Antígona encontra Os Maias? As Pessoas do Drama de H. G. Cancela

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Há duas afirmações particularmente pertinentes para pensar sobre As Pessoas do Drama de H. G. Cancela. A primeira envolve dizer que o autor é sem dúvida um dos romancistas mais desafiantes a escrever literatura em português hoje, a segunda é que este romance é, em proporções diferentes, um estudo sobre a arte, o trauma e a ambivalência, e que o resultado destas características conjugadas não é tanto do âmbito da expiação quanto da violência que é exercida sobre as personagens e que passa para o leitor, em parte porque não há exactamente uma perspectiva ética que venha a emergir como produto da leitura e resolva as personagens de um ponto de vista moral (embora algumas sejam mais fáceis de ler do que outras). Nesse sentido, este romance é um pouco como as tragédias gregas a que o título parece aludir: uma exploração dos limites do humano.

Há, a meu ver, dois clássicos com que as As Pessoas do Drama dialoga sem que se apresente como releitura de nenhum. De alguma forma, é difícil ler o romance de H. G. Cancela sem pensar no outro romance sobre incesto da literatura portuguesa, Os Maias de Eça de Queirós. Por outro lado, há uma encenação da Antígona que se repete durante um longo período de tempo numa das partes centrais do romance e o elo com a tragédia de Sófocles é relevante (mas talvez não exactamente vital) para ler o romance. Se falamos de ecos da tradição, há ainda o facto de uma parte da acção se passar em Roma, e isto abre espaço para uma das reflexões mais interessantes que o romance propõe, acerca da natureza da ideia de herança cultural. A noção de herança cultural corre em paralelo com outra, mais oblíqua, a da hereditariedade dos traços e comportamentos que os filhos podem herdar dos pais.

A primeira parte do romance abre com uma longa sequência sobre um homem, o narrador (nunca nomeado), que evita abertamente quase todo o tipo de contacto social e constrói uma vedação em torno da sua propriedade. Pode haver aqui – ou não – um jogo com o mito do beau sauvage. Através das preocupações filosóficas que o estruturam, podíamos dizer que H. G. Cancela é um romancista que pertence à tradição de Vergílio Ferreira. Mas As Pessoas do Drama estilhaça toda e qualquer expectativa de uma re-encenação pacífica de referências culturais que pudessem estruturar as expectativas do leitor. H. G. Cancela, de resto, notava numa entrevista recente ao Público:

A subversão tem de agir no interior da regra. Qualquer subversão tem de se produzir a partir do interior. A subversão da gramática tem de se produzir no interior da gramática da mesma maneira que a subversão da moral se produz no interior da moral. Não há um espaço agramatical; não há um espaço amoral.[1]

Paradoxalmente, pode ver-se uma observação quase clássica de um aspecto da tragédia grega como descrito por Aristóteles: o violento segredo no centro do enredo não acontece em palco, ou seja, não é narrado em parte nenhuma do romance, não é sequer explicitado e cabe ao leitor, chegando à última página e deparando-se com a didascália que encerra o romance e que inclui uma breve descrição de cada personagem (um pouco como uma lista de dramatis personae), tentar reconstruir os eventos que definem o comportamento e o percurso de cada uma das personagens, bem como as relações que se estabelecem entre elas. Em parte, esta omissão acontece porque a escala daquilo que o romancista procura representar não pode exactamente ser articulado através da linguagem. De facto, algumas personagens perdem e recuperam a capacidade de falar ao longo do romance, e uma delas permanece muda durante toda a acção.

Do narrador, que nunca é nomeado, sabemos que esteve preso, embora nunca se explicite ao certo porquê, que não possui qualquer ocupação específica, embora seja descrito na didascália como médico e ele próprio a certo ponto se descreva como historiador.

No entanto, se no centro da Antígona de Sófocles estão em conflicto as leis de um estado e o dever ancestral de sepultar um irmão, para as personagens de As pessoas do drama a preocupação com algo que as ultrapasse parece estar para lá dos seus contextos. As personagens do drama estão no limite mas esse limite não tende para um fim. O desenlace chega por exaustão. O que é a identidade, a moral, os laços de família, o valor da arte, da linguagem, da civilização, são tudo perguntas com que o romance de H. G. Cancela se debate.

