"O MODERADOR MONOCULAR" e 6 Tondos de "Obiana"

O moderador monocular

Sou uma apaixonada por poetas:

Mulheres (todas), Homens (alguns),

jovens inseguros e Velhos humildes.

Vejo neles toda uma forma diferente

de ver o mundo, talvez porque tenha

esses olhos de mosca e o desassossego

genético na alma e no corpo.

 

Éramos no nicho um ninho, uma

pena de cisne arrancada no meio

do Nada. O Livro era, finalmente,

lançado e na cadeira mais alta falava

o moderador pouco moderado:

A poesia é ISTO, não AQUILO.

A BOA Poesia TEM de ser ASSIM!

 

ISTO, NÃO AQUILO, ASSIM, BOA,

GRANDE, dizia e repetia; e aos

Jovens aspirantes a poetas:

DEVEM ler e DECORAR este poema.

Ora, o poeta era muito bom, mas

aquele poema em particular não o era.

E eu ia pensando em Pessoa.

Tão grande seria a desilusão de Fernando

se ouvisse tamanho moderador! Ali

compreendi que mais vale, muitas

vezes, escrever para a gaveta do pó,

a fazer da poesia um corpo que

encaixe na grelha do belo e do grande.

E calado, finalmente, o monóculo,

o poeta humilde, corrigindo o imoderado,

disse: Escrever poesia é resistir a Tudo!

Até ao Moderador de poesia!

Barbara Stronger in “Cabra bem Cabra” (2018)

43363938_2176356185981326_5830860477361553408_n.jpg
43398261_311340159657316_1772847764032454656_n.jpg
43414400_2279107842321645_8666135712787070976_n.jpg

Barbara Stronger (1983-2019) - 6 de c. 90 tondos do “Livro de artista” «OBIANA», aguarela e ponta de feltro (2018).



[pisamos hoje eiras de milho podre]

pisamos hoje eiras de milho podre
lugares onde a fome derrete gorda e crispada nas soleiras
o frio e a aridez dos Homens
cada vez mais líder
em terras e montanhas rugosas de renúncia e conflito


a devastação mora em nós sem adeus possível,
abrem-se de novo as antigas feridas cíclicas
à sombra de cada muro
milhares de crianças com mães no colo
o negrume da esperança que talvez a morte
as ensine a esperar

cavalo_de_turim-2.jpg

“O cavalo de Turim” - Béla Tarr (pormenor)

"COLÓQUIO, um crítico fala..." e outros poemas

COLÓQUIO, um crítico fala…

 “Die Tempelsäulen stehn

Verlassen in Tagen der Not”

           - Friedrich Höderlin

“Hoje não houve cardume no menu”

- Raul Milhafre

                              I

“Antes demais queria agradecer o convite
que me foi endereçado para estar aqui
neste nobre evento. Eu não preparei um
devido texto porque não tive tempo ou
melhor tempo até tive há muitos anos atrás
mas agora estão a ver sou muito requisitado
aqui e ali chamam-me para picar o ponto
e eu com esse rosto bonito e esses meus
trejeitos de diva dos anos 80 não posso e
nem consigo dizer que não. E lá vou eu
tomar um copo e outro e outro às vezes
se tiver sorte ainda engato o organizador
do evento um sobre poesia e alguma coisa.

                                   II

Mas é com prazer que venho aqui picar o
ponto sem texto preparado e sem muito
para dizer. Sendo assim vou dar início à
minha salada russa que como toda a gente
sabe começa na literatura alemã e depois
passa para Baudelaire Verlaine e Rimbaud.
E como tenho vinte minutos para falar vou
buscar o Celan as cuecas da minha tia josefina
a imagem de um homem nu uma pintura de
Ticiano e outra de Jasper Turner - ou será
William? Não importa porque nada importa
o que importa é falar indiscriminadamente
durante estes vinte minutos afinal ninguém
me paga e eu estou com pressa tenho mais
em que pensar (hum… aquele menino ali ao
fundo da sala loiro e de ombros largos ficava
muito bem lá no sofá). Falta-me muito para a
reforma e tenho de dar a cara e com sorte o cu.

