CHATEAR O CAMÕES e outros poemas

CHATEAR O CAMÕES

                                          a Inês Morão Dias

Estava a nossa querida e

linda Inês posta em grande

desassossego no Facebook

tentando acolher na boca o

doce paladar do Humano

engano. Procurava a palavra

a pétala do olho certo de

dados móveis ligados.

 

Fixava a imagem o texto

a fina ironia que lhe cabe

entre os pequenos e finos

lábios à distância do fluxo

e perdido Mondego.

Escrevia aquilo que bem

sabia sabendo de antemão

que a linha que lhe provinha

era a dança livre do fogo

aquela que dançando nua

jamais se fecharia.

 

A ARTE DE ENCHER CHOURIÇO

 

Quando o século mudou de pele

trouxe consigo a nobre arte de encher chouriço

aplicada à arte da escrita

a arte de não dizer nada dizendo muito

arte que os portugueses

sempre gostaram.

 

E assim a palavra “crítico” virou

neste início de século sinónimo

de imbecil idiota vendido linguarudo e mau feito.

 

E fazendo um arco perfeito no ar

este poema foi atirado certeiramente

ao focinho de tão nobre porco.

 

Quem esteve presente na sala disse que

parecia uma obra de John Baldessari

(somos todos críticos de arte em cima do joelho)

um prato estampado na cara da fera.

 

A FANTASIA

 

Gostava de ter uma fantasia sexual

com a miúda que vejo no ginásio.

Não, é mentira! Estes dois versos são

apenas mera cópia de Ron Padgett.

 

Quem me conhece sabe que não tenho

tal fantasia sexual pela miúda do

ginásio. No mínimo seria pelo rapaz

alto e loiro do mesmo ginásio.

 

Sim, nisso já todos acreditariam!

Como é uma fantasia faço de tudo

mas quando acordo só sou capaz

de dizer ao rapaz loiro “Boa Tarde!”

 

É esse cumprimentar de tarde, esse

clique, que rasga e separa a fantasia

da realidade, pois já é tudo tarde.

É o clique que evita muitas chatices

 

as com o meu namorado e as com a

namorada dele. Isto, sim, é uma vida

sossegada, sem meninos de ginásio,

uma verdadeira e boa fantasia!

 

Com a menina do ginásio este poema seria

um melhor poema mas sem grande fantasia.

Camões.jpg

                                         

Apocolocintose

1

o tomo poético
da Sr.ª Bouvard
inaugurou
um novo mercado
para indústria de wellbeing

um unicórnio meditava
em posição de lótus
enquanto a voz etérea da Sr.ª Bouvard
vacilante
tentativa
como se estivesse a descobrir
as palavras que recita
lhe massajava a alma
lendo poemas do seu livro
e assim
soltando sobre o mundo
como Pandora da sua caixa[1]
a pestilência destilada
de mantras inspiradores

há um para o despertar
outro para a digestão do almoço
outro para os casais apaixonados
outro para os casais apaixonados
enquanto se despem
outro para os males de amor
outro para retiros corporativos
outro para unicórnios
com problemas de digestão

2

por isso
a Academia de Escritores
decidiu atribuir-lhe o prémio

por permear de poesia
todos os aspectos da vida
disse um membro do júri

por inocular
com o soro da poesia
as massas
dos pobres de espírito
disse outro membro do júri

é tão moderno
isto de se ver
gente a ler poesia
no computador
disse outro membro do júri

se bem que eu acho
que a internet
é uma moda passageira
disse ainda outro membro do júri

 3

mas entre os guardiães
da Palavra Poética
houve quem rasgasse
a camisa metafórica
e bramasse
aos céus metafóricos
o dia puro e claro
foi defenestrado
ototoi popoi da!
a Palavra Poética
precisa de ser purificada

 4

o evento foi um sucesso
o presidente falou demoradamente
sobre o orçamento da instituição
sobre os muitos projectos que financia
e sobre as comissões
e subcomissões
de que era membro

a seguir
falou a directora
sobre a importância
da liberdade de expressão
a liberdade de expressão
disse
é muito importante
todos os dias gente é assassinada
por dizer a verdade
mas nós estamos aqui
a lutar por eles
a nossa coragem e determinação
não conhecem fronteiras
todos aplaudiram
e uma médium subiu ao palco
e convocou
o espírito de uma jornalista
morta numa terra distante
para entregar o prémio

a jornalista não conhecia esta gente
não conhecia o lugar
e nunca
tinha ouvido falar
da Sr.ª Bouvard
mas explicaram-lhe
que defender
a liberdade de expressão
era um dever de todos
e que ela devia estar grata
por haver
quem protegesse
a sua liberdade de expressão
falta de fibra moral
disse alguém
quando o espírito partiu
sem cumprir o seu dever

5

a premiada
foi por fim
chamada ao palco
passaram-lhe um cheque para a mão
ela agradeceu
e perguntou
se podia
ler um poema
tem de ser um dos pequeninos
disseram-lhe
e ela leu aquele que começa
Dezembro é o segundo mais cruel dos meses

depois
o assessor do ministro
(o ministro não pôde comparecer)
encerrou a cerimónia
com um discurso
sobre a importância da poesia
como a poesia é
uma coisa maravilhosa
e as bonitas recordações
que guarda
dos poemas
que leu na escola

