«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
"TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO" e outros poemas sobre o fogo
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TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO *
“Não saberão, os Homens, que é mais difícil
copiar um sorriso do que um corpo; um
Twombly do que um Rubens?”
- Raúl Milhafre
Quando subi as escadas da
National Gallery e olhei para
a minha esquerda todas as
paredes do museu ruíram.
Aos pés de Maria do Amor
da Doçura eu era outra vez
menino e não sabia quem era.
Hoje sei o que sou. Sou uma leve
pedra aos pés de São João Uma
lágrima romana nos olhos de Leda
Uma vincada linha Uma curva
num ovo de cisne. E mais do que
tudo uma mancha de sangue nas
costas de um efebo adormecido.
E. P. TWOMBLY JR COPIANDO PICASSO
“Desire is not simple or Safe”
Joshua Rivkin
Este cabelo loiro enrolando-se
sedoso no interior fino deste
lápis diz carinhosamente que sim.
Os teus olhos Thérèse inocentes
perscrutam o meu templo Absoluto
um templo recuperado de Apolo
no meio do ardente deserto.
E é aqui que tu dizes vinda
do alto “Dá-me a tua chave
da vitória” enquanto cai sobre
mim o ouro e a pena de Zeus -a que
anuncia o passado transposto.
Tão pequeninos olhos cinzelavam a
minúcia do desenho e estendiam
a captação impossível da emoção.
Quando dois astros se cruzam
numa explosão galáctica para
que serve um raio num papel?
PANDATERIA
“I’m totally unprepared so i must
compose as i singing”
- Peter Ustinov as Nero
Aquela mulher que fui já não mora aqui!
As minhas sandálias gastou-as a terra e
já não tenho outra esperança senão
aquela que sei que virá: um afiado e
seco gume de uma espada entrando
no meu macio e esguio pescoço. Não
não mais evito o meu triste destino.
Com o lenço ensanguentado da minha
pobre mãe vítima dos homens e do
poder eu Octavia dou-me por fim
vencida. Mas antes que o frio metal
me fure a garganta quero no meu
triste leito de espera praguejar
mil pragas àquele que em tempos
foi meu marido: “Que a força quente
do fogo sob a sua lira seja o raio
inevitavelmente certeiro sobre
os seus virados trinta Anos!”
TOCHA
Desespero
Arrependimento
Ternura
é tudo e é pouco o que sinto por ti.
Todo o bem que poderia ter existido
não existe. E é o não ter acontecido
que nos prende essa possibilidade
paralela daquilo que nunca aconteceu
ou acontecerá. E dada a distância da
abertura do arco solar das plantas do
meu jardim de flores a escolha foi a certa.
É na ternura deste Fim de poema que
todo e qualquer elo
entre a minha memória e a tua pele
se esgota e se apaga.
Para com ele
fazer a
tocha
do
fogo
que
se
apagou.
*Poema de “O Nardo” (2020)
Cy Twombly - “Pétalas do Fogo” (pormenor), 1989.
Ao Zé Pedro Moreira
/Isto dos deuses já soou a revolução
agora vejo-os esparramados no sofá
à procura do telecomando já não há
divisão isto é tu ficas aqui no céu
tu no mar tu na terra tu com os humanos
porque desses humanos todos se esqueceram
tinham olhos no céu e ossos na terra
e que se saiba nunca souberam respirar
debaixo de água agora um dos deuses
muda de canal vê mulheres bonitas
suspira de enfado vê-las assim abertas
confunde-o antes Vénus andava sempre nua
mas ninguém a mandava despir-se
e se alguém a visse decerto morreria
ou fazia-lhe um filho não sei o que é pior
isto dos deuses já teve mais templos
coitados é difícil ver televisão entre ruínas
entra muita água não que chova acho
acho mesmo que um deus nunca chove
deve ser por isso que os templos antigamente
eram ciclos no céu sem paredes
aí sim seria confortável para um deus
fechar as portas fechar os olhos fechar os altares
e pensar que bem que estou aqui celeste
mas lá vieram uns barbudos e uma vestes
com sacerdotisas lá dentro fazer sorrisos
um a um dois a dois três a três
e quando deram por isso pronto já os deuses
tinham sido enterrados porra não enterrem
não enterrem os deuses deixem-nos lá em cima
a ver televisão ao sábado de manhã
sabe bem já são crescidos não têm filhos
se tiveram já os engoliram ou cagaram
também lhes sabe bem ficar ali no alto
a descansar o tempo todo da nossa mortalidade
é muito pouco percebem agora aonde quero chegar
cada vez que nasce um deus é preciso admitir
que morremos uma eternidade a mais
é preciso mais uma tonelada de incensos
e um mar morto de libações e para quê
quando estamos quase a morrer eles fazem pausa
e vão à casa-de-banho aliviar-se
de todo aquele néctar que enjoo
mas como não querem perder pitada
fazem pausa e estendem a mão para a sandes
para a sandes de ambrósia feita há três séculos
ainda está boa não haveria de estar é divina
dão uma dentada e lá põem no continuar
é aquele momento-chave meteoritos por toda a parte
vulcões lava terramotos o pacote total
mas já estão com sono desligam a televisão
e deixam-nos ali a representar para o vazio
já viram esta merda nós aqui
com os nossos melhores gritos melhor maquilhagem
a interpretação do século ninguém representa
melhor do que os actores no momento da morte
e pronto já ressonam demónios com deuses
com deuses destes quem precisa de idolatria
mais valia fazer um canal privado
e destruir todos os seus templos mas claro
isso está fora de questão já os destruímos
todos não foi pelo menos aqui
os que falavam grego ou troiano ou outra
língua qualquer de esqueletos
já ninguém os entende bolas deve ser difícil
lá naqueles seus canais devem ter legendas
mas legendas em quê? divago
voltando ao assunto digam-me vá
não teria sido melhor não lhes destruirmos os templos?
