[a norte]

a norte

as noites dormem-se

entre mantos pesados

cada grande viga de madeira

um anjo diferente de vigia

os sons quentes

abafados na perpendicularidade

das esquinas

ao pé da criança

a idade é pele sangrada

rasparam já os peixes da tarde

vértebra por vértebra

mas nem o fulgor inebriado dos arrepios

alivia

a fúria de mil braços

Paul Klee - Angel Applicant, 1939.jpg

Paul Klee - “Angel Applicant”, 1939.

George Steiner, in memoriam

George-Steiner_CNC.jpg

Para Ralph Waldo Emerson, “Em cada obra de génio reconhecemos os nossos próprios pensamentos rejeitados – regressam até nós com uma certa majestade alienada.” Foi esta a minha relação com George Steiner, e continuará a ser, apesar da morte física (os escritores vivem mais tempo, alguns até são eternos). Uma marca que resistirá ao seu pessimismo cultural (somos cada vez mais incultos, perseverando na autodestruição da grande aventura intelectual que começou na Grécia Clássica e que o smartphone acabou por derrotar), pela qual não sinto qualquer atração especial. Mas reconheço que seremos outros, já somos outros, para quem o texto deixou de ser “a circunstância vital, o ‘contexto’ que dá forma à nossa existência.” Tanto mais que o que se perde não é a opinião deste ou daquele, mas a própria linguagem (o “mundo é um imenso alfabeto”). Um pessimismo do presente e do futuro: a “educação dos jovens é uma amnésia planeada.” Por vezes sinto que se trata de uma desolação extravagante fabricada na sua redoma de Cambridge, mas depois a realidade desmente-me, vimos acelerando a nossa estupidez, sobretudo porque vivemos em quase permanente dissonância cognitiva (dizemos que não queremos destruir a Terra, mas destruímos).

Apesar das linhas conservadoras que teciam parte do seu pensamento, Steiner abriu sempre as portas a “todos os ventos”, sentia-se vulnerável porque amava tanto o que tinha sido dito quase de uma vez por todas, quanto a emergência de “presenças estranhas”; faz todo o sentido, pois, que se designasse como um “anarquista platónico. Foi esta duplicidade, a juntar a uma outra cuja dialéctica, simplificando, acontece entre o pessimismo (No Castelo do Barba Azul) e o optimismo (sim, mesmo contando com a decadência civilizacional), que fizeram dele um dos heróis intelectuais contemporâneos. Vale o que dele disse Jorge Martínez Reverte, romancista e colunista do El País: “Qué pena. Cuántas horas he passado al abrigo de uno solo de sus párrafos.

Crítico literário, teórico da tradução (o incontornável Depois de Babel), comparatista inteligentíssimo (entre as literaturas e culturas francesa, alemã e anglo-saxónica, Gramáticas da Criação, Antígonas), magistral autobiógrafo (narrador dos falhanços próprios, Errata, seguindo um dos autores que mais admirava, Samuel Beckett), cronista prolífico (The New Yorker, 1967-1997), historiador do pensamento (Gramáticas da Criação). Uma parte grande do mundo cabe em Steiner, era, e é, possível orbitar anos à volta dele sem que as revoluções sejam fastidiosas, sabe tornar o contraintuitivo brilhantemente aceitável.

Defensor apaixonado, e intransigente, do canon clássico, só podia criticar o relativismo pós-estruturalista e o poder incomensurável, sem deixar de ser banal, da técnica (nisto estava com Martin Heidegger, que estudou academicamente). Leitor profundo de Homero, Ésquilo, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Joyce, Proust, Tolstói, Dostoievski, Céline, Beckett, Nietzsche, Celan, ... Poliglota (inglês, francês, alemão, italiano). Animado por uma surpreendente curiosidade. Disse, contudo, ao Le Monde, 2013, que não se pode compreender ou amar tudo. E cometem-se erros, qualquer autobiografia devia ser sempre mais sobre fracassos do que vitórias (Errata). Além disso, considerava-se inferior aos criadores (nos três campos semânticos da criação e da criatividade: teológico, filosófico e poético). Se amou profundamente os trabalhos de crítico, leitor, erudito, professor, sabia que estava um patamar abaixo da “grande aventura da ‘criação’, da poesia, de produzir novas formas.” A distância entre ambos é, segundo ele, enorme, “ontológica”. Por isso, “Se não temos nós mesmos o génio da criação, podemos transmitir o correio dos outros.”

