Como o rei que se perdeu

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Para a Penélope

Como Agamémnon, que sacrificara a filha para poder guerrear os troianos, Josué sacrificara a família para atingir o sucesso num país distante, mas esse sucesso, ainda não tangível, sabia a cascalho, a cacos de vidro às voltas na língua. Sucesso real, reconhecia agora, esventrado e perdido, espreitando um irrecuperável passado estampado em fotografias e memórias enegrecidas por comportamentos dignos de chimpanzé, de um primata a enxertar as paredes com murros, a partir pratos, molduras, portas, armários, a zurrar, minuto sim, minuto sim, a vomitar ódio e caos, era o terno sorriso da menina a puxar-lhe a manga da camisa para o sofá, a mulher a enlaçá-lo na cama e a cantar no chuveiro. Este era o sucesso que durante tantos anos o acompanhara e que, aos poucos, sem saber bem como, perdera, ou fora perdendo, visto que a mulher, mesmo que alterada e também consumida pelas suas próprias falhas, ainda o seguia. Ajoelhado na igreja, com a testa colada às mãos, a benzer-se sem parança, a repetir a ladainha apreendida na catequese, o pai nosso que estais…, mergulhava no passado, nos seus erros, imbecis erros, no que poderia ter feito melhor para ter actuado como alguém compassivo. Da igreja saltou para o balcão de um bar, local onde permaneceria semanas a fio esvaziando grades de cerveja, agarrado à possibilidade de perpetuamente anestesiar a mente, aplacar a dor, esse cruel torniquete que lhe ia estrangulando a sanidade e o afastava da família que tanto adorava mas que, devido à incapacidade de esquecer, de se perdoar a si e aos outros, fugia. A terapia por via do alcoolismo cedeu passagem ao sexo pago, ao estúpido esbanjar de dinheiro nas nádegas de uma Maria Francelina ou nos peitos de uma Marília, fêmeas medonhas que não rasuravam sentimentos fortes como a amargura e o nojo. Esgotadas várias técnicas curativas, despertou Josué uma manhã abalado por um turbulento pesadelo, o de ter perdido mesmo tudo, o de já não ter sequer a mulher e a filha a seu lado, e nesse momento várias partes do seu corpo explodiram, primeiro uma perna, depois um braço e uma orelha e, finalmente, após tanto e tão tristemente bater, o coração. Josué passou a existir como pessoa destituída de cara, de altura, de peso ou de beleza, para se tornar num tempo presente que olvidara o ódio e a raiva, que sacudira a mágoa para abraçar aquilo que de mais profundo a sua existência continha,  o amor.  A filha brincava com um comboio na carpete da sala, a mulher descascava cebolas, Josué, invisível, aproximava-se delas, acariciava-as, elas sentiam a sua presença, ele amava-as, mas não era o mesmo. 

 

 

Norman Lewis em Nápoles

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para o João Coles

Em Novembro de 2017, a BBC emitiu um documentário sobre o tempo que o escritor de viagens inglês Norman Lewis passou em Nápoles em 1944, o último ano da guerra, ao serviço do exército britânico. Baseado no livro de Lewis, Naples ’44, o documentário da BBC é narrado por Benedict Cumberbatch e uma das suas primeiras sequências, que há-de ser uma das primeiras coisas narradas no livro, é a descrição da chegada de Lewis aos templos em Paestum, à espera de fogo das tropas inimigas, de como ele e um bando de jovens soldados se abrigaram por entre as imensas colunas dessas velhas ruínas, que ali estavam há séculos e de como então se torna difícil de escapar a uma impressão de paz, de civilização.

O documentário, que já não está disponível no site da BBC, mas por aí há-de andar em DVD ou streaming, está cheio de imagens de filmes antigos e de clips de arquivo. Está também cheio das histórias dos encontros que Lewis teve com as pessoas que viviam na cidade, dos soldados americanos aliados à comovente aparição de duas orfãs cegas a mendigar num restaurante.

Em 1944, Nápoles era não só uma cidade ameaçada por bombardeamentos inimigos – a dada altura todo um quarteirão da cidade tem de ser evacuado porque se pensa que os alemães o haviam armadilhado –, mas também pelos terramotos em parte causados pela presença do Vesúvio. E, no entanto, apesar de toda a destruição, as pessoas continuavam a viver, continuavam a tentar. Como é horrível a guerra, é um lugar-comum, mas nada é tão verdadeiro: como o exército inimigo destruiu a cidade, assassinou mulheres e crianças, como o exército de libertação permitiu que a corrupção florescesse e forçou uma parte considerável das mulheres da cidade (então 1/3 da população) à prostituição. O quão resilientes e cheios de recursos eram os napolitanos. A meio de tudo isto, dá-se uma erupção do Vesúvio que muda a face da montanha para sempre.

