"a escrita", por Charles Bukowski



Tradução: João Coles



é amiúde a única
coisa
entre ti e a
impossibilidade.
nem a bebida,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
comparar-se-lhe.
nada te pode
salvar
excepto
a escrita.
ela impede que as paredes
caiam.
que as multidões
se aproximem.
rebenta
com a escuridão.
a escrita é o
derradeiro
psiquiatra,
o mais bondoso
deus de todos os
deuses.
a escrita persegue
a morte.
não sabe o que é
desistir.
e a escrita
ri
de si mesma,
da dor.
é a última
expectativa,
é a última
explicação.
é isso
que ela
é.


in Blank Gun Silencer – 1991


writing

often it is the only
thing
between you and
impossibility
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.


from Blank Gun Silencer – 1991

Leituras de Verão

Façamos o seguinte: pautemos as nossas férias de Verão pelos naturais delírios estivais e por um conjunto de livros que usaremos como exercícios espirituais (Pierre Hadot) ou artes de existência (Michel Foucault). Ler como ação afrodisia, mas também como prática de higiene (arrumar a banalidade) e de desenvolvimento mental e emocional. Se acharem esta indicação demasiado prescritiva, sigam os vossos impulsos, desde que leiam pelo menos 3h diárias. E aqui, sim, defendo um imperativo, como um desportista, quem pensa precisa de se exercitar, diariamente e bastante tempo. E ler e escrever continuam a ser a práticas mais eficazes para se ter uma «cabeça bem feita».

No meu caso, com 30 dias úteis de férias (não me invejem, o Estado ainda me deve cerca de 60), espero poder ler os livros infra (embora necessite de mais de 3h por dia em média). Poesia (estimular a atenção à palavra, a cada palavra,  com autores tão diferentes e tão bons); filosofia (revisitar grande parte de Jürgen Habermas de uma só vez, usando o projeto das Obras Escolhidas das Edições 70, e o celebrado This Life, para me inteirar de um pensamento que questiona imerso na vertigem do dia a dia, neste caso lerei no Kindle, o dispositivo ideal para a praia); teatro (depois de ver a peça Obstrução (Artistas Unidos), magnífica, o livro, um texto que revisita a Grécia Antiga, a que vivia dos e nos mitos, para inventar novas possibilidades de desejo, mais corpo-a-corpo); Romance (um inédito de Céline, esse homem sinistro que foi um génio da língua).  

Dois poemas traduzidos: Mark Strand e Garcia Lorca

Tradução de Tatiana Faia

Não sei ao certo onde Mark Strand se terá sentado para escrever o primeiro dos poemas que traduzo aqui, “Keeping Things Whole,” mas foi um poeta e tradutor galego, Jesús Castro Yáñez, quem por sinal me o mencionou. É um poema que ensaia uma justificação da necessidade de movimento, mas também ele se move, chega à revelação que encerra. O outro poema que aqui traduzo é um dos Seis Poemas Galegos de García Lorca e há outro elo galego. Sabemos onde García Lorca estava sentado quando o escreveu, ou talvez o reescreveu, não é claro, a pedido de dois editores galegos: no café Moderno em Pontevedra, em 1932.  Talvez Lorca esteja a falar aqui sobre a natureza de normas opressivas, mas de certeza que entre ter sido e haver de ser há qualquer coisa que é desarrumada pela liberdade de movimento que aí fica implícita, pelas imagens inusitadas e pouco conformes a qualquer cânone de representação realista. Achei então que fazia sentido ler estes dois poemas juntos.  

 

Manter as coisas inteiras

Num campo
sou a ausência
de campo.
É sempre
assim.
Onde quer que esteja
sou o que está em falta.

Quando caminho
separo o ar
e o ar move-se
sempre
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos razões
para nos movermos.
Eu movo-me
para manter as coisas inteiras.

 

Mark Strand, “Keeping Things Whole",” Selected Poems, 1979. Publicado aqui.

 

Eu sei que o meu perfil será tranquilo

Eu sei que o meu perfil será tranquilo
no musgo de um norte sem reflexo.
Mercúrio de vigília, casto espelho
onde se quebra o pulso do meu estilo

Que se a hera e a frescura do fio
foi a norma do corpo que deixo,
o meu perfil na areia será um velho
silêncio sem rubor de crocodilo

E ainda que nunca assuma sabor de chama
a minha língua de pombas enregeladas
mas antes o deserto gosto das giestas,


livre signo de normas oprimidas
serei, no pescoço da hirta rama
e num sem fim de doloridas dálias.

 

Frederico García Lorca, in Seis Poemas Galegos (1935).

Filosofia como Modo de Vida - nota de leitura

Sabemos, sobretudo pelos estudos de Pierre Hadot e Michel Foucault, que os gregos tomavam a vida, enquanto bios, como matéria, material, e não como zoe, sequência biológica, determinismo psicológico. Um bios enquanto material dúctil, modificável, vulnerável. Por isso, a ética designava para eles um processo, um esforço de transformação individual com implicações coletivas. Que cada cidadão se imponha as suas próprias formas, maneira de educar para a temperança, o que trará ordem à Polis. A ética, na leitura que Foucault faz dos gregos, seria um trabalho sobre si-mesmo, lento, paciente, progressivo. Estas «técnicas de si» que o pensador francês descobre e trabalha na década de 80 do séc. xx fá-lo reconsiderar a filosofia como arte da existência, ela escolheria e acompanharia as técnicas a aplicar sobre si para traçar as linhas éticas essenciais de cada um que filosofa. Prolongando as linhas socrática, estoica, epicurista e cínica (Aristóteles interessa-se mais pelo funcionamento do mundo).

