José Pedro Moreira, Gatos no quintal

José Pedro Moreira

Gatos no quintal

poesia


Enfermaria 6, Lisboa,
março de 2018, 102 pp.


Capa de Gustavo Domingues e StudioPilha  


Prefácio de Simão Valente

10€

 

se vir alguém com um selfie stick
e a oportunidade se proporcionar
de lhe passar uma rasteira
sem dano para si
não hesite

 
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José Pedro Moreira

Lisboa, 1983. Vive em Oxford.

Publicou traduções do Agamémnon de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012) e de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012).

Um dos fundadores e editores da Enfermaria 6

“a parte que me falta”

(título roubado ao livro de shel silverstein)

já nada posso adiantar
aos rumos que a vida tomou
ao atalho imprevisto do
autocarro das nove e meia
no carvalhido que me fez
atrasar a reunião das avenças
ou sobre o espanhol
que se cruzou comigo
num voo convenientemente
atrasado
quando agora era eu a
dever-te uma chamada
e já estaríamos tão perto do fim.
sobre deixar berlin
nunca farei as pazes
faltou-me o boletim de adesão
a esta coisa que bombeia
sangue cá dentro
faltaram-me forças
para arrumar a casa antes de sair
e por isso eu peço desculpa
eu peço todas as desculpas
que sobrarem
mesmo que não sejam reais
porque não havia mais cartas
a jogar porque atirei o dado
na valeta mais próxima
se calhar o autocarro
fez sempre o trajecto suposto
e o desvio foi meu
mas o seguro só cobre
a rota mais curta de casa
ao trabalho se calhar o espanhol
não existiu ou a existir ia
ser pai e por isso também ficou
pelo caminho se calhar não
peço desculpas se calhar
não cheguei na verdade
a habitar a tua cidade
e por isso foste tu também
mais um dos despojos que
por distracção
abandono no banco onde
me sentei por dez minutos
quem sabe tenha estado sempre
aqui mas lugar nenhum
se molda à minha presença
seria mais fácil dizer-te
que não és uma coisa
e que eu não abandono
as coisas que carrego
gostaria se perdoasses a franqueza
de dizer que sou
hospedeira da parte me falta
mas é o contrário
é ela que me carrega
e ocasionalmente perde-me
porque lhe saltei do bolso
enquanto tirava o passe mensal:
viagem cobrada
com o desconto social
de arrependimento.

Sobre o amor

Para a Sara

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O meu marido nunca me fará isto, diz ela, a minha mulher nunca me fará aquilo, assegura ele, e no fim, não bem no fim, por não haver fim para as histórias de amor, descobrem que são ambos humanos, que os contos de fadas que lhes haviam contado sobre o casamento não se enquadravam em nada com a natureza humana, ou melhor, que os contos de fada existem mas requerem afinações, exigem a inclusão de drama e dor, e que pouco ou nada se salvará um casal que não se deixe levar pelo sentimento que os une, o amor. El pasado, livro de Alan Pauls, é muito sobre isto de duas pessoas que todos, mas mesmo todos, sabem que se amam muito, quase ao ponto da loucura, perderem anos a destruir-se com acusações, com ódios, com rancores, com ciúmes e vinganças, para depois, exaustos de tanto buscarem alimento para o buraco negro que os consome, acabarem juntos, abraçados na cama, a não desejarem mais nada do que ficar para sempre ali, com o coração de um a fazer respirar o outro. Parte do problema passa por sermos animais idiotas, capazes de ir à lua, de fabricar foguetões, mas tantas vezes inaptos para enxergar o óbvio, o que está à frente dos nossos narizes. O óbvio, por exemplo, é a certeza de que o sentido da vida, ou aquilo que achávamos ser o sentido da vida - aquele sonho grande de ascender a rei e ser adulado por uma legião de fãs - , era um escape, um medo de viver a vida real, de amar o próximo, de ser frágil. O real sentido da existência é a menina que nasceu, o filho por vir, a partilha de um jantar, um sorriso, sentir o abraço daquela mulher ao nosso lado deitada, aquela mesma mulher que nos deu origem aos sonhos e nos fez bem, sem sabermos da existência desse bem. Causamos sofrimento ao outro tantas vezes por amá-lo, por ainda não termos crescido, por não sabermos o que fazer a um sentimento mais forte do que o cérebro, por não sabermos se o sentimento que nutrimos é correspondido, por mil e uma razões que nos desviam desta necessidade vital que é aprender a amar sem mais, com fé, com a certeza de que depois daquilo não haverá mais nada na vida a não ser escuridão. Em vez de raiva pelo mal que a pessoa amada nos causou, a pessoa em sofrimento pode assumir que esse mal foi causado por outro mal, e que esse outro mal causado por outro mal, e isto até ao infinito, até perceber que no peito esventrado circulam um amor e uma bondade superiores ao osso, à carne, ao pêlo, e que não há ego, orgulho, vaidade ou ressentimento que não se consiga vencer, quando dois corpos que deviam ser um só se encontram no mundo e não sabem existir um sem o outro. 