                                       III

Pois dizia eu vim como sabem picar o ponto
apenas isso e o importante é que utilize muitas
vezes a palavra imagem e que diga pensar muitas
muitas vezes. Se tiver sorte usarei da retórica
mais cara muitos advérbios e interjeições coisas
que possam dar grandeza a esta minha PRESENÇA!
E se não se importarem enquanto cá estou
vou escrevendo mais um telegrama a mandar
aos messias e novos super-heróis da crítica que na
realidade são só o meu espelho de crítico decadente.
Pois sim a imagem o que mais direi da imagem?

                                          IV

A criação o vento das imagens é preciso pensar
Hodërlin fazia-o em alemão Goethe dizia azul
e vermelho Rimbaud tinha dois pés e o pobre
Baudelaire nunca ficava sentado sem absinto.
A imagem pensemos a imagem e na imagem é
preciso dizer que a imagem lembra a imagem
e a criação da imagem. O pensamento é uma
coisa que precisamos pensar sim pensar é preciso
expandir a repetição e a exaustão da repetição
da imagem da imagem da imagem. Tão a ver?
Pronto esgotei os meus vinte minutos e agora
vamos comer os bolinhos e tentar sorrir muito
para disfarçar a imagem ridícula que acabei de
fazer. Não importa eu piquei o ponto e está picado!”                                         

Fechada a matraca todo o colóquio respirou de alívio.

  O VÃO

Entre a leitura de um poema meu
(que muitos negam que o seja) e o
encontro com o rosto que escreve

                      

existe a desilusão do confronto.
Do louco e depravado corpo
Do sedento de sangue e de farpas
só encontram um pequeno beija-flor
resistente ao vento da manhã.

 

A BAILARINA

 

A bailarina de serviço todas as vezes que
abria a boca para falar do seu curso superior
dizia muito pausadamente: é um curso muito giro!
A bailarina de serviço era a única bailarina
de toda a turma uma turma cheia de meninas e
de meninos apenas seis (cinco gays e um hétero -
o único rapaz bonito que valia a pena investir).
A bailarina de serviço era mesmo bailarina não
mera figura de estilo e dançava algures numa sala
de espetáculos muito conceituada. Não fixei a sala!
A bailarina de serviço era como todas as bailarinas
um espeto e o que lhe faltava em gordura tinha
em excesso de veneno verde como a fria cicuta.
A bailarina de serviço era como todas as más bailarinas
feia (não sei se isto é bem verdade) mas era feia
nariguda com uma cabeleira enorme feita peruca.
A bailarina de serviço estudava muito. Sabe o meu
Sonho foi sempre tirar História da Arte é tão giro!
A fartura da gadelha não ressoava grande inteligência.
A bailarina de serviço estudava e lia que se fartava
passava horas e horas a decorar nomes de artistas
datas termos eloquentes da crítica da arte e ficava
furiosa com a minha falta de interesse em decorar.
A bailarina de serviço decorava decorava e decorava
e a cada nota de exame que saía ficava furiosa
furiosa furiosa. Afinal como era possível que aquele
tipo que andara a ler poesia na véspera do exame
tirasse não só mais do que ela mas fosse a nota mais alta.
A bailarina de serviço hoje vagueia algures pela
cidade e tudo o que diz nas irrelevantes vernissages
é: Sabe eu tirei História da Arte é muito muito giro!

  

PRODÍGIO(S) DA POESIA

 

“o caixote aceita. O caixote digere.