Há duas coisas que importa dizer acerca deste documentário: a primeira é que a capacidade de Norman Lewis para a empatia é impressionante. Lewis era alguém tão discreto que costumava dizer que podia entrar e sair de uma sala sem ninguém reparar que ele lá tinha estado. A outra coisa de que este documentário nos lembra é que o mundo sem gentileza é um lugar avariado, que não funciona, que é exactamente a capacidade das pessoas para serem gentis uma das coisas que fazem estar vivo valer a pena. 

Nápoles é uma cidade com mais de três mil anos, caótica, desorganizada, suja, mas, argumenta quem dela gosta, nada difícil de amar. Atravessando a Piazza Dante em direcção ao interior do quarteirão velho, bem para dentro do coração da confusão, recusando avançar em linha recta em direcção à ampla e bem mais organizada Piazza dei Plebiscito, assalta-nos a impressão de um mundo misterioso, violento, ao mesmo tempo velho, novo, cosmopolita e empobrecido, mas sempre gregário, de gente reservada e aberta, ao mesmo tempo generosa e grave. Em Nápoles, somos capazes de dar por nós a amar o mundo mutilado. É nesse sentido que gostar de Nápoles, que amar a história de todas as cidades que amamos, nos ajuda a viver.

"O pranto da escavadora", de Pier Paolo Pasolini

Pasolini e uma das suas paixões, o futebol.

Pasolini e uma das suas paixões, o futebol.

Tradução de João Coles

I

Só o amar conta, só o conhecer
é que conta; não o ter amado,
não o ter conhecido. Dá angústia

viver de um consumado
amor. A alma não cresce mais.
E eis que no calor encantado

da noite que cheia cá em baixo
entre as curvas do rio e as dormentes
visões da cidade espalhada de luzes,

ecoa ainda mil vidas,
desamor, mistério, e miséria
dos sentidos, tornam-me inimigas

as formas do mundo, que até ontem
eram a minha razão de existir.
Aborrecido, cansado, recolhido, por obscuros

largos de mercados, tristes
ruas em volta do porto fluvial,
entre as barracas e os armazéns mistos

até aos últimos prados. Ali é mortal
o silêncio: mas abaixo, na Avenida Marconi,
na estação de Trastevere, parece

todavia doce a tarde. Regressam aos seus bairros,
aos seus arrabaldes, nas suas motoretas -
de fato de treino ou de fato-macaco,

mas arrebatados por um ardor festivo -
os jovens, com os amigos nos assentos,
risonhos, emporcalhados. Os últimos fregueses

chalreiam de pé em alta
voz na noite, aqui e ali, nas mesitas
dos bares alumiados e semi-vazios.

Estupenda e mísera cidade,
que me ensinaste o que alegres e ferozes
aprendem os homens ainda crianças,

as coisas pequenas nas quais a grandeza
da vida em paz se descobre, como
ir rijos e preparados para o tropel

das ruas, abordar outro homem
sem tremer, não envergonhar-se
de olhar para o dinheiro contado

pelos preguiçosos dedos do estafeta
que sua contra as fachadas com pressa
numa cor eterna de verão;

a defender-me, a ofender, a ter
o mundo diante dos meus olhos e não
apenas no coração, a compreender

que poucos conhecem as paixões
pelas quais vivi:
não me são fraternos e, ao mesmo tempo, são

irmãos precisamente no ter
paixões de homens
que alegres, inconscientes, inteiros

vivem de experiências
alheias a mim. Estupenda e mísera
cidade que me obrigaste a 

provar daquela vida
ignota: até me fizeste descobrir
o que, em cada um, era o mundo.

Uma lua moribunda no silêncio,
que dela vive, empalidece entre violentos
ardores, que miseravelmente na terra

muda de vida, em belas alamedas, velhas
ruelas, que sem dar luz deslumbram
e, em todo o mundo, se reflectem

lá em cima, numa morna nebulosidade.
É a mais bela noite do Verão.
O Trastevere, com um cheiro a palha

de velhos estábulos, de tascas
vazias, ainda não adormeceu.
As esquinas escuras, as paredes plácidas

ressoam de ruídos encantados.
Homens e rapazes voltam para casa
- sob grinaldas de luzes agora sol -

rumo às suas vielas, que entopem
o escuro e o lixo, com aquele passo brando
do qual tanto a alma era invadida

quando amava verdadeiramente, quando
verdadeiramente queria compreender.
E, como então, desaparecem cantando.