Confissões no Comic Cosmic Cafe

I.

Aqui me sento, engolindo a golos lentos a vida fria,
Lendo as paranóicas páginas de Kerouac, enquanto todos se riem
Em inglês e francês à volta das suas mesas, longe de imaginarem
Que a sete palmos do balcão eu me questiono:
Porque é que algumas mulheres me tentaram meter o dedo no cu?
Geralmente estou dentro delas, mas o que elas querem é entrar-me dentro,
Como se fosse uma vingança por todas as vezes em que morreram com o olhar
E um abraço apressado. As cervejas caminham à minha volta e as gargalhadas aumentam.
Se calhar, estou a pensar alto em dedos finos que me tentam violar,
Coisas do último tango e cerveja cor-de-laranja e a vida engole-se
E a porta abre-se e fecha-se e mais gente entra no copo sempre cheio,
Cada vez mais difícil de aguentar, sorrisos de joelhos à espera de um orgasmo
Aos oito anos de idade, seco, no palheiro de alguém,
Há mil e mais anos atrás, antes da invenção da palavra orgasmo.
Riem-se os olhos azuis que me tentam penetrar com as meias negras
E a saia demasiado curta antes do fim das nádegas,
Rio-me eu na caneta, porque ninguém acredita que perdi a virgindade na primavera
Dos meus oito anos nos bancos traseiros de um Mini branco abandonado numa eira,
Com o irmão dela no lugar do condutor a ver se alguém vinha
E vim-me eu, mais um orgasmo seco (veio-me o gosto)
Seguido de uma dor que acompanhava cada nova entrada e saída
E ela a dizer para não parar ou nunca mais e eu não consegui mais e nunca mais.
E Kerouac, perdido no seu Big Sur, olha-me com chamas nos olhos de Humphrey Bogart
Com os meus olhos no reflexo amarelo do copo de cerveja, enquanto a vida me bebe
E só a morte é inevitável, a vida não.

II.

Tanta gargalhada com um copo quase vazio,
Um velho hippie olha-me com os seus óculos oleosos
E eu longe, em Moçambique onde está a irmã do meu amigo Pete,
Que me fez rir às gargalhadas quando me disse que eu era
O homem mais bonito que ela já viu ao vivo, exagero de quem me podia
Ter metido o dedo no cu, mais uma, da idade da minha irmã,
Não fosse eu sentir-me ainda culpado por ejaculações
Em faixas negras, faixas brancas e sofás alheios em salas desconhecidas,
Por isso jogamos poker pela madrugada fora, enquanto a cerveja passava
Para o lado onde moram os antepassados, até a vontade ser de dormir
Com ela ao lado, com medo de mais uma vez eu todo língua e dedos
E ela toda um calor viscoso à minha volta. Aposto tudo,
Acabo com a cerveja num último golo gigantesco e espero
Que a promessa nunca dita naquela noite se cumpra
Em explosões azuis nas curtas noites do verão do norte.
Mais uma mão cheia de alguém que não poderei ser, nem ter, além de três
Ou quatro orgasmos, que depois se tornarão em adiamentos de derrota.
Tudo é uma mentira que se conta com seriedade e braços cruzados
Num café com uma cerveja à frente e a distância segura
Do que se é atrás da retina longínqua do tempo.

III.

