O Cheiro do Mosto

Que triste o doce cheiro do mosto,

Quando tudo partiu e apenas restam

Os últimos dias vazios, o tédio e a espera

Mais verdadeira e certa, a do fim,

Aos poucos as luzes apagam-se,

Na mesa ninguém mais se espera,

Restam as estrelas com a sua ilusão de calor,

Que brilharão à geada com a mesma força,

Que triste o doce cheiro do mosto,

Lembra a necessidade da morte,

A importância da sesta para encurtar os dias.

 

Torre de Dona Chama

 

29.08.2021

3 poemas de Eeva Kilpi

Pai, ontem choveu

e hoje choveu ainda há pouco.

Contudo está quente.

Deve vir um bom Outono de cogumelos.

 

Pai, em breve dão as notícias da noite

e a sauna está pronta.

 

Pai, regressa ao meu sonho.

Dar-te-ei pão, queijo

a bagas,

irei buscar água à nascente.

 

Pai, deixa-me practicar ainda.

É estranho estar assim insensível.

 

 

 

Bem se realmente

queres que me confesse

que assim seja:

eu tive

trinta e seis amantes.

Sim, tens razão,

é demasiado.

Trinta e cinco teriam chegado.

Mas amor, o trigésimo sexto

és tu.

   

 

Amantes oferecem um ao outro reinos,

novas pátrias, continentes e raras línguas.

Quando se separam, os presentes permanecem-lhe,

são irreversíveis

E o seu amor permanece neles

como literatura, habilidade na língua,

poemas e histórias

que eles juntos compuseram

na língua de cada um.

Assim o amor torna o mundo mais amplo,

assim, mesmo no seu desaparecimento

dá à luz paz e compreensão.

Novos corações se abrem,

há um pouco mais a partilhar

com os amantes seguintes.

 

Eeva Kilpi

Des musiques plus intimes de Coralie Gourdon (voz e interpretação de Roberto Salazar)

Um amigo acabou de escrever uma tese de doutoramento sobre Joseph Brodsky, que eu acabei de ler nos últimos dias. Entre o material que ele discute há um passo de um ensaio chamado “Spoils of War”[1] em que Brodsky fala de um conjunto de postais que uma rapariga lhe ofereceu para o seu aniversário:

 

            They belonged, she said, to her grandmother, who went to Italy for her honeymoon shortly before World War I. There were twelve postcards, in sepia, on poor quality yellowish paper. The reason she gave them to me was that at about that time, I was full of two books by Henri de Regnier I’d just finished; both of them had for their setting Venice in winter: Venice thus was then on my lips…

 

A relação de Brodsky com os postais de Veneza é marcada por outros elementos que aparecem noutros ensaios, a nostalgia pelo ocidente, o exílio, o modo como a cultura – a chamada alta cultura e a cultura muito popular e perecível, como aquela a que pertencem postais – expande a nossa relação com o espaço e com o tempo.

Em Des Musiques Plus Intimes, uma curta-metragem de Coralie Gourdon gravada num pequeno apartamento nos arredores de Paris nos primeiros meses da pandemia, ninguém lê Brodsky e não há postais, mas há um poster de um quadro de Wifredo Lam e um mundo de objectos quotidianos, da frigideira onde o óleo ferve à chave deixada do lado de dentro da porta. A estes opõem-se por vezes planos mais amplos, a amplitude do mar algures no Mediterrâneo, a imensão das plantas que são afinal domésticas. O que é filmado faz-nos pensar no nosso próprio contexto, nas diferenças e nas semelhanças entre as paisagens e os gestos que estão debaixo dos nossos olhos. Há depois poemas, vários poemas, de vários tempos e de vários lugares, de Ovídio a Heiner Muller, de Holderlin a Kavafis, passando por Michaux e Pessoa, que são lidos nas suas línguas originais.

Des musiques plus intimes talvez exista um pouco, na sua forma de narrativa que é estruturada pelos sucessivos dias de uma semana, um poema visual sobre a relação de um leitor com a poesia e por extensão com as línguas em que elas são escritas. É um filme muito breve, mas faz várias coisas. Uma delas é fazer-nos pensar que a poesia nas várias línguas em que é escrita e em que a lemos é uma forma de nostalgia pelos lugares, por diferentes países. Por isso, no início um dos excertos citado é de um poema de Borges, “Al idioma alemán,” e termina-se com um poema de Kaváfis “Desde as Nove.” Des Musiques Plus Intimes é neste sentido um estudo da forma como as línguas e os poemas expandem o nosso mundo e a nossa leitura da realidade. Por outro lado, cada poema é uma espécie de curta-metragem dentro desta curta-metragem e, um pouco à maneira dos rapsodos na antiguidade, as narrativas vão-se adicionando umas às outras, criando nexos de sentido entre si, num diálogo que cria uma espécie de narrativa cumulativa que nos faz pensar em coisas como o que quer dizer solidão e sentido. As palavras de outros, lidas nas línguas de outros, parecem consolar-me, lemos a determinado ponto.

Qualquer coisa neste curto filme imita a solidão do pensamento, as formas como fazemos sentido da realidade nas narrativas dispersas que vamos vivendo, confinados ou não, num olhar muito atento sobre a profundidade da linguagem, enquanto forma onde ao mesmo tempo cabem o exílio e os gestos que nos aproximam dos outros. Há na voz de Roberto de Salazar, cujo rosto nunca é visto por inteiro, qualquer coisa do anonimato dos aedos cujos nomes ficaram esquecidos. Para além de uma encenação do modo como uma biblioteca expande um universo pessoal, e para lá do que o filme tem de tributo a uma biblioteca pessoal, há uma dramatização das formas como os poemas com que vivemos criam sentidos que agem sobre as nossas biografias (é a certas palavras que voltamos e não a outras). Os poemas que são lidos, no entanto, resistem a uma fixação coerente no espaço, no tempo, ou numa identidade. Dizem e repetem, “sou daqui e não sou.”