II

Pobre como um gato do Coliseu
vivia num bairro todo de cal
poeirento, longe da cidade

e do campo, apertado dia após dia
num autocarro sufocante:
a cada ida, a cada volta

era um calvário de suor e ansiedade.
Longas caminhadas numa caligem cálida,
longos crepúsculos diante das cartas

amontoadas sobre a mesa, entre ruas de lodo,
muretes, casinhas banhadas de cal
e sem postigos, e cortinas como portas...

Passavam o azeitoneiro e o trapeiro,
vindos de outro bairro qualquer,
com a sua empoeirada mercadoria que parecia

fruto de furto, e com uma cara cruel
de jovens envelhecidos entre os vícios
de quem tem uma dura e esfomeada mãe.

Renovado pelo mundo novo,
livre – uma labareda, um bafo
que não sei explicar, na realidade

que humilde e suja, confusa e imensa,
formigava na periferia meridional,
dava um sentido de piedade serena.

Uma alma em mim, que não era só minha,
uma alma pequena naquele mundo sem fronteiras,
crescia, nutrida pela alegria

de quem amava, apesar de não ser amado.
E tudo se iluminava com este amor.
Talvez de rapazote, heroicamente,

e contudo maturado pela experiência
que nascia ante os pés da história.
Estava no centro do mundo, naquele mundo

de arrabaldes tristes, beduínos,
de amarelas pradarias varridas
sempre por um vento sem paz,

viesse do mar quente de Fiumicino,
ou dos campos, onde se perdia
a cidade entre os tugúrios; naquele mundo

que podia somente dominar -
espectro quadrado amarelado
na bruma amarelada,

furada por mil filas idênticas
de janelas gradeadas - a Penitenciária
entre velhos campos e casarios sopitados.

A papelada e o pó, que cego
o vento arrastava para cá e para lá,
as pobres vozes sem eco

das mulherzinhas vindas dos montes
Sabinos, do Adriático, e aqui
acampadas, agora com chusmas

de rapazitos duros e mirrados
aos berros nas suas camisolas esfarrapadas,
nos calções cinzentos e queimados,

o sol africano, as chuvas violentas
que tornavam as ruas em torrentes
de lodo, os autocarros no terminal

afundados no seu canto
entre uma última franja de relva branca
e alguma pilha de lixo ácida e ardente...

era o centro do mundo, como estava
no centro da história o meu amor
por ele: e nesta

maturidade que por ser recém-nascida
era ainda amor, tudo estava prestes
a tornar-se claro – era
 
claro! Aquele subúrbio desnudo ao vento,
não romano, nem meridional,
nem obreiro, era a vida

na sua luz mais actual:
vida, e luz da vida, plena
no caos ainda não proletário,

como pretende o burdo jornal
da célula, o derradeiro
hastear da rotogravura: osso

da existência quotidiana,
pura, por ser tão demasiado
próxima, absoluta por ser

tão demasiada e miseravelmente humana.


III

E agora volto a casa, rico daqueles anos
tão novos que jamais teria pensado
em considerá-los velhos numa alma

a eles longínqua, como a cada passado.
Subo as alamedas do Gianicolo, detenho-me
num cruzamento art nouveau, num largo arborizado,

numa muralha truncada – já nos confins
da cidade e da ondulada planície
que se abre sobre o mar. E renasce

na minha alma – inerte e sombria
como a noite abandonada ao seu perfume –
uma semente já demasiado madura

para ainda dar fruto no cúmulo
de uma vida cansada e acerba...
Eis a Villa Pamphili, e na luz

que tranquilamente reverbera
sobre as novas paredes, a rua onde vivo.
Perto de minha casa, reduzido

sobre a relva a uma baba obscura,
um rasto sobre os abismos escavados
de fresco, no tufo – silenciada a raiva

de destruição –, trepa contra prédios ralos
e pedaços de céu, inanimada,
uma escavadora...

Que pena me invade, diante destes instrumentos
supinos, espalhados aqui e ali no lodo,
diante deste trapo vermelho

que pende de um cavalete, no canto
onde a noite parece mais triste?
Porque é que, nesta apagada tinta de sangue,

a minha consciência tão cegamente resiste,
se esconde, como que aflita no seu âmago
por um remorso que a contrista?

Porque é que dentro de mim levo o mesmo pressentimento
de jornadas para sempre infrutíferas
que está no morto firmamento

no qual empalidece esta escavadora?

Dispo-me num dos mil quartos
onde na rua Fonteiana se dorme.
Sobre tudo podes escavar, tempo: esperanças,

paixões. Mas não sobre estas formas
puras da vida... Reduz-se
a elas o homem, quando alpestres

estiverem a experiência e a confiança
no mundo... Ah, os dias de Rebibbia,
que eu julgava perdidos numa luz

de necessidade, e que agora os sei tão livres!