O caixote aplaude//é vê-lo a bater

 palmas depois de repleto”

                - José Martins Garcia

 

Aos 5 anos via a Arca de Noé
e os tigres da Tanzânia
em 8 horas seguidas
tinha muita mama e pouco sono.
Pelos 10 escrevia poemas que rimavam
com papão cão e pião
tudo já era medo pelo e bico.
Aos 20 publicou o seu primeiro
livro
capa dura e impermeável.
Vendeu tudo
entre a livraria Almeida e a esquina do Toy. 
Hoje pelos 22 e meio promove leituras
de poesia às quintas-feiras
diz-se amante e poeta
mas tudo o que lhe importa
é rir para a fotografia
encher o balão
rimar cuzão com cagão
bater palmas.
É isso!
A poesia é para ele promoção
da sua cintura fina
e cabelo loiro. 

Saberá ele que não é no som
que se alcança o perdão
ou onde se escondem as epifanias? 

Eu adoro leituras de poesia
tão maravilhosas como uma ervilha
sobre um cubo de gelo.
E dizendo isso vomitou toda a sopinha de letras.

VOTO *

Ser esponja.
Basta a tinta, toda
a superfície da terra e

 um mar de largo tempo.

                                 01.02.20

                 [*Depois de “Voto” de Pedro da Silveira in Corografias (1985)]

DA SUA NATUREZA

O poeta é um círculo carnal
com espelhos interiores. No
seu núcleo traz a ideia viva
e permanente da sua morte. 

Gunther Forg - Untitled, 2008.jpg

Gunther Förg - Sem título, 2008.

Manuel Resende (1948-2020)

imaggraficas_065.jpg

Manuel Resende faleceu na semana passada, a 29 de Janeiro de 2020. Poeta, tradutor e um dos mais generosos homens de letras com quem tive a alegria de me cruzar. Servem estas breves linhas para o recordar e lamentar o seu desaparecimento. A primeira vez que me cruzei com Manuel Resende foi em princípios de 2011. Tinha eu então o projecto, um pouco estranho, mas que reuniu à sua volta algumas pessoas que estavam na altura a trabalhar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, gente na chamada categoria de jovens investigadores, de trazer à faculdade algumas pessoas para passarem um dia a falar de uma literatura de que raramente se fala em Portugal, mas que tantas coisas tem em comum com a nossa, o que não devia ser motivo para explicar por que é que a devemos ler (o motivo para ler qualquer tipo de literatura não deve ser tanto caso para que nos vejamos ao espelho, mas por curiosidade e porque, como dizia Susan Sontag em Sob o Signo de Saturno, ler e escrever são formas de felicidade, se não de alegria), mas de alguma forma serve para explicar que se tratava, e trata, de uma lacuna, uma coisa em falta. Nesse Inverno de 2011, eu achava que o que faltava à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa era falar de literatura grega moderna, e mais especificamente dos seus poetas. Ora, porque o Centro de Estudos Clássicos dessa universidade é um lugar aberto e generoso, deram-nos espaço e apoio institucional para organizar a coisa. Sendo isto Portugal, apoio institucional não quer dizer pagar seja a quem for pelo seu tempo e para falar desse assunto, mas antes que nos foi cedido algum espaço na Faculdade, bem como o nome da instituição para explicar o nosso contacto às pessoas que queríamos convidar. Talvez porque fôssemos jovens investigadores, ou porque a literatura grega moderna é coisa que interessa a pouca gente, quase toda a gente que contactámos, mesmo os tradutores de autores gregos, nos disseram que não. Tivemos uma imensa dificuldade em reunir um painel e a dada altura começámos a distribuir os autores de quem queríamos falar por alguns alunos e jovens investigadores. Mas, ainda assim, faltava-nos alguém que de facto entendesse verdadeiramente alguma coisa de literatura grega. Em desespero de causa e tendo recebido a nega de toda a gente que sobre esses autores poderia ter falado, resolvi ser megalómana e enviar um email à Assírio e Alvim, pedindo-lhes o contacto de alguém que não conhecia, Manuel Resende, o tradutor de Axion Esti, a obra-prima de Odysseas Elytis, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1973. A editora cedeu-me o email, mas eu, esperando que se repetisse o não com um longo atraso na resposta ao email, como sucedera com outros convidados, pedi a um colega para se ir preparando para falar de Elytis enquanto esperávamos a resposta de Manuel Resende. Lá enviei o email. A resposta veio cinco minutos depois. Não só Manuel Resende aceitou vir até à Faculdade falar de Odysseas Elytis, enviou-me imediatamente, na resposta, o texto que pretendia ler, bem como uma tradução, inédita em livro, de um poema de Elytis que eu nunca lera, Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia. Hoje escrevo este texto e, apesar de nunca ter sido particularmente próxima de Manuel Resende (mas dávamo-nos bem e de vez em quando correspondíamo-nos com dúvidas de grego antigo e moderno), sinto-me triste para lá do que se pode explicar com palavras e com os olhos cheios de lágrimas. Na altura, perante a resposta tão entusiasta e generosa de Manuel Resende, quando todos os outros nomes nos mandaram passear, fiquei, por uma parvoíce qualquer que me escapa, um pouco preocupada com as expectativas que este pequeno evento pudesse gerar num tradutor de renome. Dizia-me ele no email que tinha o texto pronto porque estava há uma década à espera de alguém na Faculdade de Letras que o convidasse a ir falar de Elytis. Manuel Resende veio, sentou-se connosco, leu do Áxion Esti, do Canto Heróico, do Monograma, podia ter lido da Maria Neféli, outra das obras-primas desse poeta maior do cânone europeu, lembrou-nos em toda aquela conversa que ler poesia e olhar para a vida dos poetas é uma maneira de mergulhar em profundidade não só na beleza do mundo mas num vasto repositório da nossa humanidade, que, parafraseando um poema de Jorge de Sena, pode ser difícil de reunir e manter. Manuel Resende, a ler Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia, fez pela audiência naquele anfiteatro o que alguém que não confunde o que seja falar de poesia com falar de retórica deve fazer por nós, deixou-nos profundamente comovidos, e alguns de nós lavados em lágrimas. Quero crer que, por estas horas, Manuel Resende está no céu dos literatos, com Elytis, Kavafis, Seferis, Ritsos, e tantos outros escritores que ele traduziu, pacientemente a clarificar as suas dúvidas de tradução, para garantir que aqueles de nós que o queiram, poderão ler esses poetas que seriam de outra forma inacessíveis. Só nós é que estamos mais pobres, mas, pelo menos eu, agradecida do fundo do coração.