6

a Sr.ª Bouvard
não conseguiu disfarçar
o desconforto
quando os fotógrafos vieram
e os flashes lhe explodiram na cara
e todos a usaram como adereço
não era esta
a apoteose que imaginara

depois
em directo para o telejornal
não acha
que os prémios são essenciais
para a sobrevivência da poesia?

sim
respondeu a Sr.ª Bouvard
depois de uma longa pausa
sem prémios
não haveria poesia
e acrescentou
desorientada
estamos a organizar
um festival de poesia
não nos querem enviar
um saco de livros?

sintomas
como viríamos a descobrir
da febre mental
que reclamou a sua vida
poucos dias depois


[1] Segundo a Professora Doutora Marília F.-P., “caixa” é uma tradução algo grosseira e imprecisa do Grego. Tratar-se-ia antes de um pequeno estojo, “uma boceta”, segundo a Professora Doutora Marília F.-P., “a boceta de Pandora”, deveríamos dizer”, segundo a Professora Doutora Marília F.-P.

A CENTOPEIA e outros insectos

             A CENTOPEIA

Enquanto limpava o cu a centopeia

mandou um e-mail ao coveiro: Podes

enterra-lo como bem quiseres meu servo!

E fumando numa das patas o cachimbo

desenhou trinta desenhos num segundo.

 A senhora vai desejar mais alguma coisa?

Querido achas mesmo que preciso de

ti para fazer alguma coisa significativa?

COMO ESMAGAR UMA BARATA

 

Descalçar a chinela

espreguiçar o dedo grande do pé

suster o silêncio e negar à unha

a pressa.

 

Imitando o céu sobre a terra

esperar.

E na hora certa

(quando no segundo parar a barata)

pisar com toda a força

o corpo pegajoso

 

até o vazio dos dedos

inchar com o estalo.

MADALENA DA FOZ

 Viajava tirava fotos em cada esquina.

Comia lentamente pepinos vomitava.

Fazia solário dia sim dia não. Corria

na passadeira com ténis Adidas. Sorria

pouco prás mulheres e muito prós

 

homens. Viajava tirava fotos dizia bem

de Ricardo Joaquim Pedro Jorge e muito

mal de Maria Teresa Gabriela Margarida.

 

Viajava tirava fotos em cada esquina.

Comia lentamente pepinos vomitava.

Sorria.  A cada foto e vómito sentia-se

perdida infeliz morta e bem Pior Gorda!

        Disseram-me que a receita para a

         felicidade era esta mas afinal…

sonhar-com-barata-morta-1.jpg

BACO

“ao fim de cinco copos de vinho

eu queria ser um poeta da contenção”

- Tatiana Faia

BACO

a Miguel Abalem,

      filho de Zahle.

                         *

O peculiar espanto

                        dos

                       Elefantes.

                           **

O corpo-a-corpo com a

perda

       o apagamento:

o centro das imagens.

 

                        I

Tatiana o passado é o início

uma catedral

um grito

onde jaz o espanto

do mar

da vida:

            a imersão total.

                       II

Ergue-se o santo.

Reclama quando

a máquina

fica a falar sozinha.

Vai dizer a forma

o jogo ilegível

no meio do rio.

 

                       III

 

Quero

a in   transparência

a    fala

   o    sereno Porto

  as    ideias impossíveis!

                   IV

Derrete-me a vida!

A transparência,

a palavra limpa,

o impacto, o muro.

Inunda o ministério

do tempo atento.

Pronuncia:      Febre

                         Tatuagem

                 V

ARDE a escrita –

o verão azul,

a ilha dos sonhos,

o cemitério partido

dos pulmões,

o toque, a luz verde.

O caminho

                    VI

O tormento ou

o epílogo do  frio:

um novo raio

afeta o  espaço

       entre

ação e o abismo.

NOTA: BACO (2019)  

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O RAPEXINHO

“Kiss me hard before you go

  summertime sadness”

              - Lana del Rey

O calção curto de

verão

quase a ver-se a virilha

trazia escrito

Adidas.

Ao curvar-se

o tronco nu

para apanhar as

chaves do carro

viu-se a linha desfiada

do calção vermelho

pela abertura

das pernas.

Tudo condizia

com o seu duro perfil de

barba rala

cabelo comprido

nariz pontiagudo e

tenda armada.

No braço

Amor de Mãe.

 Passara por ali

(não havia dúvidas)

mão fina de escultor

dizia-o

as madeixas loiras

e o braço com delicada veia.

Lamentei por segundos

não ser eu o modelador

de tão perfeita virilha.

E com a tinta seca

(como seca ficou a minha boca)

registei

o tão grande

instante.

 Aberta a caneta sobre

o guardanapo

ei-lo

correndo em direção a mim

(é aqui que a câmara abranda

para fazer um slow motion)

e com os lábios húmidos veio

entregar a conversa

de engatatão

que dura

até hoje.

 

Wolfgang Tillmans, arms and legs (2014)..jpg

Wolfgang Tillmans - “Arms and Legs”, 2014.