O que escreveu sobre Boris Pasternak, “deixa-nos mais livres do que nos encontrou”, encaixa perfeitamente no que sentimos depois de o ler. O que ele faz é estimular-nos a pensar melhor, talvez obrigar-nos, libertando-nos de cada vez de dois ou três preconceitos bafientos e mostrando-nos novos caminhos de pensamento. Por isso, terá morrido Steiner sem empobrecer a humanidade? Não. Mas ficamos com o que escreveu (muito) e em breve haverá uma indústria exegética temível, mas que trará talvez, acima do ruído, novas linhas de entendimento. Além disso, em 2050 abrir-se-á a sua correspondência, de 36 anos, com uma “amiga secreta”, onde, segundo ele, estão sentimentos íntimos ou reflexões estéticas e políticas. Como se diz num jornal europeu: “morreu um clássico. É impossível apagar a luz”.

E para quem, lendo-o, se achar autorizado a imaginar-se demiurgo, é preciso recordar algumas das palavras de Gramáticas de Criação: “A compreensão é o fruto da definição e dos investimentos anteriores. […] O mais pródigo dos forjadores de palavras, um Rabelais, um Shakespeare, um Joyce, só infinitesimalmente aumenta o volume dos recursos herdados.”

Donos do Rio e da Primavera 

Tínhamos o rio e a Primavera, todos os saltos eram certos, 

A saches levava-nos sem capacete porque ainda éramos imortais, 

Todos os dias aprendíamos que a vida valia a pena, 

Nada tínhamos que saber dela, havia Sol e os sorrisos 

Das colegas de turma com as suas calças bem apertadas, 

Os livros esperavam a noite, a sombra pedia cartas 

E jogávamos com mãos certas, ainda não havia ninguém 

Que nos rendesse, contudo alguns já fodiam, sempre houve 

Roupa interior que se molhava, uma secava no corpo, 

Outra deixava-se pendurada num negrilho, esquecida, 

Para uma memória eterna, lambia-se a poeira dos dentes, 

Como se atravessava o portão da escola sexta-feira, 

Tínhamos tudo, dinheiro para pagar sandes a todos 

No primeiro intervalo do dia de aniversário, 

Poemas só no dia da árvore ou dos namorados, 

Porque ninguém faltava, nada faltava, tínhamos os bolsos 

Cheios de mata-ratos, pipas e tesão, até Primavera, 

Tínhamos o rio, sabíamos os nomes de todos e isso bastava. 

Turku 

06.02.2020 

PEDRA e alguns poemas açorianos

PEDRA

 

O poeta sub 50

escreve piadas.

E se tiver sorte

se for atingido pela

dor morte

desengano

chegará aos

51 e

lavrar-se-á

uma poesia

como um traço violento

de arado sobre

o coração

uma

espécie de porta

como a do paraíso

derretendo

após doze

badaladas.

O poeta sub

50

não passa de

uma

tentativa

de negar a

velhice e a morte

o lado não

intenso da

vida

Se a nova

poesia

chegar

(A Poesia)

o corpo

ficcional mais

perdido

terá encontrado

o esgoto

necessário à

expulsão intestinal

da fria dor.

Ou talvez

exposta a costela

da poesia mais

crua

possa o poeta

destilar

finalmente em

dor a dor

transpondo-a para

os patamares a que

esta mão ainda

não consegue

prever

ou se prevê

não vê com

claridade

tão longínquo

ponto.

 

A não destilação

da dor

poderá ser

vista como

uma enorme falha

uma apoética falha

uma que

revele a confirmação

da pobreza final

deste poeta que

 terá assumido

finalmente

a sua

morte.