Junto com o meu coração, então, por difíceis
casos que lhe haviam extraviado
o caminho em direcção a um destino humano,

ganhou em ardor a clareza
negada, e em ingenuidade
o negado equilíbrio – à clareza

e ao equilíbrio também se juntou,
nesses dias, a mente. O cego
arrependimento, sinal de cada minha

luta contra o mundo, era empurrado, aliás,
por ideologias adultas embora inexperientes...
Tornava-se o mundo tema

já não de mistério mas de história.
Multiplicava-se por mil a alegria
de o conhecer – como

cada homem, humildemente, conhece.
Marx ou Gobetti, Gramsci ou Croce,
estavam vivos nas vivas experiências.

Mudou a matéria de um decénio de obscura
vocação, quando me empenhei em trazer à luz
aquilo que me parecia ser a figura ideal

para uma geração ideal;
em cada página, em cada linha
que escrevia, no exílio de Rebibbia,

havia aquele fervor, aquela presunção,
aquela gratidão. Novo
na minha nova condição

de velho trabalho e velha miséria,
os poucos amigos que vinham
a minha casa, nas manhãs ou nas noites

esquecidas na Penitenciária,
viram-me dentro de uma luz viva:
plácido, violento revolucionário

no coração e na língua. Um homem floria. 


IV

Aperta-me contra a sua lã envelhecida,
perfumada de bosque, e pousa
o focinho com as suas presas de varrão

ou de urso errante de bafo de rosa,
sobre a minha boca: e ao meu redor o quarto
é uma clareira, a colcha consumada

pelos últimos suores juvenis, dança
como um véu de pólen... E de facto
caminho por uma rua que avança

entre os primeiros prados primaveris, desfeitos
numa luz de paraíso...

Transportado pela onda dos passos,
esta que deixo para trás, ligeira e miserável,
não é a periferia de Roma: «Viva
México!» vê-se escrito a cal ou gravado

sobre as ruínas dos templos, sobre os muretes nos cruzamentos,
decrépitos, leves como ossos, nos confins
de um céu ardente sem calafrios.

Ei-la, no cume de uma colina
entre as ondulações, misturadas com as nuvens,
de uma velha cadeia apenínica,

a cidade, meio vazia, apesar da hora
matinal, quando as mulheres vão
às compras – ou no lusco-fusco que doira

as crianças que correm com as mães
pelos pátios da escola fora.
As ruas são invadidas por um grande silêncio:

as calçadas um pouco desconexas perdem-se,
velhas como o tempo, cinzentas como o tempo,
e duas compridas fileiras de pedra

percorrem lúcidas e gastas as ruas.
Alguém se mexe naquele silêncio:
alguma velha, algum rapazote

alheado nos seus jogos, donde
portões de um doce Quinhentos
se abrem serenamente, ou um poço

ornado de insectos nos bordos
pousados na relva escassa,
num qualquer cruzamento ou canto esquecido.

No cume da colina estende-se a erma
praça do município, e de uma casa
a outra, para lá de um murete, e do verde

de um castanheiro, avista-se
o espaço do vale: mas não o próprio vale.
Um espaço azul celeste que treme

ou apenas céreo... Mas o Corso continua
para lá daquela praceta familiar
suspensa no céu apenínico:

entra nas casas mais apertadas, desce
um pouco, a meia-encosta: e mais abaixo
– quando as casinhas barrocas se rarefazem – 

eis que aparece o vale – e o deserto.
Só mais alguns passos
até chegar à esquina, onde a rua

se assoma entre pequenos prados nus, íngremes
e encrespados. À esquerda, contra a ladeira,
uma igreja quase desmoronada,

ergue-se coberta de frescos azuis,
vermelhos, uma abóbada repleta de volutas
ao longo das cicatrizes apagadas

do desabamento – do qual somente a
imensa concha permanece
às escâncaras contra o céu.

É ali, do lado de lá do vale, do deserto,
que sopra um ligeiro vento, desesperado,
que inflama a pele de doçura...

É como aqueles odores que, dos campos
regados de frescura, ou das margens de um rio,
sopram sobre a cidade nos primeiros

dias de bom tempo: e tu
não os reconheces, mas enlouquecido
pelo arrependimento, tentas compreender

se é um fogo aceso sobre a geada,
ou se são uvas ou nêsperas perdidas
num celeiro qualquer aquentado

pelo sol desta esplêndida manhã.
Eu grito de alegria, de tal maneira ferido
nos pulmões por aquele ar

que como um tepor ou uma luz
respiro contemplando o vale
…...........................................