No centro da acção, há a obsessão do narrador com uma actriz italiana que ele vê uma vez num filme. Algo o move a ir até Roma para a encontrar. Desenvolve-se então um opressivo triângulo entre o narrador, Laura Spirelli (a actriz) e Filippo Arboreo (encenador da peça que Laura está a representar). Laura está grávida e o pai pode ou não ser Filippo, mas a relação entre ambos parece ter chegado ao fim. Todas as noites Laura sobe ao palco para representar uma Antígona cega e grávida, duas características que não pertencem à heroína da tragédia de Sófocles. Antígona é provavelmente, de todas as tragédias que nos chegaram da antiguidade, a mais popular e encenada de sempre, talvez em parte porque ao contrário de outros dramas clássicos, há uma resposta clara para o drama moral que a peça encerra. Antígona está certa em querer sepultar o irmão porque uma lei ancestral a compele a isso, em face disso, o drama de Creonte é acessório. Uma Antígona grávida e cega, no entanto, é uma metáfora que tanto serve para caracterizar a personagem de Laura, quanto para sublinhar o traço de uma ideia de eventual culpa hereditária por um caso de incesto do qual Laura pode ter sido o fruto. Esta reinterpretação de H. G. Cancela faz o leitor pensar mais em Édipo do que em Antígona. Podíamos então dizer que, indirectamente, por inferência, no centro do enredo de As Pessoas do Drama está este velho tema, se a culpa pode ser hereditária, se passa de pais para filhos. À superfície, esta pergunta parece estruturar o percurso de todas as personagens do enredo, mas sobretudo de Laura. Há na perspectiva da própria Laura e das outras personagens, uma certa misoginia que a objectiviza. Em parte isto explica-se pela profissão de Laura, ela é uma espécie de repositório para as personagens que representa, em parte isto é levado um passo mais à frente, pelo facto das expectativas dos três homens que estão no centro do enredo – expectativa não se confunde aqui com esperança – nunca contemplarem Laura para lá da posse, isto é talvez mais verdade acerca de Filippo do que acerca do narrador, mas o comportamento de Laura é definido a partir desta perspectiva.

Há um lado violentamente irracional que, no desenlace, parece levar a melhor sobre Laura e, como consequência, sobre as restantes personagens, trazendo a acção ao fim, marcando uma viragem. No entanto, a aporia é uma constante neste romance de H. G. Cancela, o lado destrutivo da vida que pode ser convidado apenas pelo facto de vivermos em conjunto com outros (daí o isolamento inicial do narrador), de dependermos deles, de deles esperarmos algo que pode bem não ser mais do que a pista da direcção do passo seguinte. A grande categoria ausente na caracterização de Laura é a vontade. A gravidez de Laura é vista por ela como uma espécie de obrigação que talvez simbolize a inevitabilidade da vida, as forças que estão para lá de qualquer poder de decisão. Não é certo que seja o lado violentamente irracional de Laura que leve a melhor no fim. É mais o caso de que se o seu último acto configura uma rejeição dessa inevitabilidade, pode também ler-se aí, polemicamente que seja, uma tentativa de romper o ciclo dessa inevitabilidade. Personagens desesperadas tomam decisões desesperadas. As últimas páginas parecem perguntar, o que é a sobrevivência? Como continuar? É também neste sentido que As Pessoas do Drama é um dos romances mais inquietantes de 2017.


Um jogo de absolutos: Ties de Domenico Starnone

 

Há uma entrevista dada por Domenico Starnone ao Book Review, o podcast de livros do The New York Times, em que há um breve momento de embaraço.[1] Uma das primeiras perguntas que Greg Cole, um dos editores, faz ao escritor italiano versa sobre as semelhanças entre o romance escrito por Starnone, Ties (Lacci) e Dias de Abandono de Elena Ferrante, incluindo uma alusão à investigação (imediatamente vista como infame) de Claudio Gatti, que numa das maiores polémicas literárias do ano passado levou à revelação de que Elena Ferrante seria Anita Raja, tradutora de profissão e esposa de Domenico Starnone. O escritor limita-se a comentar, com um sentido de humor tipicamente italiano, que podia apenas garantir, em absoluto, que ele próprio não é Elena Ferrante (embora esses rumores tenham circulado) e que talvez fosse melhor ideia tentar entreter essa discussão com a própria Anita Raja. Na verdade, é difícil encontrar uma crítica ou sinopse a Ties no mundo anglo-saxónico em que Elena Ferrante não seja mencionada.[2] A própria página do livro no site da editora não é a isso imune.[3]

Ties é uma breve novela publicada pela Europa Editions e Starnone é descrito pela crítica como o menos internacionalmente popular dos principais romancistas italianos.[4] Oriundo de Nápoles, o autor escreveu até à data treze romances, em paralelo com a sua carreira de guionista e jornalista, tendo vencido em 2001 o prémio Strega (o prémio literário mais prestigiado de Itália) pelo livro Via Gemito. Apenas um outro dos romances foi publicado em inglês, First Execution, em 2009 (Prima Esecusione (2007). A tradução e a brilhante introdução de Ties ficaram a cargo de Jhumpa Lahiri e isto talvez merecesse uma nota mais pormenorizada. Lahiri mudou-se para Roma com a família e o seu último livro, In altre parole (2015), foi complemente escrito em italiano.[5] Mas nem o facto de Starnone, um autor com pouca carreira internacional,[6] ter sido traduzido pela vencedora de um prémio Pulitzer, parece concentrar os leitores na relevância desta novela enquanto objecto estranho à “polémica Ferrante.” 