Mas

  a não destilação

líquida do

poeta presente

pode

ser uma salvação

possível para o

homem que escreve

uma descarga do

peso que lhe cai

sobre os ombros.

E assim naquilo

que haverá de mais errado

afinal será

talvez apenas

a libertação sem

destilação da dor

uma destilação sem o

suporte da pedra

que lentamente

se esvai

pelo sopro

da vida.

 

Onde uns verão

a falha

(uma falha anunciada)

o presente poeta

terá encontrado em vida

a libertação do peso

e assim da

responsabilidade de ser

alguém que dita e

sacrifica em prol de uma

manada sem

salvação.

 

Ninguém

nem mesmo esta mão que escreve

deseja transportar

tão pesada

culpa e tão

pesada

pedra.

 


OU MUITO ME ENGANO…

 

Ou muito me engano

ou não me verão vestido de branco

na festa de branco do verão

na romaria na missa do domingo (a não ser a do galo)

na procissão do Santo Senhor (nada tenho contra o Senhor)

no Coliseu vestido de fraque na confederação aristocrática e

decadente do salão nobre

na varanda da Câmara Municipal em linha para ver o trote.

Não não me encontrarão aí

porque por aí nunca estive ou quis estar.

Bastou-me algumas missas onde fui contrariado e onde cedo percebi

que as palavras de Deus não coincidem com as palavras das

beatas dos padres e dos padrecos.

 

Se o mar estiver bravo

como assim espero

estarei algures sobre a pedra mais alta a ver

o silêncio e o mar coexistirem no jogo dos laços

desenlaçados e em enrolamento.

Estarei sim pelos corredores e paredes de

alguma antiga ou nova biblioteca visitando os

meus compatriotas ratos roendo e digerindo

aquilo que ainda existe (se ainda existir) pelas estantes.

 

Mas se me encontrarem em tudo aquilo que

procuro não estar então terei dado à vida a derradeira hipótese

a hipótese sem muros paredes e sombras

onde apenas existirá a mão o toque o outro.

Terei assim lançado às ortigas (para alívio de muitos) esta nobre tentativa

de fazer poesia com as minhas mãos de fraco barro.

  A DINASTIA

                                                           

ao Leonardo Sousa

 

Carlos Da Costa Gabriel é o nosso mais

recente Prémio Camões e Pessoa. Dois

em um! Esta é a GRANDE literatura!

Carlos Da Costa Gabriel é como todo

o português sabe neto pelo lado materno

de Dona Glória que era filha adotiva

e esquecida do grande escritor Camilo.

Glória era uma filha ilegítima que o

notabilíssimo historiador de genealogias

José de Arruda Sousa veio a descobrir.

Pelo lado do pai tinha costela de Júlio

Dinis que segundo genealogias do

século XIX remontava já a Camões.

E como toda a gente sabe o nosso

ilustre Camões tinha uma costela de

Virgílio uma de Jesus e outra de Adão.

 

O prémio Camões e Pessoa atribuídos

este ano em simultâneo ao mesmo autor

o ilustre Carlos Da Costa Gabriel são a prova

da nossa distinta nobre e altiva literatura.

 

Carlos Da Costa Gabriel não só é um

grande e extraordinário escritor como

também faz poemas sobre o sangue de

Cristo e o manto da virgem que segundo

investigação exaustiva de Carlos Da Costa

Gabriel era rosa e não branco ou azul.

 

A nossa literatura está hoje de parabéns

um ano memorável para o nosso pobre

e bafiento espaço literário. O vencedor  

Da Costa Gabriel está como todos sabemos

para lá de morto mas é de louvar o alto e

nobilíssimo sacrifício de tentar estar vivo!

TRÊS ZABELAS E UM POLÍCIA

 

Às 7 e 15 da manhã

há demasiada luz e três

morcegos voam em voo

raso pelo chão.

Com o suor no rego e as pernas

cansadas de pular naquele longínqua

música das Américas

cantada por homens de peruca e com

olhos pintados

(onde já se viu tal cousa, sinhor?)

navegam à deriva pela pequena

cidade da ilha que dorme.