V

Basta um pouco de paz para revelar
a angústia dentro do coração, 
límpida, como o fundo do mar

num dia de sol. Reconhece-lo,
sem senti-lo, o mal,
ali, na tua cama, peito, coxas

e pés abandonados, qual
um crucifixo – ou qual Noé
bêbedo, que sonha, e ingenuamente ignora

a alegria dos filhos, que
dele, os fortes, os puros, se divertem...
enfim o dia está sobre ti,

no quarto como um leão adormecido.

Por que ruas o coração
encontra plenitude, perfeição com
esta mistura de beatitude e dor?

Um pouco de paz... E em ti desperta
está a guerra, está Deus. Mal
ressoam as paixões, mal fecha

a fresca ferida, já vais tu desbaratar
a alma, que já parecia desbaratada de todo,
nas acções do sonho que não rendem

nada... Ei-lo inflamado
de esperança – que, qual velho leão
a tresandar de vodca, pela sua Rússia

ultrajada Khrushchov jura ao mundo – 
eis que tu te apercebes que sonhas.
Parece arder de paz

num feliz Agosto, cada tua paixão, cada
teu tormento interior,
cada tua ingénua vergonha

de não estares – em sentimento –
lá onde o mundo se renova.
Aliás, aquele novo sopro de vento

persegue-te, onde
cada vento cai: e ali, tumor
que se refaz, encontras

o velho crisol de amor,
o sentido, o medo, a alegria.
É ali mesmo naquele sopor

que está a luz... nesta inconsciência
de menino, de animal ou de ingénuo libertino
reside a pureza... os mais heróicos

furores nesta fuga, o mais divino
sentimento neste pobre acto humano
consumado no sono da manhã.


VI

Na labareda abandonada
do sol da manhã – resplende,
enfim, rasando os estaleiros, sobre as instalações

aquecidas – vibrações
desesperadas raspam o silêncio
que sabe desesperadamente de leite velho,

de pracetas vazias, de inocência.
Pelo menos desde as sete que aquela vibração
aumenta com o sol. Pobre presença

de uma dúzia de velhos operários,
com os trapos e as camisolas queimados
pelo suor, cujas raras vozes,

cujas lutas contra os amontoamentos dispersos
de lodo, os deslizamentos de terra, 
parecem desfazer-se neste estremecimento.

Mas de entre as obstinadas deflagrações
da escavadora que, cegamente, cega
desagrega, cega aferra

como se não tivesse um fim,
um grito repentino, humano,
nasce, e aos poucos se repete,

tão louco de dor que anteconto
já nada de humano tem, e torna a ser
estridor de morte. Depois, lento,

renasce, na luz violenta,
contra os prédios cegos, novo, igual, 
grito que só quem é moribundo,

no último instante, pode deitar
neste sol que cruelmente ainda resplandece
já um pouco amansado pela maresia...

Aos gritos está, devastada
há meses e anos de suores
matinais – acompanhada

pela legião muda de talhadores de pedra,
a velha escavadora: mas, com ela, a fresca
e assolada escavação, ou, na estreita fronteira

do horizonte novecentista,
todo o bairro... É a cidade,
afundada num fulgor de festa,

- é o mundo. Chora aquilo que tem
fim e recomeça. Aquilo que eram
verdes campos, espaço aberto, torna-se

num pátio branco como a cera,
fechado em decoroso rancor;
aquilo que era quase uma velha feira

de revestimentos frescos de argamassa ao sol, 
torna-se num novo ilhéu, que ferve
numa ordem de extenuada dor. 

Chora aquilo que cala, para
também melhorar. A luz
do futuro não cessa de nos ferir
 
por um instante: está ali, queima
cada acto do nosso quotidiano,
angustia também a confiança

que nos dá vida, está no ímpeto gobbettiano
a favor destes operários, que calados levantam,
no bairro da outra frente humana,

o trapo vermelho da sua esperança.


                            1956

 

Uma nota à escavadora

Publicados em avulso em 1956, e mais tarde reunidos num só volume em 1957, os poemas que constroem Le ceneri di Gramsci estão carregados de uma grande força ideológica, uma poesia-denúncia, e cujo símbolo é o nome de Gramsci, com o qual Pasolini intentou individualizar a revolução de ideologia marxista. Estes poemas foram reunidos em 1957 num momento histórico muito delicado para a esquerda: o vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a condenação de Estaline, a invasão da Hungria e a diáspora dos militantes do Partido Comunista Italiano. O livro de Pasolini surge como um acontecimento propício, actual, onde expõe as contradições da época. Uma palavra que sempre acompanhou a sua poesia foi passione. E a paixão de Pasolini, quase juvenil, é a sua pedra-de-toque para a compreensão do mundo como uma sua extensão. É com esta paixão, quase bipolar, sempre de extremos, com que nos apresenta a sua realidade/consciência da Itália: é a favor e contra Gramsci, é a favor e contra a ideologia marxista, é a favor e contra a classe operária. Enfim, em “O pranto da escavadora” vemos um pouco de tudo isto, vemos a pobreza dos arrabaldes romanos e da classe operária, da luta diária pelo pão quotidiano, a violência do progresso, uma certa nostalgia da juventude que tudo isto acompanha e um grande furor revolucionário, um homem enamorado do mundo que dele acolhe todo o drama até ao ponto mais íntimo do seu coração. É uma grande demanda pelo amor que se espalha por todo o poema. Recordemos os célebre versos:

