Ouro Maciço

Chris Nealon
Tradução de Miguel Cardoso

 

Comecemos com 1978 –

“Whenever I Call You Friend”, talvez –

                  puro encanto –

                  ainda que escavado por dentro por 1995 – aquela cena de arrepiar no Safe em que a Julianne Moore procura convencer-se que está a divertir-se no bailarico das quartas-feiras no acampamento de redução-de-toxicidade –

                  poderá alguma arte sair viva daquilo?

– talvez enquanto forma,

                  o dueto vazio, afectado, a sua rentabilidade em causa,

e depois reemergindo como novo num belo dia de primavera no início da adolescência

*

 

                  Está um belo dia de primavera
                  Um belo dia para a variedade

                  Mas a variedade formal aborrece-me

                  Sestina / haibun / villanelle
                  Quem é que pensas que enganas

O nome a mim afixado é só um autocolante       autocolante fluorescente numa
                  página que já viraste e pode voltar ou não dependendo do
                                    que se segue

Não consigo ver o futuro mas encanta-me viver na era em que gavinha
                  a gavinha o hip-hop e o disco se tornaram amigos

O que definitivamente não é a pior coisa que alguma vez aconteceu

Embora esteja tudo tão ao monte naquelas canções!
vocal/ guest vocal/ rmx / feat.

Tipo, estão em solidariedade, são refugiados, o quê?

                  Rob: “Quem é o F Nicki Minaj”    
                  Eu: “’F’ quer dizer ‘Featuring’”
                  Rob: “Featuring Scott Fitzgerald”

Permitem-me aqui o reparo que a questão relativa à tecnologia não me parece ser a questão?
Não agora            não no momento em que estamos juntos e ao monte na variedade                               

A segurar-nos contra a violência               a perder a nossa curiosidade

Imagina chegar assim sem mais nem menos ao pé dele e dizer tipo, Ei Pitbull!

Thoreau ter-se-ia perguntado, porque é que aquela água está preta

*

Duas coisas maravilhosas na Erica –

Primeiro, ela virar-se para mim depois da aula e dizer “Na verdade não tenho assim grande experiência com mitos do Graal e sânscrito”

                  e segundo, bem,

aquele dia em que o polícia do campus se chegou ao pé de nós e disse “Eu sou só o mensageiro,”

                                    e ela, “nós também”

O que eu quero dizer é que os acontecimentos recentes alargaram a minha noção do que a poesia pode ser, e nisto não estou sozinho

“Já tinha conhecido gente com uma ampla variedade de competências, estranhas habilidades mágicas”

Andava a tentar cruzar um aeroporto com uma festa – um confronto e um grupo de leitura –

Andava a orbitar em torno da superfície do desalento de todos, mas depois apanhei uma corrente de ar ascendente e de repente fico tipo AH /

                                    Leah – 

                  Tenta outra vez

Andava a fazer testes a outra prosódia só porque sim mas a coisa entretanto tornou-se séria
                  A dureza de uma face – o varão de aço no meio da sociedade – um poema que se enrosca e enrola até encontrar a suficiência –

E sim bem sei que isto é demasiado expositivo mas conseguem imaginar se eu pusesse isto num romance?

                  “É que não posso nem por nada com aquela personagem do professor” 

*

Alguém algures em tempos fez pouco dos radicais com carreira na universidade por lerem A Dialéctica do Iluminismo à beira da piscina

Como se eu fosse lê-lo enquanto nadava

Hoje em dia há muita coisa que já se arranja em áudio
E o tipo na pista ao lado tinha daqueles tampões azuis-clarinhos nos ouvidos

O nadador-salvador também

Mas quem é que daria a sua voz a Adorno e Horkheimer no áudio-livro?
Parece que o pessoal do Harry Potter teve direito ao John Gielgud

Tanto num caso como no outro é preciso gastar muito latim e há definitivamente um Valdermort em ambos

“O cançonetista-tipo-eunuco na rádio, o mavioso pretendente da herdeira … [estes] servem de modelo àqueles que têm de se transformar no que quer que o sistema queira”

Penso nos pores-do-sol da Califórnia vistos do exílio, lá bem no cimo de Los Angeles                     