Uma madrugada igual a tantas outras e eu com o mesmo passo
Apressado de Rimbaud e a (quase) mesma fome de experiências
E vida, até que um amigo de um amigo se senta no meu colo bêbado,
Me abraça como mais uma e me pergunta se eu quero que ele me chupe
E que ele costuma fazer isso com os amigos e álcool forte
E eu sinto-me impotente na impossibilidade de me dissolver no sofá
Até deixar de me sentir numa fobia que desconhecia, culpa da forma
Como todos na terra são machões ou simplesmente não era o meu tipo
E muito obrigado mas não obrigado, afinal há experiências que ainda não,
Que nem sei, o inferno já é meu, os mapas são inúteis neste lugar onde sou,
Mão no queixo e olhar vazio de intelectual, enquanto o sol ameaça pôr-se
Antes de um Domingo sem igrejas, hipocrisia e pão do que se cola ao palato,
O mesmo que provou o meu esperma embriagado,
Sangue de uma multidão de perdidos.

IV.

Os The Smiths, apesar de ter deixado de acreditar no amor
Desde grandes fogueiras, continuam a perseguir-me,
Abençoados e noites longínquas em cidades de estudantes,
Eu, um eterno, sempre armado em mestre de esfomeados por morte
E razões para continuar, sentidos injectados como doutrinas pouco sólidas,
Mais valem uns dedos além meias húmidas, sedentas de sumo quente
E doente enquanto a música se asfixia na sua impossibilidade
E um dia confesso-te o porquê do meu inferno, a razão pela qual nunca
Me poderás amar e não interessa, enquanto eu continuar a beber a vida,
Longe daquele verão dos dezasseis anos, de Hemingway e dos aviões
A tornar a realidade demasiado real contra torres longe de Tolkien.
Não pedi nada disto, não fiz nada por isto, nem mereço seja o que for,
Por minha culpa, minha tão grande culpa, não peço, mas desespero,
Por outra noite a olhar o tecto esburacado numa manhã de Domingo
Aos sete anos e meio, pouco antes do fim do mundo.


14.04.2011
Turku

Sobre um poema de "Os Poemas Fingidos" de Pedro Braga Falcão

Poemas-Fingidos.png

Dentro em pouco, será lançado este livro de Pedro Braga Falcão (agendado para a Barraca, Lisboa, dia 29, com leituras a três na bela livraria Flâneur, Porto, dia 31 de Março de 2018). Acho que vai haver revelações, tanto mais que será a nossa editora, e poeta, Tatiana Faia a escrutinar o trabalho do Pedro. Chamo-lhe “trabalho” para não repetir palavras (aprendi isso com a minha professora primária, que sufocou a empatia à nascença). Em boa verdade, poderá uma obra ser considerada trabalho? Que diabo de palavra é esta que consegue misturar economia, teologia e fisiologia, acabando, sem o saber, no reino mais conservador da metafísica? Enfim, avancemos: Pedro Braga Falcão, parte dele, quer estar à margem da actualidade, por isso (ou por outra razão, mas aqui calha bem estabelecer essa relação) traduziu as Epístolas e as Odes de Horácio (Cotovia) e um dos seus livros de poesia chama-se Do Princípio. Sei parte disto também porque ele o confessou numa espécie de autobiografia para a Enfermaria, embora a arte do oximoro, que por vezes encanta ouvintes (usa ainda a viola, com a qual ressuscita música antiga, a quem, como é sabido, ninguém resiste), deva acautelar juízos perentórios.

Conheço o Pedro há pouco, ou melhor, encontrei-me com ele duas vezes, numa já tínhamos bebido uns copos (e sem autocensura entra-se no reino do disparate, excepto os bukowskianos), na outra, há poucos dias, estávamos envolvidos por uma multidão de estudantes a satisfazer uma das necessidades mais básicas da Pirâmide de Maslow (comer), contexto pouco propício à visão oblíqua que extrai segredos importantes do parceiro discursivo. Mas enfim, percebi, entre outras coisas, que acha a filosofia moribunda (eu fui atrás, quando devia ter cruzado ferros), o homem mais interessado na esperança de vida do corpo (bons auspícios para antropotécnica) do que em cuidar do espírito e os ritos teológico sem a raridade que lhe confeririam o poder mágico de trazer a transcendência até nós. Portanto, duas conversas e aproveitar o sentido do que vai escrevendo, também para a Enfermaria, ou está nas críticas às suas obras contaminará pouco a minha hermenêutica (uma hermenêutica fenomenológica, perdoe-se o centauro pretensioso). Não do livro inteiro, mas de um poema, um único poema que, sem resumir o sentido, ou sentidos, da totalidade, pode indicar o tom para apanhar o autor pelas costas (o velho sonho de capturar o universal no singular). Modo de dizer, sabe-se (embora poucos acreditem) que os autores são ultrapassados pelas obras, e mesmo estas vão sendo reescritas pelos leitores. Contudo, autorizo (e creio que até facilito) o autor a rir-se desta leitura, devo-lhe isso.