Trazem o cansaço da noite

o riso entre os dentes

e seis ou oito vodkas no

estômago vazio.

Pedro só gosta de homens sem barriga

sem pelos no peito nas pernas e no rabo

(do rabo nunca sabe muito bem o que fazer!)

Gosta de sentir-se picado ou imaginar-se

numa pista de gelo onde possa deslizar.

Quanto mais músculos tiverem melhor!

Rui prefere homens gordinhos e com

muito pelo no peito nas pernas e no rabo

(sabe muito bem o que fazer com ele!)

O que condiz com a sua personalidade prestável

de boa pessoa e amante de toucinho.

Quanto mais pelos tiverem melhor!

 

James é dos três o mais velho e escandaloso

nasceu de pais emigrados em Boston em 1970 e

gosta de homens ponto.  Não está para perder tempo e

o que vier à rede é peixe e peixe é como bem sabemos

tão bom como a carne.

Quanto mais práticos forem melhor!

Olha ali Rui como tu gostas

um mendigo deitado no degrau do Banco de Portugal e

com a barriga a dizer-te Anda cá!

Tu és veneno, milheri. Pedro de pedra! Se ao menos

estivesse lavadinho eu fazia o esforço ai se fazia!

 Bom dia Senhor guarda já ao serviço

  tão cedo tão trabalhador!

Bom dia James tem de ser!

 

De onde conheces o polícia minha cabra?

isso agora não interessa. Ele nem é gay!

E caindo de riso para o chão

Pedro e Rui disseram

a gente sabe filha

os ativos cá da ilha

nunca são paneleiros!

*Zabelas = maricas, paneleiros

 Na Puli e Biêr

 

Ah eu conhece-te Não eras

aquele que trabalhava na Puli e Biêr

lá na cidade?

Tão perfêtch já viram?

É assim musme

mê rique home Deus te abençoe

abençoado

vens pra cá de vez? Fazes tu muito

bem! Deus te ajude sagrado!

Vens para cá e num instante

arranjas uma cadela

elas não faltam por aí

meu rique home.

No meu tempo eu era arisca

mas elas agora…

 

É josefina tá calada praí

isto não é pró teu bico

não vês que ele tem estudexs

já estás aí toda empruada!

 

Já viram tão perfêtch

ele era tão pequenino um petcheno

da última vez que o vi

já lá vai anos anos e anos.

Tão prefêtch!

*Conhece-te=conheço-te; prefêtch= perfeito, bonito; petcheno =criança, pequeno, etc, etc…


FALSOS MÁRMORES

 

Pedro Aristides de Sousa C. viera

dos arredores de Évora para terminar

os acabamentos da igreja Matriz.

Foi recebido com banda de música

vinho de cheiro chouriço mouro

e favas de molho. Nunca se viu

um pintor cá na vila e depois de

pintado o teto principal foi a altura

de passar para as diversas paredes.

Foi preciso ir buscar um pintor a

Lisboa para fazer aquilo? Ele é de Évora!

Mais valia ter pintado tudo de branco.

Davam-me um garrafão de vinho de cheiro

e eu mesmo pintava aquilo num serão.

Home não vês que aquilo é para imitar

os mármores de Roma achas que o nosso

padre tem dinheiro para comprar mármores

verdadeiros! Tem mas é juízo. Tudo se

amanha nesta terra.

MULHERES DA VILA

 Os degraus da Matriz

escovados com esfregona

e vassoura de cabo de madeira

tiveram a força e o suor

destas mulheres que se odeiam

entre si.

Maria lá no alto do altar

é chamada em pensamentos

por umas e por outras

Aquela Vargalha! Aquela puta

que meteu os cornos ao marido!

Aquela tonta sempre de saias curtas!

Aquela atoleimada! Aquela seca!

E Maria com paciência ouve todos os

queixumes intrigas e invejas.

 

Os dias de limpeza antes da festa

são sempre muito animados cá na igreja

é a altura em que a igreja deixa de

ser igreja e passa a ringue de

farpas entre as mulheres da vila.