Autores convidados em Março
/Fernando Colitta nasceu em Grottaglie (Itália). Estudou Lettere Moderne na Università di Roma “La Sapienza” e Linguística na Università di Pavia, levando a cabo igualmente estudos teatrais. Em 2016 organizou uma conferência multidisciplinar sobre a Inteligência Artificial. Trabalhou como actor em Itália e leccionou italiano em França. Vive actualmente no Porto.
Gonçalo Sério Limpo, natural do Porto, é músico, ilustrador e designer. Desde cedo se interessa pela vida artística: aos 13 anos inicia-se no desenho e na pintura com os artistas Cristina Guise e Alberto Péssimo, na Cooperativa Árvore. Estuda também canto e viola d’arco no Conservatório de Música do Porto. É formado em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, e em Canto Lírico, pela Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Passa um dos semestres das Belas-Artes em Milão e viaja por toda a Itália, ganhando uma cresceste admiração pela arte do cinquecento, referência insistente na temática e estilo do seu trabalho. O estudo da música e do movimento complementa a sua visão com um entendimento mais abrangente de harmonia, ritmo, composição e corporalidade. A novela gráfica integra também parte do seu imaginário, pela alquimia das relações possíveis entre palavra, narrativa e ilustração. Procura criar formalmente uma gramática de cor, de linha e de palavra que floresçam numa área cinzenta entre o espaço negativo e o positivo, entre a ilusão do escultórico e o puramente bidimensional, entre o experimental e o arqueológico.
"CORRENTES PARA A ESCRITA" e outros poemas
/CORRENTES PARA A ESCRITA
Miguel ao chegar ao céu depois
de um voo a alta velocidade
pousou a espada e sentou-se no
sofá confortável do céu dizendo
para consigo que não mais iria usar
o seu poder de paródia para atacar
qualquer ser humano idiota. Não mais
iria usar a sua língua afiada porque
estava cansado de tanto pau torto.
Bastava-lhe as aulas de boxe com
Satanás às quintas-feiras. Queria ser
um anjo normal só amor paz e poesia.
Sentado no sofá com a barriga caindo
sobre a velha fivela do cinturão antigo
ligou a televisão e deu de caras e ouvidos
com mais um belo discurso sobre as altas
e inigualáveis qualidades da arte da escrita.
Essa arte eloquente de uma minoria de
senhoras e senhores na casa dos 70 e 71.
Da velocidade e dispersão todos temos
um pouco de culpa eu próprio vou do Céu
ao Inferno num segundo e tanto estou
em Jerusalém como no cu de Judas. Mas
sobre isso não há nada a fazer. Já lhe
disseram que chegamos ao ano 2020?
E como o melhor fica para o fim a pérola
foi lançada: o exercício das minorias só
deveria existir com carimbo azul cobalto.
Se Bertold Brecht estivesse na plateia
e soubesse português ficaria espantado
com tão grande petulância fascista.
Sem bigote era vê-la de mão erguida
apelando à reunião das tropas de elite
pois o inimigo estava em todos os
lados e era urgente (não o amor e a
partilha) mas a imposição da ORDEM.
No fim da palestra muito aborrecida
distribuíram-se correntes a todos os
participantes. Os mais sensatos não
aceitaram a oferta. Os idiotas Sim.
Cheira-me que Deus daqui a dias
dar-me -á mais um custoso trabalho
o de enterrar na terra suja mais um
terrível e imponente ditador de elite.
DANIEL FARIA NA FLUP
I
“Lembro-me sim como fosse hoje
ele sentado ali naquele canto com
aqueles olhos brilhantes
tinha sobre si uma espécie de aura
como se um serafim o estivesse a
guiar a sua mente”
dizia a Dr. Ana nas suas
aulas de Sintaxe.
“Era um miúdo tímido
às vezes participava na aula
notava-se uma candura nas suas
palavras como se estivessem já
imbuídas de Deus
Sempre disse que ia muito longe
tão longe como chegar a Deus
divinalmente”
dizia a Dr. Paula nas
suas aulas de Semântica.
“Notava-se uma sensibilidade outra
era um miúdo especial sempre vi nele
um especial dom para a escrita
eu fui a primeira a descobrir a sua
poesia que como bem sabemos
nos traz alegria ao lê-la”
dizia a Dr. Ilda nas suas aulas
de Noções do
sagrado
II
Sexta-feira 3 de Março. Não vejo
a hora das aulas terminarem
passo nos corredores e ninguém me vê
é como se andasse perdido pelos caminhos
do inferno com esses azulejos feios e essas
grades que mais parecem dentes afiados
de um dragão ou de uma cobra qualquer.
Cansado sento-me no banco do jardim
o mais isolado e peço a Deus a força
que hoje me falta. Talvez consiga ouvir
as minhas preces e me tire deste
antro de hipocrisia snobismo e outras
tão deselegantes palavras que sujam
o verdeiro espírito das letras.
Que me tires Deus deste inferno
onde já estou morto
onde ninguém me olha
nos olhos como vivo
mas sim como
um mero
número
de uma estatística
qualquer neste país
que dia para dia
desaprende e
ignora as
letras.
Assinado
Daniel
DECADÊNCIA & ATCHIM
Tiro atrás de tiro!
E nem a capinha da Jasmim
com bordada pintura inglesa
consegue trazer-lhe a juventude
de outrora. Pobre e perdida
criatura a Jasmim
entre então majestosas vozes.
Um espelho perfeito
do lago das rãs
de Aristófanes