                
                Só o amar conta, só o conhecer
                é que conta; não o ter amado,
                não o ter conhecido. Dá angústia

                viver de um consumado
                amor. A alma não cresce mais.
                [...]


Toda a tentativa de dizer alguma coisa é invariavelmente infrutífera, incompleta, acabando por nunca exprimir aquilo que genuinamente queremos exprimir: "Temos álibis, pretextos para dizer alguma coisa," diz Pasolini numa entrevista, "e havendo sinceridade naquilo que disse foi uma sinceridade indirecta, por assim dizer. Tive uma certa paixão, uma certa necessidade em ser sincero ao falar consigo, mas na realidade não disse aquilo que queria ou deveria ter dito e nunca nenhum de nós o consegue dizer. O que é verdadeiro e sincero raramente conseguimo-lo exprimir...talvez num momento fortuito ou em momentos de inspiração poética. [...] Não quero com isto ser irracional. Acredito que os momentos de expressividade poética são fundamentalmente racionais. [...] A verdade verdadeira talvez se possa exprimir através da religião ou da filosofia indiana, não sei, ou pela poesia. Tudo o que eu disse nos meus filmes é pretextual, é tudo pretextual [...]. Eu desde sempre, desde os primeiros poemas friulanos, usei a expressão Provençal ab-joy, ou seja, o rouxinol que canta por alegria, mas na altura isto tinha um significado especial, de raptus poeticus, de elação, de arrebatamento poético. E esta expressão é, talvez, a chave para todas as minhas criações. Eu sempre escrevi ab-joy.

Carta do Grande Maestro Adolph

Caríssimo Senhor,

    provavelmente não me conhecerá, mas por razões bastante recentes fiquei incapaz de me dar a conhecer senão por carta. Fará tudo isto parte do rumo natural dos acontecimentos e de uma certa e continuada estratégia, que logo me dirá se será a mais acertada. Além disso, tornei-me verdadeiramente incapaz de prever o futuro, se é que alguma vez fui, a partir daquele dia em que, como lhe explicarei, a minha vida se tornou assim como que compacta.

    Os factos, que poderão parecer à primeira vista um pouco corriqueiros, ou até monótonos ou aleatórios, revelar-se-ão de uma importância capital, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa.

    Mas para que saiba quem lhe escreve, apresento-me com a humildade possível dado o presente transe em que me encontro: sou Adolph Schindler, outrora braçudo e façanhudo contabilista das Indústrias Palhod, que, embora parecendo um anagrama demasiado óbvio, corresponde inteiramente à verdade do seu nome (das Indústrias, não do meu nem do seu, bem entendido), fábrica essa que se dedica à construção de térmitas, um processo que eu próprio nunca entendi muito bem; confesso-lhe que com insectos, tirando um ou outro por quem me encantei na juventude (quem não o poderá dizer?), nunca estabeleci a mais flébil relação.

   Não querendo tomar demasiado o seu tempo, até porque adivinho a enormidade e velocidade das constantes solicitações a que vossa eminência altíssima seguramente estará sujeito, exponho-lhe muito sucintamente as razões desta minha carta. Aspiro, fundamentalmente, a uma posição semelhante à de vossa senhoria numa firma análoga à de vossa mercê, e nesse sentido, e para me preparar para um tal caminho, venho procurar junto de si conselhos acerca de uma linha de acção que me permita vir a exercer funções pelo menos aproximadas daquelas que vossa reverência executa no seu dia-a-dia. Mas antes de avançar, perguntar-se-á seguramente porque lhe escreve um contabilista, cujo ofício de números tão pouco se irmana com o seu, e porque procura uma carreira semelhante à sua?... O que a seguir lhe historio tornará a questão mais evidente. Deixe-me, pois, que lhe narre o momento da minha vida em que tudo se arrevesou, os factos a que me referia ainda há poucas linhas, e que predicava de aparentemente banais. Tentarei ser breve.

No passado mês, estando eu intestinamente agastado, “afrontado” seria talvez melhor palavra, depois de uma refeição particularmente opípara e volumosa, dei por mim a dar um longo passeio a ver se tais tormentos amainavam; quis o destino, porém, que, ao passear pela Rua dos Parênteses, abundante, como de certeza não ignora, nas mais variadíssimas lojas de antiguidades, entrasse num estabelecimento comercial que se dedica àquilo que com certeza será a sua única paixão, a música.

