Os Cobardes

La belleza no es un lugar donde van a parar los cobardes.
Antonio Gamoneda


Talvez venhas a morrer perto
violentado pela luz, pelo assombro
de uma vida pensada junto ao fogo
mas de onde nunca trouxeste nada 

A vida é tanto mais pesada
se te não fere a violência de um deus
se regressas da solidão com o mesmo porte
com as mãos abertas e laceradas

como praças descobertas para a morte

"Cascando" de Samuel Beckett

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Tradução de Tatiana Faia

1


por que não apenas os desesperados
de ocasião de
derramamento de palavras 

melhor antes abortar do que ser estéril

as horas depois de te ires embora são tão de chumbo
começam sempre a arrastar-se demasiado cedo
as garras rasgam cegamente o leito da carência
trazendo ao de cima os ossos os velhos amores
cavidades preenchidas outrora com olhos como os teus
tudo sempre é melhor demasiado cedo que nunca  
a negra carência salpica-lhes os rostos
diz nove dias nunca fizeram flutuar o amado
nem nove meses 
nem nove vidas

  

2

diz de novo
se não me ensinares não aprendo
diz de novo há uma última
mesmo última das vezes
última das vezes para suplicar
última das vezes para amar
para saber não saber para fingir
uma última mesmo última das vezes para dizer
se não me amas não serei amado
se não te amo não amarei

palavras rançosas batidas no coração de novo
amor amor amor baque de um velho pistão
pisando o inalterável 

coalho de palavras
aterrorizado de novo
para não amar
para amar e não tu
para ser amado e não por ti
para saber não saber para fingir
para fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a menos que te amem

Leoa de Madeira

De ti pouco mais tinha sobrado que aquela leoa de madeira
Que comprara em Samburo quando lá estivemos,
Na viagem entre Masai Mara e Nakuro percebi que já pouco te amava,
Tudo está acabado quando o trivial se sobrepõe à ilusão,
Pela leoa queriam a minha caneta, que acabei por dar
A uma menina desconhecida, na apresentação de um dos meus livros,
A noite anterior tinha-a passado com uma professora,
Na sua casa alugada e do que me lembro mais foi de vir-me
No tracejado de luar que as persianas lhe desenhavam nas nádegas,
Tinha uma pata colada, foi se calhar por isso que a trouxe,
Sempre tive um fraco por imperfeições, casos perdidos,
Hoje da leoa só ficou um haiku que escrevi, depois de já não estarmos juntos,
Porque um garoto que nunca conheci a deixou cair
E partiu-se de forma irremediável, assim me disseram,
Não a cheguei a ver cair, contigo foi o mesmo,
Não vi a queda e só ficou um carinho como uma leoa de madeira
Com uma perna quebrada, que também desapareceu,
Às mãos da maldade de um inocente, como o tempo.

Turku

22.09.2019

Vox propria (a diane bege a janis joplin o primeiro disco dos madredeus)


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O quê não te lembras do passado

isso é porque não o queres não o finges

tinhas sempre uma diane atrás de ti

castanho creme que é como se fazem as coisas

e tinhas vinil nos homens e passado

pouco tempo vivias na agulha lembras-te

ou porque não te lembras continuas lá

tudo geométrico quadrado como uma diane

atrás de ti bege como todos os esquecimentos

têm essa cor já reparaste de pôr o vinil

no teu esquecimento porque queres

porque queres não esquecer não é

o som cru das curvas à direita

em que a porta se abria o bigode do pai

que fazia sombra no asfalto da curva

e o calor que fazia num espaço frio

mosquito por mosquito barco por barco

que é bege tudo o que recordas

da diane que arrombava três vezes

a vigia dos que gravavam xabregas

em três passos jovens e de um

e de um que entretanto levaram a enterrar

não na agulha do vinil não na agulha

da droga lembras-te lembras-te

de toda a escuridão dos astros e da janis

que gritava sem ser rouca com cerveja

mais louca do que qualquer consolo

mais agulha do que qualquer cor

que fosse bege ou um destino sôfrego

pois alguém sendo jovem é heroína

e confundes droga com janis

e enterras-te no vinil do outro e pensas

porque não voltas lá aos teus pinheiros

à tua garrafa à garrafa dos outros

porque não cospes o branco da página

na esperança da literatura porque

porque não tens lembrança nas esquinas

só no quadrado da diane na curva

na curva à direita como quando pensas

este gajo este tipo esta gente

está a tentar dizer qualquer coisa dizendo

ou pondo-se dentro de uma garrafa

como aqueles barquinhos de merda

que se levantam com o sopro de um fio

ou uma mensagem para o passado

uma mensagem que o roubou agora

quando põe o mesmo disco a rodar

como todas as patranhas rodam ao luar

quando fechamos os olhos não sabemos

onde houve lua porque se fecham

na porta direita da diane bege

ser bege íntimo bege que quadrilhava

como lobos a uivar nas pétalas

demasiado lobos para se esquecerem

e é isso não é amigo eras demasiado jovem

para saberes que esquecias.

Bon fils, cher fils, beau fils

Sozinha
na plantação de arroz
vejo submersa
a minha saia de trabalho
inchada
da cobrinha
lagarta bicha
que te vi

Como podes
infante menino
medrar assim?

Não é mensurável
não importa
o tamanho
de quantas mãos
quantas mãos
apanhem
quantos grãos

Como podes
infante menino
medrar assim?

Cresces e intumesces
diante dos meus olhos
com os teus olhos cinzentos
que me fitam
quase sorrindo
se te toco
se és tocado
de mão em mão

Como podes
infante menino
não me querer só a mim?