Penso na Califórnia

Quando me mudei para aqui pensava que dialéctica queria dizer beleza natural versus imobiliário

Agora acho que é imobiliário versus dialéctica

Mas durante quanto tempo mesmo se pode espezinhar as pessoas? Mais um século?
Levanta-te Califórnia! Sou professor de carreira, sou inútil, estou pronto –

Isto em 2009 – não me consigo lembrar quais as canções na berra nesse ano – agora todos os meus poemas são escritos no comboio para Baltimore

                  Com música e vídeo e livros ao colo –
E algures fora de Odenton a minha secundaridade ganha um verniz

                  A imitar os teus movimentos Darren
                  A tentar acertar com o teu sotaque Robyn
                  A enunciar cada palavra tua René Char

“Single ladies,” duh!
Mas o problema não é esse

O problema é que os dois espíritos guias que presidem a este poema não estão em paz um com o outro

*

O primeiro espírito é hostil à retórica
É até bastante bruto a este respeito

Mas muito prestável no que toca à elasticidade do tempo e do espaço

Consegue-me fazer pensar em Paris, basta dizer “pálido” e “furioso”
Incendeia-me ambos os hemisférios

A meio caminho de Baltimore sob o sol latejante – inclinas-te para o centro da carruagem e vês ambos os lados ao mesmo tempo –

                  O corredor estreito e o amplo exterior

Foi isso que ele me ensinou – ainda a centralidade – uma lírica imune ao pensamento e um pensar em nada intimidado pelo poder da lírica –

                  o que quer que isso seja –

No fim dos seus Poemas Escolhidos ele saúda o primeiro sol da primavera

E na secção final do poema em que encontra a sua amplitude maior os seus pensamentos viram-se para a guerra – estamos em 1942 –

Aqui perco-lhe o rasto

O argumento parece ser que todas as batalhas têm dois lados, e o mesmo a poesia –

                  O real e o ideal –
E os dois tipos de oposição sangram um para dentro do outro (trocadilho propositado) por via de cadências, que pulsam tanto no soldado como no poeta…

Mas será esse o verdadeiro problema, soldados vs poetas?
No fim poderás chegar à inauguração – descobrir a plenitude na contracção –
Mas não há poesia da polícia

*

É por isso que preciso do segundo espírito – 
Ela entende a polícia em todos os sentidos – 

“e estas são as forças que tinham erigido contra nós / e estas são as forças que tínhamos erigido dentro de nós” 

Vi uma flor minúscula desfazer granito entre as quatro paredes com painéis de madeira onde a li pela primeira vez

          E com ela aprendi o que nenhum outro poeta me podia ensinar – que alívio
                 é culpar as pessoas pelo seu sofrimento – aquela sensação exaltante de se ver livre
                             da responsabilidade – como se casa tão depressa com o desejo  

                                                 de justificar o mundo tal como ele é – 

Na vigilância contra este alívio reles ela continua a ser o meu guia embora se tenha provado
         impossível seguir-lhe o rasto
Tento rastrear os danos nos meus poemas e eles sucumbem à amargura – à fúria –

Mas a literatura dispensa o registo da minha irascibilidade, que é abundante
Eu gostaria antes de mostrar-vos o que pensava ser possível

Pelo que mesmo quando viro no sentido do anti-estético não o consigo evitar, vou olhando

por cima do ombro – 

E faço um pouco de batota – uso aquela poesia beatífica e solar para me assistir naquilo que temo que a poesia
        política não suporta – a defesa do amor

        “duas mulheres fora da lei” – isto talvez em 1970 – 

Em certos dias estou convencido que consigo fazê-lo– 

         Momentaneamente elevado no Patuxent em lusco-fusco
         Em voo pelo outono como se estivesse pedrado

Mas estas cenas não são para se fazer sozinho

                             * 

É difícil chegar ao fim de “A Fenomenologia da Raiva” enquanto eles tocam “Boogie Oogie Oogie” 

É praticamente impossível ler “An Ordinary Evening in New Haven” quando o tipo no lugar ao lado está a ver –
          
Mas é aqui que vivo / a zona à beira da sobre-saturação

Modernistas melancólicos! Nem tudo está perdido – 

Mesmo de pé na P Street Bridge em hora de ponta com o trânsito da Rock Creek Parkway
         a correr lá em baixo consegues distinguir o som é a água