O poema é o 11.º do terceiro capítulo do Livro II:

Como essas crianças aí, estupidamente felizes,
porque não ter a estupidez de uma felicidade,
e comprometer-me ao estilo de mexer os braços?
Ser de uma estupidez intolerável.
E não entender nem um pouco mais do que entendo.

Ser como os que desprezamos, nós,
os que vivem na cabeça e deixam o corpo órfão,
à espera do dia em que lhe dirigimos a palavra,
na doença, na podridão dos nervos,
nos intestinos virados do avesso.
E aquela criança estupidamente infeliz
porque lhe morreu a mãe e não tem ninguém,
que não brinca e baixa os olhos e não nos vê?
Será que nós, os sábios que idolatram a ignorância,
fomos ou queremos ser estúpidos como ela?
Ou a ambivalência das grandes frases e frustrações
nos deixa perplexos perante a nossa estupidez?
Ou de tal modo ociosamente retóricas
as perguntas se desfazem num humor sujo
a que todos nós chamamos o néctar dos deuses.
E ainda assim confessamos que a ciência,
essa deusa macabra, não brinca
como brincam essas estúpidas crianças.

Pedro Braga Falcão evoca aqui a antiquíssima questão sobre a origem, a proveniência da felicidade. Problema que exige um certo grau de sofisticação intelectual, daí que os pobres de espírito (haverá tal coisa?) vivam felizes ou infelizes, enquanto os ricos de espírito (haverá tal coisa?) reflictam sobre como viver feliz ou infeliz (que às vezes declinam nos termos tristeza e melancolia, combinando-os com um cigarro e um copo de vinho tinto reserva). E isto são dois mundos irredutíveis, não há qualquer transvase de sentido entre eles. No primeiro andamento do poema critica o destino por lhe ter recusado a linha de vida das crianças “estupidamente felizes”. Lamento frequentemente ouvido nos eruditos quando se cansam da bibliomania que os aprisiona; mas seria estranho que repentinamente deixassem o corpo visitar lugares afastados das estantes ou mesas de trabalho (regressou a palavra equívoca), reeducar o corpo demora muito tempo, e vá lá saber-se se eles querem verdadeiramente isso. Sobretudo, como diz Pedro Braga Falcão, porque os que “vivem na cabeça” “deixam o corpo órfão”. Mas o idílio da estupidez, entramos no segundo andamento, pode não ser o do intangível Caeiro, antes o de uma criança sem mãe, uma estupidez da miséria e do sofrimento. E claro, a tensão entre a realidade vivida e a realidade fingida só podia criar a ambivalência que reverte o jogo dialéctico inicial, mostrando que os campeões da semântica (com a sua fé absoluta nas palavras) são, afinal, grandes estúpidos (às vezes, poucas, magníficos). E nem a ciência resiste, porque o seu poder fantástico de descrever os diagramas das leis naturais não a dispensa de uma estupidez essencial em relação ao que é propriamente humano, escapa-lhe que nós vivemos com um pé no jogo e outro no cemitério, brincamos e moremos, não de uma só vez, mas em modo gerúndio: vamos brincando e morrendo, e isso escapa à “deusa macabra”.

Portanto: Pedro Braga Falcão, cuja poesia mistura muitas vezes o Antigo Testamento com a paideia de gregos e romanos antigos – epicuristas e estóicos, menos cínicos –, heróis que se deixavam alegremente vencer pelos caprichos do Cosmos (talvez o chaosmos de Joyce), quere-se, antes de mais, lúcido. A sua poesia desnuda os nervos que decidem o movimento das coisas, das ideias e das emoções, e os nervos não mentem, nem lhes interessa a beleza poética, revelam as coisas como são. Neste caso, a estupidez é estúpida e quem a glorifica vive rodeado de dicionários e esqueletos andantes, ou então, como dizia uma personagem célebre, “sofre de fartura”.