Reparem como estamos longe da filosofia como profissão professoral ou atestado de erudição numa linguagem para iniciados. Para Foucault e Pierre Hadot, como antes deles para Sócrates, Montaigne ou Nietzsche, ser filósofo é uma arte, no sentido de prática artesanal que deve ocupar-se de ir definindo a ética de cada praticante.

Escrevi a minha última Nota de Segunda Feira, aqui na Enfermaria 6, em torno disto, reincidi, num café filosófico que mantenho na livraria Snob, Lisboa, cerca de uma semana depois. E eis que ontem, talvez levemente guiado por um zum-zum amigo, encontrei na Almedina do Saldanha a Filosofia como Modo de Vida. Ensaios Escolhidos, organização de Federico Testa e Marta Faustino, editado pela Edições 70. E aí pensei: não há mesmo duas sem três. Claro que há, mas fiquei contente com esta trilogia, uma consistência que nasceu das minhas vontade e interesse, mas também do acaso. E, como dizia Nietzsche, é «preciso amar o acaso».

O livro agora editado «pretende dar expressão, em língua portuguesa, às principais linhas do pródigo e multifacetado debate contemporâneo em torno da filosofia como modo de vida» (p. 43) Assim, «Tomando como ponto de partida e inspiração esta reinterpretação da história da filosofia, o volume que aqui se apresenta consiste numa colectânea de ensaios subordinados ao tema “filosofia como modo de vida”, escritos por alguns dos mais renomados autores do debate anglófono contemporâneo, nomeadamente, John Sellars, Michael Chase, Ian Hunter, Daniele Lorenzini, John Cooper, Martha Nussbaum, Julia Annas, Matthew Sharpe, Martine Béland, Michael Ure, Keith Ansell-Pearson, Tobias Dahlkvist e Arnold I. Davidson.» (da contracapa)

Os ensaios versam sobre metafilosofia (o que pode ser e como pode funcionar a filosofia como modo de vida) e, sobretudo, sobre pensadores bem conhecidos que, de um ou de outro modo, se relacionam com o tema: Pierre Hadot, Michel Foucault, Sócrates, Séneca, Nietzsche, Bergson, Cioran e Primo Levi.

Despeço-me com uma citação de Hadot: «para permanecermos fiéis à inspiração profunda — socrática, poderíamos dizer — da filosofia, seria preciso propormos uma nova ética do discurso filosófico, através da qual ele renunciaria a tomar-se a si próprio como fim em si mesmo ou, pior ainda, como meio de ostentação da eloquência do filósofo, tornando-se antes um meio de autossuperação e acesso ao plano da razão universal e da abertura aos outros.» (p. 31 / La philosophie comme manière de vivre, pp. 102-103)

Siroco: um poema de Jorie Graham

Do lado esquerdo, Casa de Keats e Shelley, Roma, ca. 1906

Jorie Graham
”Sirocco,” de Erosion, 1983
Traduzido por Tatiana Faia

Em Roma, no número 26
             da Piazza di Spagna,
ao fundo de um longo
            lance de
escadas, estão os quartos
            alugados a Keats

em 1820,
            onde ele morreu. Agora
podes visitá-los,
            o pequeno terraço,
o quarto. Os pedaços
            de papel

em que ele escreveu
            versos
são guardados atrás de vidro,
            alguns amarelecendo,
alguns fotocopiados ou
            mimeografados...

Fora da sua janela
            podes ouvir o siroco
trabalhando
             o invisível.
Cada folha seca de hera
            é tocada,

retocada. Quem é o
            o espírito nervoso
deste mundo
            que tem de rever uma vez e outra
aquilo que já sabe,

o que é tão quente e seco
            que olha através de nós
por nós,
            para uma resposta?
No porto,
            no terraço

as rígidas formas
            helénicas
das uvas surgiram.

            Hão-de amolecer
até serem fracas o suficente
            para penetrar
este mundo, traduzindo
            desamparadamente
do belo
            ao verdadeiro...
Qualquer que seja o espírito,
            a densidade das uvas


é parte do seu modo de olhar,
            e as mãos lentas
que fizeram esta máscara
            de Keats
na sua outra vida,
            e a velha mulher,

a guardiã
            do memorial
sentada no alpendre
            abaixo do porto
a separar o grão
            de entre os seixos

lançando-os à sua caçarola
            de ferro forjado
Vê o que as mãos dela
            sabem –
são o seu hálito
            a sua língua-

-mãe, dividindo
            descartando,
Há uma luz brincando
            sobre as folhas,
sobre o seu rosto,
            tornando-a

abstracta, tornando-a
            rápida
e estranha. Mas ela
            não se preocupa
com o que a mancha
            mudando-a,

ela está
            a fazer o seu trabalho. Oh como queremos
ser levados
            e mudados,
ser emendados
            pelas coisas em que entramos.

É assim também
            com o mundo?
Deseja ele que nós
            o emendemos,
luz e escuridão,
            verde

e carne? Será
            livre então?
Penso que o mundo
            é um elemento
desesperado. Se pudesse
            deixar-nos-ia acalmá-lo,

recebê-lo. Por isso eis
            o que tenho
de te pedir
            que imagines: vento;
o momento em que
            o vento

se acalma; e as uvas,
            que nada são,
que brotam
            nas tuas mãos.