De todos as críticas que se concentram nas ligações entre Dias de Abandono e Ties, (e são quase todas e esta também não vai escapar a essa tendência) as que mais eficazmente evitam o kitsch (de que esta nota não é um exemplo), são as que veem os dois romances como um diálogo literário entre dois escritores sobre um tópico que de resto não é, convenhamos, exactamente inédito na história de qualquer literatura que se preze.

Ties, como Dias de Abandono, é uma novela acerca das consequências de um episódio de infidelidade conjugal: Aldo Minori abandona a mulher, Vanda, e os dois filhos menores, para perseguir um romance com uma mulher relativamente mais jovem, Lídia, cortando completamente laços com eles,[7] e regressando quando a sua relação com Lídia chega ao fim.

Aaron Bady na The New Yorker[8] enumera algumas das semelhanças cruciais com Dias de Abandono – os objectos de vidro que em ambos os livros se partem em resposta à infidelidade (a cena na novela de Ferrante é bem mais gráfica e mais ou menos inesquecível), os animais de estimação que sofrem com a desordem doméstica (mais benignamente em Starnone do que em Ferrante), o facto de em ambas as novelas o casal ter dois filhos, de em ambas haver um vizinho mais velho, mas mais decisivamente na estrutura das duas novelas, a descrição pormenorizada das consequências devastadoras do colapso mental de ambas as esposas, o que tem levado os críticos a estabelecer a comparação com o arquétipo clássico da esposa enlouquecida, Medeia[9], mas talvez aqui se devesse acrescentar, válido para ambos os livros, a meu ver, mais Ésquilo do que Eurípides, e por isso mais Clitemnestra do que Medeia. A esta analogia voltaremos mais abaixo.

Não é irrelevante pensar sobre estas duas novelas em conjunto, se por mais nada porque à superfície parece estabelecer-se um contraponto a partir do qual se torna mais fácil falar sobre a novela de Domenico Starnone. Mas onde Dias de Abandono surge como uma espécie de tour de force em monólogo, concentrado no espaço e no tempo, que converge para alguns dias decisivos na vida de uma mulher que se vê trancada numa casa, a partir da perspectiva única dessa personagem solitária, que procura recuperar o controlo sobre a sua própria vida e a vida dos filhos, tudo isto narrado com uma violência e opressão que talvez só tenham paralelo naquele tipo de narrativas que lidam com transgressões criminosamente violentas ocorridas no espaço doméstico (a tensão e atenção que se exigem do leitor são mais ou menos as mesmas que se experimentam ao ver A corda de Hitchcock, um episódio de Bloodline ou uma encenação do Agamémnon). A novela de Starnone divide-se em três partes e é, assim, cuidadosamente estruturada para incluir a perspectiva de todas as personagens envolvidas (a mulher, o marido, os filhos) e o arco temporal é muito mais amplo (abrangendo várias décadas).

 Na crítica da Asymptote, Stiliana Milkova aponta, e bem, que Ties não oferece uma solução para as perguntas que coloca, a novela termina em aberto, o que em parte tem a ver, creio, com o facto de haver um espaço muito maior para a ambivalência moral das duas personagens principais (Aldo e Vanda, o casal no centro da intriga), o que é muito possivelmente uma consequência de as suas motivações não serem claras nem para elas próprias, em parte porque as consequências das suas acções são bem menos definitivas do que se possa imaginar.