   Na verdade, andava já bastante agoniado com a minha situação “de baixo-ventre”, chamemos-lhe assim, e anelava, qual salmão contra a corrente lutando para cumprir a sua natureza, por um espaço onde pudesse dar alívio a esse meu tormento, preferencialmente num espaço com recato acústico. Pareceu-me, então, divisar através da montra ornamentada com uns quantos instrumentos musicais, uma pequena porta que parecia revelar a da almejada salvação. Nunca fui particularmente arrojado ou fértil em metáforas ou comparações, mas deixe-me que lhe diga que tamanha provação, tamanha aflição nem mesmo o nosso primeiro ministro experimentou quando foi acusado de exercer política. Uma loja de música pareceu-me também conveniente, uma vez que o silêncio, pelo menos do ponto de vista teórico, não parecia fazer grande sentido num espaço como esse, isto considerando o único desenlace possível de uma circunstância tal como a que vivia no meu interior. Depois de olhar apressadamente à minha volta, em suores frios e sem grande atenção ao que quer que fosse, após um período de tempo socialmente aceitável, pedi licença de utilizar o quarto de banho, que me foi gentilmente cedida. Perdoe-me que lhe narre tais sórdidos pormenores, mas como verá em breve eles assumirão uma importância fulcral. Bom, após bastante tempo, pude sair daqueles preparos e respirar de alívio; eis se não quando me deu no entendimento observar com mais atenção o sítio onde estava, a loja de música, bem entendido, não a latrina, que entretanto dela tinha já saído.

    Como poderei descrever-lhe por palavras ou grunhidos a maravilhosa e extraordinária panóplia de instrumentos que o ser humano criou na sua arte e engenho musicais? Com certeza a sua vocação e o facto de todos os dias contactar com tal extraordinário portento de criatividade não lhe hão-de fanar o quotidiano espanto perante uma tal diversidade de feitios, formas e cores. Conquanto desconheça de todo como soa ou mesmo o timbre particular e característico que cada um destes lagares de Apolo decerto terá, não consegui deixar de suspeitar de que o som desses instrumentos extraordinários e inimaginavelmente compridos ou tortos seria melífluo, bondoso, ou mesmo pastoso ou gelatinoso. Gelatinoso, perguntará? Eu também me pergunto, mas não para o pôr numa posição triste ou difícil, apenas para chegar àquilo a que quero chegar desde o início desta carta, que infelizmente vejo agora que já vai longa demais para um formato moderno, digamos assim. Espero que tenha paciência de me ler um pouco mais; creio que valerá a pena.

   Enfim, perante uma tal maravilha, que nem Pânfilo teve perante o ocaso do Pigmalião dourado de Dublin, que nem os heróis terão perante as portas escancaradas de Valhala, que nem as Valquírias terão perante os cruzamentos da Via Ápia, perguntei-me: “Meu caro Adolph Schindler, não terá você passado ao lado da sua verdadeira vocação?”. Poderá estranhar porque não me tuteio na minha intimidade, excesso de zelo, pensará Vossa Excelência, não será tanto quanto uma espécie de reverência a que me forçou aquilo que a seguir lhe narro. Experimentando um ou outro instrumento com afinco e muito zelo, um violino, um clarinete, um saxofone e uma harpa (repito-lhe os nomes que o lojista me ia sussurrando), fiquei rapidamente frustrado, dada a complexidade e dificuldade no manejamento de tais organelos. O violino parecia que gemia em agonias de cabrito recentemente privado de sua terna mãe, num pasto recentemente abrasado pela Canícula, o clarinete e o saxofone insistiam num silêncio agoniante perante o carácter óbvio da sua instrumentalidade e o esforço do meu sopro; de todas aquelas ferramentas, foi a harpa a que mais me seduziu, mas cedo constatei que as suas possibilidades e recursos eram limitados àquilo que, segundo me explicou o lojista, eram meros glisssandi, ou seja, a passagem afectuosa do dedo pelas cordas para cima e para baixo, o que embora esteticamente viável, não é propriamente a única coisa de que se está à espera num instrumento, pelo menos não eu, ainda que, reitero, nunca tenha ouvido muita música na minha vida, se mesmo alguma.