A festa ainda tarde

há muito que fazer até ao fim do dia

por isso todas se apressam a mostrar

quem é a mais trabalhadora.

Não vá o senhor padre esquecer de pagar os

cinco contos pela semana. Tenho bocas lá em casa!

Há que retirar a verdura dos 100

degraus de basalto negro à entrada da igreja

acumulados no último inverno.

 

Pior foram os degraus de madeira

do altar-mor

foi preciso muita coragem

três ave marias e a proeza de

não derrubar a virgem para o chão.

Caído o sol além do horizonte

a mulher do sacristão deu o rebate do

fim de todos os trabalhos

Está tudo limpinho ficou um primor

agora é esperar pelo zabela para vir

enfeitar com flores a igreja

aquele porra!

 

Maria ouvindo do altar o toque

do rebate começou a rir

sabe muito bem que o florista

é o zabela preferido do Sacristão.

VIVER SOB O MEDO

ATÉ QUE NADA EXISTA

 

Nunca tive perfil ou tendência

sonho ou ambição para ser

líder de porra nenhuma!

Mas é tempo de agir!

Isto não é um poema e

se o for é raiva em pura

pena vermelha que grita!

 Por favor calem-me este poeta

amordacem-lhe as mãos

dupliquem-lhe o preço do papel

e a tinta da natureza

tapam-lhe os olhos e os ouvidos

queimam-no na fogueira.

 Isto não é um poema é o

grito desta página de papel

desperdiçada para dizer aquilo

que ninguém quer ou deseja ver

a separação o muro o arame

que se erguem lentamente e

renovadamente entre os homens

em vossas mãos indiferentes.

Queimem por favor este poema

matem por favor este poeta

apaguem essa memória aflita que

aqui persiste e insiste na esperança

da vã mudança.

Matriz.jpg


 


Já só posso ser isto

Ernesto “Caballo” Cruz, sanguinário dentista cubano que me revestiu a boca de chumbo por intermédio de intermináveis marteladas, ganha agora a vida vendendo perfumes no aeroporto. Se mo tivessem contado, não acreditaria, mas fui eu, Átila Júnior, filho de pai incógnito, professor de francês em situação de pré-reforma vai para mais de duas décadas e meia, e autor de cinco gloriosos romances que esperam editor que lhes dê fama, quem testemunhou, com estes trémulos olhos que a terra tragará, aquilo que ninguém deseja testemunhar: a decadência de alguém que me foi mais próximo do que qualquer antigo amante ao qual tenha confiado os mais escabrosos segredos. Passei um par de noites em branco, regando a ansiedade com chávenas de chá de camomila e meditando sobre o desditoso destino de um animal que, no auge da carreira, era pela sua clientela apodado de açougueiro. Não apago a visão daquele corpanzil quase sexagenário gingando por detrás do balcão, impingindo frascos de Chanel e cremes faciais a velhotas turistas, espargindo beijocas pelo desfalecido mulherio, exibindo aquele branco sorriso que outrora me convenceu a espatifar o dinheiro que tinha e o que não tinha para que ele me metalizasse este cemitério que transporto no lugar da boca.

 Os meus dentes têm sido motivo de constante arrelia. Posso dizer que, sem cáries, sem a constante necessidade de recorrer ao alicate e à anestesia, eu seria pessoa para sentir real felicidade, habitaria um corpo deslumbrante, resultante da combinação de músculo, beleza e inteligência. Porém, na condição em que me encontro, arrancando dentes quase todos os anos, cobrindo de chumbo aqueles que se vão salvando, e sonhando com marmóreas dentições à Hollywood, subsisto à base de comprimidos e de religião. O meu caso é tão grave que trabalho unicamente para sustentar sapateiros diplomados em escavacar maxilares. Guardo o número telefónico de dois ou três dentistas para hipotéticas urgências. Movido por pura curiosidade científica, faço visitas regulares a consultórios de clínica dentária. Com a intenção de preservar os dentes que me restam, bochecho a boca dez vezes por dia com os mais dispendiosos elixires. Caso raro, o meu. Afeiçoo-me a dentistas e acredito que, caso me fosse concedida a oportunidade de voltar atrás no tempo, formar-me-ia em medicina dentária para com outra agilidade solucionar estes problemas dignos de famélico.