Muitas das traduções de Manuel Resende do grego moderno seguem inéditas, como suspeito que tantas outras coisas que ele foi fazendo o estão, coisas feitas como a tradução e a apresentação dos textos de Elytis, com amor, uma impecável qualidade, e por generosidade e cuidado, e seria bom, se por uma vez, não caíssemos no marasmo da indiferença que vai tolhendo a nossa cultura, que é como quem diz empobrecendo o modo como estamos vivos, e fôssemos pondo esses textos cá para fora. 

Partilho aqui o link para as traduções e poemas de Manuel Resende que fomos publicando na Enfermaria ao longo do tempo.

Tatiana Faia

Oxford, 2 de Fevereiro de 2020

Falstaff e o riso

Ou porque xis ou por que ípsilon,
os sentimentos muito direitinhos,
muito bem vestidos
com os seus andrajos de filme.
E as lágrimas a cair entre entradas e saídas.
 
A noite toda promessas, num esvair de passes e fintas,
porque porque há uma indústria
e a lista dura um dia.
Com tudo aquilo que é imprescindível
(e cada época tem a sua).
 
Ai como eu queria as filas da frente.
Ai como eu queria estrelas e requinte.
Ai como sou inteligente.
Ai como persistem os sonhos, as fantasias.
E como toda a ciência parece inútil.

Adolf Schrödter - Falstaff e o pagem, 1867.jpg

Adolf Schrödter - “Falstaff e o pagem”, 1867.