Quando Aldo Minori abandona Vanda e os filhos, ele não regressa nem quando ela faz uma tentativa de suicídio. Para quem leu os romances napolitanos é muito difícil não ver o paralelo com o relapso Nino Sarratore. E, no entanto, há que acrescentar que a secção narrada por Aldo é a mais longa em toda a novela e é difícil não sentir empatia pela sua perspectiva. Mas um pouco como no Agamémnon de Ésquilo, não se pode cometer um crime e esperar regressar com impunidade à ordem anterior. A secção narrada por Vanda passa-se em 1974, a de Aldo na actualidade, numa altura em que as crianças há muito saíram de casa e embarcaram nas suas próprias vidas. Mas um assalto ao apartamento, empreendido quando o casal se encontra de férias, espalha pela casa as memórias da infidelidade de Aldo, enquanto ele tenta a todo o custo escondê-las da mulher. Cartas de Vanda escritas naquela altura ressurgem, fotografias de Lídia que Aldo mantivera cuidadosamente guardadas (mas à vista de todos, como transparece), desaparecem misteriosamente. Um tributo à máxima complexidade que este romance alcança envolve o nome do gato doméstico e o significado de um termo num dicionário de latim (sim, eu sei que isto vos faz pensar nas classicistas dos romances de Ferrantes) e nada pode resolver a ambivalência que esta discussão esconde, porque ela assenta afinal no facto de ser impossível definir com toda a certeza as motivações mais íntimas de outra pessoa, se todas as escolhas subsequentes de alguém podem ser lidas à luz de uma decisão só.

Para lá da sombra de Ferrante, Ties é uma novela sobre a fragilidade da felicidade (em geral, não apenas da conjugal, como expresso na trajectória dos dois filhos de Aldo e Vanda) e sobre a força de certos laços. Podíamos até aceitar que o que nos é narrado é deixado em aberto, mas talvez que o isolamento em que estas personagens coexistem, o quão separadas elas estão umas das outras, encerre uma nota sobre uma convenção um pouco mais perigosa, pela qual tentamos viver absurda e absolutamente. Um pouco com a mesma indolência (se não cobardia moral) de Nino Sarratore, Aldo arrasta-se de volta ao lar, para viver durante décadas com uma mulher que nunca lhe irá perdoar a primeira transgressão. A decisão de Aldo, em aporia como surge (o que fazer depois de Lídia o deixar? – a amante abandona-o em parte porque ele sente o dever de regressar a casa para tomar conta dos filhos, mas quem afinal decide por Aldo é Lídia), sugere que esperamos que a racionalidade de certas decisões nos proteja, que acarrete uma legitimidade moral que permita a expiação. Podemos dizer, como se lê na crítica da Asymptote, que Ties deixa as possibilidades do que encena em aberto.

À violência quotidiana que sugere essa abertura, a vingança da paz podre que Vanda afinal impõe, pode bem sobrepor-se outra, a que sugere que enterrar a cabeça na areia não basta. Se, de facto, se quiser ler esta novela à luz de Dias de Abandono, o corte radical sugerido por Ferrante, parece de repente mais tolerável. E a isso talvez não seja alheio o facto de a novela de Ferrante ser afinal também um ensaio sobre a ideia de que estar vivo requer uma certa coragem.

Mas esta é apenas uma das muitas leituras deixadas em aberto pela novela de Starnone, talvez escrita para nos lembrar do outro lado desse argumento, um lado menos absoluto e mais complexo: que nem todas as perguntas têm uma solução e que estar vivo significa que não escapamos às condições contradictórias em que as nossas vidas decorrem. O tempo trai-nos, nota Jhumpa Lahiri na introdução. Deste ponto de vista, não é difícil de entender o quão relevante esta breve novela pode ser, para lá de qualquer polémica literária. Como se lê ainda na introdução:

The novel reckons with messy, uncontrollable urges that threaten to break apart what we hold sacred. It is in fact about what happens when structures – social, familial, ideological, mental, physical – fall apart. It asks why we go out of our way to create structures if only to resent them, to evade them, to dismantle them in the end. It is about our collective, primordial need for order, and about our horror, just as primordial, of closed spaces (p. 12).


[1] https://www.nytimes.com/2017/03/24/books/review/ties-to-ferrante.html

[2] Esta breve sinopse no The Guardian, assinada por Anthony Cummins, é mais ou menos paradigmática. Nas primeiras linhas lê-se: Elena Ferrante’s The Days of Abandonment described a wife’s wrath at the husband who leaves her and their two children for a younger woman. Ties lays out a similar scenario from the betrayer’s point of view, which may be no coincidence, given that Domenico Starnone is married to Anita Raja, aka Elena Ferrante (allegedly).

[3] https://www.europaeditions.co.uk/review/2893 

[4] Veja-se a crítica de Rachel Donadio

[5] A autora fala desta experiência aqui.

[6] De resto uma tendência geral da literatura italiana, pelo menos em relação aos países anglo-saxónicos: https://www.the-tls.co.uk/ferrante-fever-and-other-symptoms/

[7] Não é daí que vem o título. À letra, no italiano, lacci são atacadores.

[8] http://www.newyorker.com/books/page-turner/a-novel-of-infidelity-in-dialogue-with-elena-ferrantes-the-days-of-abandonment

[9] Veja-se, por exemplo, a crítica de Stiliana Milkova para a Asymptote.