Longe de ser o mais talentoso ou carinhoso dentista com que privei ao longo desta jornada de trevas que foi a minha existência, Ernesto Cruz destacava-se no entanto pela veemência, pela rapidez com que decidia que certo dente deveria ser arrancado ou pela determinação com que limpava a cárie e a substituía pela chamada amálgama, produto cinzento, metalizado, que nos recorda da nossa indigente condição humana. Numa das primeiras consultas, impressionou-me a firmeza com que ele declarou que naquele dia havia arrancado dentes a vinte e dois pacientes, todos eles imigrantes e pobres e oriundos de ambientes familiares que não preveniam a pessoa para as virtudes da escova de dentes. “Só me falta você”, afirmou ele, com uma risada orgulhosa que me pôs a rezar pelo futuro. Quarenta minutos e duas anestesias depois, ao descobrir com a ponta da língua que ainda conservava a maior parte dos dentes, agradeci-lhe pelo serviço prestado e senti que uma amizade ou plataforma de compaixão começava a borbulhar. Durante seis meses, visitei o seu consultório semana sim, semana não, enchi-me de chumbo, gastei milhares e milhares de dólares para que me tratassem como um suíno num matadouro. Mas ganhei respeito e, em certa medida, admiração pelo feérico cubano. Ele foi o meu herói secreto.

Ernesto não se revela abatido no desempenho das novas funções, vende perfumes com a mesma alegria com que espetava seringas nas gengivas. Independentemente da profissão ou do lugar, nasceu para brilhar. Quando lhe perguntei que fazia ali, entre a plebe, afastado de seus alicates, contou-me, sem pestanejar, que motivos de grandeza maior o haviam privado de exercer o ofício para qual Deus o enviara ao mundo. Em primeiro lugar, disse ele, estavam as dívidas a fornecedores e às finanças. Em segundo lugar, acrescentou, vinham o divórcio e a consequente perda de metade da fortuna. Finalmente, revelou ele que o facto de não possuir qualquer diploma ou habilitação para a profissão de dentista havia sido determinante para que a polícia lhe tivesse entrado de rompante no consultório e levado de algemas, como a um vulgar criminoso. Por mais incompreendido ou frustrado que se sentisse, Ernesto nada poderia fazer para contrariar a justiça: nem sequer terminara o liceu, e só desenvolvera o gosto pela arte de tratar da boca alheia por, desde miúdo, se ter habituado a arrancar dentes aos vizinhos.

“Certas coisas não se aprendem na escola”, suspirou, abafado pelo laço preto à garçon que o obrigavam a usar na perfumaria. Não há dinheiro que compre o talento, ou aquela faísca ou trovão que instiga o palhaço a brilhar no escuro, que motiva o escritor a vergar a página em branco, que inspira o professor para iluminar os espíritos dos estudantes amorfos. “Que culpa tenho se me fizeram mais talentoso do que aos outros?”, perguntou o cubano, com um encolher de ombros tão elegante que quase me convenceu a comprar-lhe um perfume. 

Custa aceitar que um homem tão experiente como eu, que rodou as mais variadas casas profissionais dedicadas ao arrancar de dentes, não tenha percebido que o seu dentista preferido, aquele pelo qual nutriu afeição, era um farsante. Conquanto me sinta usado e talvez até defraudado, na medida em que certos tratamentos que me foram aplicados poderiam ter sido evitados, nada posso alterar em relação ao que me foi feito: os dentes que me foram arrancados não voltam, e de qualquer maneira não prestavam, estavam podres. Guardo a admiração, a sensação de ter privado com um ser fascinante, com uma dessas raras almas que existem para reinar, não importa o que façam. E ao olhar para trás, para aquilo que vivi e para aquilo que gostaria de ter vivido, concluo que somos como aquela indelével poeira que a vassoura empurra porta fora.