         As cigarras levam-te até lá

Wallace Stevens | Adrienne Rich

Ainda que duvide que gostassem um do outro espero que não levem a mal que os enxerte

um no outro

Agrada-me pensar neles em diferentes aspectos do éter, a debater os méritos

das canções que por ali passam

A propósito – um último dueto –

                             * 
Toronto, 1992

As luzes acendem-se e alguém tocava “Spinning Away” – uma canção sobre uma pintura –

E o esmorecer da promessa do sintetizador cruzou-se então com a primeira doce rajada de cinema queer

Já não sei dizer se a Moog-utopia quebrada de terceira via que os miúdos hoje em dia ensaiam é nostalgia, ou se constitui uma oposição aos seus pares –

                   que andam numa tipo eu uso chinelos-de-enfiar-o-dedo porque tá tudo na boa

                   Filhos do Império!

Ao largo na água

                  Aves marinhas                    navios com nomes de poetas

Depois penso em pintar fotografias – como o Richter o faz para reestabelecer o domínio de uma arte mais antiga –

                  O invólucro dos auscultadores roça o teu lábio inferior

                  O majestoso Andrew Joron passa por ti na água

Andrew! Diz-me qual deve ser a matéria da poesia –

Tenho uma lista de nomes de bandas que anda lá perto

Uma nota nos meus cadernos diz, se os teus poemas assentarem numa visão optimista das pessoas estás fodido

Mas não acredito nisso

                  Chamo a este dístico Conhece o Teu Inimigo

O canto das cores a soltar-se debaixo dos movimentos do rodo

“Os Ricos – a quem também chamavam Marinheiros Perpétuos”

*

Em Stevens as universidades são a sede da retórica – o inimigo da concretude
Para Rich a questão era: não deveriam os porteiros poder assistir às aulas de graça? 

Não há alquimia que ponha estas duas posições em diálogo

Mas no éter pode-se borrar a contradição – 

                Ouro maciço!

Jogar pelo seguro – compromissos desconfortáveis – enganares-te a ti mesmo


        Poesia, por outras palavras

                           * 

Algures em meados dos anos 40 o jovem Pasolini escreve umas poucas estrofes breves em friulano 
         sobre o dia da sua morte 

Ele imagina meninos de escola a trotar passeio fora, caracóis nos seus cabelos louros

E tal como ele não se podia ter enganado mais eu próprio tenho de admitir que a plenitude ensolarada da música dos anos 70 foi comprada com tempo a crédito – 

Não sei bem onde isso me deixa

         A universidade tão claramente longe da clareira que imaginara –
         As canções que me ensinaram a beleza assentes em falsas premissas – 

Mas tenho esperança que estejam a tocar algo doce no dia da minha morte  – “Tiny Dancer,” talvez – 

Tenho a certeza que estarão, algures – 

NEKUIA


we pass on
to another cellar, another sliced wall

(HD, Trilogy)


começamos com o céu sob sombras
nesse tempo, onde eclodem punti luminosi 
imitando os cabelos sussurrantes dos astros
descendo às entranhas das casas 

As casas engolem o céu 

                          – adiante então
até ao subterrâneo seguinte,   

Vemo-nos talvez do outro lado 
da chama e da cinza
da soma e sequência de nós

Isto é comédia 
contas de cabeça ao fim dos trabalhos
dança desengonçada dos cotovelos
música feroz na corda do nervo 
queda da forma na matéria rasa 
dissecção da luz avara no olho baço

Isto é comédia, depois de gasta a terza rima

Isto é comédia na hora de levantar os mortos 
para saber do caminho moroso até Ítaca
de encadeamentos e acasos 
fúrias de deuses 
e possíveis artifícios do mel 
o que um crânio aguenta hã HD
isto dito em sussurro entre as paredes de um parêntesis

