedro Caeiro, de quem sou amigo no facebook, repartindo-o com mais 1390 seres – como se pode ter tanta gente?) dá corpo à linha dramatúrgica de Miguel Graça em usar o teatro para pensar o teatro. Nada de inovador, não tinha de sê-lo, mas a meta-teatralidade exige hoje um rigor teórico ou uma capacidade de invenção bem diferente de quando surgiu. Noutros termos, como é uma espécie de maneirismo, muitas vezes considerado pedante, está-se quase impedido de repetir modelos pretéritos. O Autor, personagem dúbia, inicia-se fora da peça, depois entra nela e confunde-se com o papel normal de mais uma personagem. Perde a distância meta-teatral que no começo parecia ser a sua condição de existência. Além disso, apresenta outro dos temas importantes para Miguel Graça: o da angústia da escrita. Incapacidade criativa transmutada em dor intestina, minando a maioria dos que querem escrever contra os horizontes de expectativa da moda. Levando por vezes à rendição, compensada com mergulhos nos prazeres corriqueiros, disfarçados numa vitimização que assusta com certeza mais quem a fabrica do que quem finge tolerá-la. No papel de personagem, o Autor é crístico, o agon com a mãe é-o sobretudo com a vida, não quer viver, nunca devia ter nascido. E nisto Pedro Caeiro está muito bem, há um angelismo que casa perfeitamente com a imagem de resignação que quer fazer passar. Transporta a verdade de Sileno (nunca ter nascido, e já que se nasceu, morrer o mais depressa possível), sem barafustar, parece mais vítima de si mesmo do que do mundo. O pai/Ele não chega à dimensão que parecia poder vir a ter, suspeito que Miguel Graça, patriarcal, recusou explorar as potencialidades desta personagem, competentemente interpretada por Sérgio Silva.

No final, o público, preparadíssimo para ser generoso, levantou-se prontamente, sem aquele período de nojo, da tradicional hesitação protocolar que prepara a standing ovation. Nesta casa de teatro, por várias razões, entre elas a de estar ligada à Escola Profissional de Teatro de Cascais, há uma cumplicidade a priori entre espectadores e actores. Já não se trata de um encontro de experimentações, dois campos desconhecidos que se apresentam durante uma peça. Está também longe das teorias do actor vs espectador que apresentei no início, há ali uma espécie de amizade prévia, refazendo-se os parâmetros de convivência entre o palco e a sala, que aliás se misturam no final, à saída é quase inevitável que os heróis da festa passem pelo meio de quem há pouco os viu a partir da sala. O teatro transforma-se talvez num rito xamânico, surge outro tipo de “espectadores emancipados”, poucos vão lá, pelo menos foi assim na estreia, com a possibilidade de não gostar, acabamos ouvindo o aplauso espontâneo e generoso do gang teatral.


[1] “[...] o efeito todo-poderoso da Primavera manifesta-se bruscamente, exalta forças vitais num tal excesso que vemos aparecer estados extáticos [das ekstatische Zustände], visões, crenças no encantamento, e que seres em uníssono vão em manadas pelo campo. E é aqui que está o berço do drama. Já não é porque alguém se disfarça e procura iludir os outros, mas antes porque o homem sai de si mesmo e se crê transformado, possuído, que começa o drama. Neste estado em que estamos «fora de nós», neste estado de êxtase, um passo é suficiente: não entramos em nós mesmos, mas penetramos num outro ser, se bem que nos comportemos como se estivéssemos possuídos.” (Das griechische Musikdrama, Kritische Studienausgabe (KSA), vol. 1, p. 521).

[2] A mesma ideia, com pequenas alterações, está já em Die Kunst und die Revolution / A Arte e a Revolução de Richard Wagner: “Por intermédio da obra de arte trágica, o Grego exprimia a sua interioridade, dava voz ao oráculo da Pítia que transportava no mais íntimo de si mesmo; ao mesmo tempo deus e sacerdote, homem divino, magnífico; ele exprimindo-se no todo, o todo exprimindo-se nele; como uma fibra de entre os milhares que fazem uma planta rebentar da terra, viver, elevar nos ares o seu recorte grácil e gerar aquela flor que lança em redor o delicioso perfume da eternidade.” Umas páginas depois: “Há aliás um grande número de artistas conceituados que estão longe de pôr em causa o facto de não terem outra ambição que não seja a de satisfazer esses espectadores limitados. E ajuízam bem, porque se o príncipe vai ao teatro depois de um trabalhoso banquete, o banqueiro após laboriosas especulações financeiras e o operário na sequência de um cansativo dia de trabalho, o que procuram há-de ser distracção, divertimento e convívio, em vez de novas preocupações e novas excitações.” (Citamos a tradução portuguesa, p. 43 e 63, respectivamente).

[3] Das griechische Musikdrama, KSA, vol. 1, p. 522. Uma das teses principais de Heidegger em Nietzsche I é a de que Nietzsche sempre viu a arte exclusivamente do ponto de vista do criador, quase nunca do espectador. Trata-se de uma boa interpretação, no entanto o jovem Nietzsche ainda sonhava com uma arte onde espectador e artista fossem dois elementos igualmente decisivos na figuração da obra. Naturalmente, a eles haveria que acrescentar, naquela época, os “sofrimentos de Dioniso” (o Stimmung que tudo informaria).

[4]Metaphrasis seguido de O Teatro de Hölderlin, Lisboa: Projecto Teatral, 1999, p. 21.

[5]Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, Tübingen 1949, usando o exemplo da música, propõe outra razão essencial para a diferenciação: o aprofundamento da distância entre criação e recepção estéticas deveu-se à democratização no acesso da burguesia à música, o gosto do público deixou de ser capaz de acompanhar a evolução da criação musical: “Desde os meados do séc. xix, a grande música recusou ser instrumentalizada. Pelo rigor da sua evolução, a música entrou em contradição com as necessidades vulgares e auto-suficientes do público burguês. Ao pequeno número de especialistas substituíam-se as massas dos que podem pagar um lugar e querem provar aos outros o seu elevado nível cultural. Gosto do público e qualidade das obras começaram então a divergir.”

 [6] O General não morre, apesar de levar um tiro fatal, porque não pode morrer. Ele é pulsional, para lá bem e mal, vontade de viver incontrolável, vontade de viver e de dominar. É uma força bruta. As outras personagens querem morrer, também porque é impossível viveram para sempre, o suicídio não é autêntico, ou melhor, é uma tentativa falhada de dizerem que escolheram morrer, quando a morte já o tinha feito antes.