   Veio então o momento que, assim o espero, me transformou para sempre; “para toda a eternidade”, seria talvez melhor expressão que o descrevesse, considerado o caminho que encetei a partir desse auspicioso momento. Atrás de uma flauta, escondido, quase envergonhado, estava um pauzinho, um pauzinho pequenino e desamparado, tal como nunca vira, com uma espécie de rolha de cortiça arredondada na parte inferior, digno, delgado e cândido no restante corpo. Chamei-lhe “pauzinho”, mas o senhor da loja prontamente me corrigiu; chamou-lhe “batuta”, e peço aliás que confirme se é assim que se chama, pois por vezes somos enganados, vendendo-nos gato por lebre, mesmo que seja somente em palavras e não em coisas, como é o caso. “Que som faz?”, perguntei-lhe, ingénuo, inocente. “Nenhum”, respondeu-me com a bonomia de quem reconhece no outro a indiscutível e imediata centelha do talento. “Mas isso é o ideal...”, respondi prontamente, sem querer entrar em grandes pormenores, até porque neles não poderia entrar. “E como chamam ao ‘batutista’, à falta de melhor expressão?”. “Maestro”, foi a resposta, grandiosa, infinita, gulosa.

   Eu que, embora sendo contabilista sempre soube reconhecer a excelência, não pude deixar de constatar que ali estava um cargo invejável. E logo ali tratei de fazer tudo para me tornar também eu um maestro, começando exactamente por comprar a batuta. Dir-me-á: um passo pequeno. Sim, reconheço, mas também enorme naquilo que representa para mim, e por inerência, para o mundo. E é precisamente nesse sentido que lhe escrevo, rogando os seus conselhos, decerto avisados. Pois quem melhor do que o artesão para explicar o seu próprio ofício? Pergunto-lhe, portanto, por onde devo começar para me tornar o maestro de uma dessas firmas como a que o senhor dirige? Agora que já tenho a batuta, como aprofundo o meu ofício? Fiz bem em abandonar a minha carreira com efeitos imediatos e não retroactivos?

Já agora, tendo estudado um (muito) pouco sobre o assunto, veio-me à mente, enquanto escrevia, um outro tipo de perguntas sobre as quais, se tiver a bondade, poder-me-á elucidar. O que é uma colcheia? Porque há tantos instrumentos? Porque é que não se escreve música como se fossem letras? Porquê aquelas cinco linhas? Quanto à géstica em si, devo-lhe dizer que tenho feito grandes progressos; havia vossa excelência de me ver manejando a batuta com bravura e galhardia, a forma como desenho agitados e grandiloquentes círculos no ar, e como eles se abafam no infinito do chão, como se todo o mundo se prostrasse à magnificência e potestade do meu gesto, com que honestidade a ponta do madeiro se eleva nos ares para logo grácil de deslocar ora para a esquerda, ora para a direita, e sinistra e dextra, assim por diante, até tudo culminar num único gesto resoluto e convicto, que tudo faz cessar.

    Mas para que saiba que nem tudo em mim é talento ingénito, deixe-me confessar-lhe que estes ensaios que descrevo se baseiam numa admirada contrafacção (não tenho melhor termo) que tenho feito de si, baseada na primeira e única apresentação musical a que tive a honra de assistir, na passada sexta-feira, que a sua firma executou no Grande Auditório; vi-o empoleirado, soberbo, impante como eu desejo ser, cheio de silenciosa verve, cheio de majestade, cheio de presença, hirto, rijo, tonificado embora avantajado pela natureza, alto, e vi o suor escorrer artisticamente do seu rosto, adivinhava a forma como a sua face se iluminava e enrubescia, ou se irritava e agredia, e deixe-me que lhe pergunte, no meu entusiasmo: porque nos mostrou sempre as suas costas, excepto quando o aplaudiam?... Porque não nos deixou ver o seu douto ar seráfico e angélico percorrendo as planuras daquela sala, os eróticos esgares de todas e todos aqueles que o escutavam, porque não nos encarou constantemente com toda a sua magnificente plumagem, com a costura impecável do seu fraque, com a juventude da sua iniciativa privada, o empreendedorismo das suas articulações?... Devo também fazê-lo?... E aquelas pessoas à sua frente, o que faziam?... Porque se esforçavam tanto com os dedinhos para cima e para baixo? Sempre acabei por ouvir, a custo, uma daquelas coisas produzidas pelo que eu reconheci como uma harpa, os tais glissandi, como assim que lhe chamou o lojista; mas diga-me, o salário de um tal intérprete deve ser exíguo, que outras actividades enceta para completar o seu pecúlio?... Bom, mas isso tudo serão pormenores necessariamente acessórios. Os músicos, os instrumentos, serão com certeza fait-divers; a mim o que me preocupa verdadeiramente é isto, resumindo numa só pergunta, ou duas: o que devo fazer agora, que tenho a minha batuta? Que passo seguro me aconselha a dar?

Com os melhores cumprimentos,

Adolph Schindler