Mas afinal o que aguenta o crânio 
e como levar os ossos à boca da luz
(terá perguntado Ulisses) 
quando falta ao músculo o sangue vivo 
e a cabeça é a casca de um fruto acabado

e isto terá ocorrido 

soma e sequência, 
engrenagem e transporte
uso e circulação dos bens
e a ruína das casas 
a ruína das casas e uma romã 
que se abre quando cai a luz 
meses depois do fim da guerra

uma romã abre-se 
no terraço da memória 
e nela cai a luz 
porque uma romã vive
a madeira vive e até a pedra vive                 

mas não há fruto romance ou teoria 
ou livro de Homero ou ABC da beleza 
aliteração ou rima ou açafrão no bolso para depois
ou magnetismo da memória 
que corte o cabo condutor 
que leva a canção do desastre 

e a terra permanece, alguém disse,

e depois (meses depois) 
Robinson virado do avesso
menos grego e mais velho
a íris luzente e de cócoras 
à alvura e à voltagem
espreitando os astros 
por entre as fibras dos calções 
e déjà vus sobre Génova a luminosa 
fazendo desvio por insectos até ao olho intacto 
passando a luz pelo prisma do fim 

sem norte
e sem companheiros, Tirésias, 
como previsto

estamos meses depois 
a morte afrouxou a sua canção 

Uma lâmina de erva por cima da qual nada
Elysium no Inferno antes e depois
e as abas da tenda 
boca de deus ou chuva que fazia
                         k-lakk…. thuuuuuu
vezes 4 (não contes) 
se era ruído ou música

mas fala-me, História, ao ouvido, 
que não consigo ver 
ao longe Taishan e a beleza é difícil
já tinha avisado Tirésias 
a rir 
cuspindo sangue emprestado 

Tudo isto faz parte do processo
Tremer de febre fará parte do processo
O ar que me arde faz parte do processo
A ladainha dos nomes faz parte do processo
            Dierra, Agada, Ganna, Silla
e a Europa intacta na memória
Pisa para Sul e o vento que desce de Taishan

e a morte a morte faz parte do processo
e arde o ar rememoro o sabor 
da romã que a luz abre na boca
por entre as linhas do arame que são parte do processo 
a corrosão é parte do processo e o Paraíso 
é uma lâmina de prata encostada à frente do crânio 
que a luz não chega lá atrás e a morte 
olho cego a céu aberto e o Paraíso 
é a operação magnética do verso 
antes de se desfazer 

Elysium no Inferno
Elysium mas no inferno 

e Confúcio era abrigo a luz era abrigo
mas os séculos não dão abrigo e o ar de Carrara
e o sal a queimar o dom da língua

Cantar é difícil 

já tinha avisado Tirésias
o sangue a segurar-lhe os ossos 

a beleza é difícil mas as nuvens
as nuvens sobre Pisa esplêndidas 
e sobre a latrina o céu vasto e a luz luzente 
à vista de Taishan

e a beleza é difícil mas a morte 
é uma canção que fica no ouvido
(o que o crânio aguenta)

Isto é comédia 
e o fulgor é propriedade da mente 
e o Paraíso é propriedade da mente
e o Inferno faz parte do processo

então acabemos com o céu sob sombras
sob o qual se abre a boca à chuva de fogo 

O lume estupendo de comer a própria língua

e o que amas 
fica em depósito de cinza 
na parede interior das bochechas 
onde entrará a luz
mas não nascerá qualquer flor ou folha de erva
e seguimos até à próxima cave 
e subiremos por arames até ao ar escuro
sobre Ítaca de muros desfeitos
algures ao vento e sobre a terra
longe de Taishan
e demasiado perto de tudo 

A mente mudou-se para um anexo da mente

A mente habituou-se às traseiras 

«Lembrei-me de Jean Genet», de Miguel Cardoso, lido por Patrícia Lino

https://enfermaria6.squarespace.com/caderno-2/ LEMBREI-ME DE JEAN GENET Lembrei-me de jean genet mas já não se pode passar visita a giacometti Com um ligeiro inclinar do pescoço fiz o que pude dei o braço a torcer a todos os deuses menores Há umas décadas atrás seria tão ágil de veias tão leve gasto e ventoso Estou certo que dispensaria cadeiras e estaria solto em sítios os dentes estariam mais espaçados a simpatia do pó seria evidente Levanto-me Não sou jean genet não sou giacometti nem sequer morri Suponho que estou aqui mas se me tocassem desfazer-me-ia. Miguel Cardoso

O poema pode ser lido aqui e no Caderno 2.

Caderno 2

Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€

Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

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