Se isolássemos um dos muitos diálogos que os poemas lidos criam entre si, podíamos traçar uma linha entre o excerto do poema de Borges mencionado acima a “Gato que brincas na rua” de Fernando Pessoa a “Desde as Nove” de Kavafis. Todos os poemas são de alguma forma sobre identidade. O poema de Borges, de onde sai o verso que dá título ao filme, é em certo sentido sobre a relação entre identidade e a língua que se fala, sobre essa língua enquanto destino:

 

           Mi destino es la lengua castellana,
El bronce de Francisco de Quevedo,
           Pero em la lenta noche caminhada,
           Me exaltan otras músicas más íntimas.

           

Mas, na sequência, é-nos dito que essa música mais íntima é a da nostalgia pela língua alemã. É interessante pensar que o filme resiste a citar a famosa máxima de Pessoa, análoga, pelo menos em aparência e se tomada fora de contexto de “A minha pátria é a língua portuguesa”, para se fixar num poema de Pessoa que é sobre a impossibilidade da fixação numa identidade definida, “Gato que brincas na rua.” A comparação que parece ser com o gato, e que nesse sentido vem com um eco do Mestre Caeiro, termina com uma constatação de que a identidade resiste a fixações, é elusiva, tem, como o bronze de Francisco de Quevedo, a sua própria profundidade. Brincando um pouco, de alguma forma, é um pouco como se o plano do filme em que se filma o gato na varanda, enroscado dentro do vaso, revelasse uma coisa que talvez tivesse sido sugerida a Pessoa e que nos tinha escapado das muitas vezes que lemos este poema, que o próprio poema parece querer contrariar no contraste que encena entre o narrador e o gato, que o lado elusivo da identidade é afinal análogo ao carácter imperscrutável dos gatos, ainda que estes tenham os seus instintos gerais e sintam só o que sentem.  

“Desde as Nove” de Kaváfis, é um dos últimos poemas a ser lido. Datado de 1917 é um poema que se move da descrição de coisas interiores, a casa, o candeeiro aceso, a memória do prazer físico do corpo, para o exterior, para centros de cidades, cafés, teatros. É sobre um sujeito na paisagem e sobre a passagem do tempo por ele, sobre a sua vertiginosa aceleração, que é quase impercetível. Lido no contexto desta curta-metragem, torna-se talvez não tanto um poema um pouco sobre a fixação da identidade nas coisas, quanto sobre a permanência do que é exterior em nós, sobre o que a efemeridade dessas trocas com o exterior aguça na nossa percepção até chegar ao ponto, que é como um aviso, em que nos fala da nossa própria efemeridade no tempo.

Talvez a última revelação seja, como se diz nos últimos versos que ouvimos, entrecortados com o som e as imagens da chuva, saber o que já sabemos, mas Des Musiques Plus Intimes talvez sugira que, como os poemas que vivem connosco, é preciso enumerar estas coisas com cuidado.  


[1] Coligido em On Grief and Reason. Essays, Penguin, London, 1995.

O ténis de Nick Kyrgios

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Hoje em dia, o ténis é o meu desporto favorito, pratico-o há mais de vinte anos, estou nos 60 primeiros nacionais de mais de 55 anos (não tenho feito muitos torneios e, uma crença consoladora, o jogo não respeita realmente o meu talento). Objetivo último: estar nos dez melhores nacionais dentro de cinco anos. Mas não é apenas porque o pratico que o amo, uma coisa não leva, necessariamente, à outra. A quantidade de harmonia que compõe o jogo (em jogadores como Roger Federer, mas também Novak Jokovic, David Gofin, Dominic Thiem, Denis Shapovalov, Gael Monfis…), a força dinâmica que projeta (Rafeal Nadal, Matteo Berrettini, Stefanos Tsitsipas, Milos Raonic...), ou o nível incrível de competitividade (os «big 3», claro, e Danil Medvedev, Andrey Rublev, Diego Schwartzan, Jannik Sinner…). Estas três dimensões (podia tê-las exemplificado com jogadores mais antigos, Peter Sampras, Andre Agassi, Roder Lever, Björn Borg, Mats Wilander…), que lhe são intrínsecas, aliadas a um respeito mútuo entre jogadores e jogadoras e uma certa elegância discursiva, com a exceção de uma franja da escola americana, fazem com que aprecie o ténis acima de todos os outros desportos. Não vou tão longe, é verdade, como David Foster Wallace, cujo artigo sobre a experiência religiosa que emana do jogo de Roger Feder assinala que o ténis soube atrair e desenvolver talentos divinos («Roger Federer as Religious Experience»). Mas estou perto de considerar que sem o ténis faltaria qualquer coisa de fundamental ao desporto, e escasseando no desporto a vida sairia diminuída.

Além disso, quando temos a disponibilidade para ler comentários de jornalistas de regiões com uma tradição forte no ténis, encontrámos análises e comentários brilhantes, como se o ténis estimulasse o pensamento e o estilo discursivo, obrigasse a uma elevação do logos para estar à altura do que se quer comentar. Foi isso que, mais uma vez, encontrei num artigo de Rémi Bourrières, para o Eurospor.fr, sobre Nick Kyrgios. Kyrgios é o mais estranho dos grandes jogadores atuais, simultaneamente conectado e desconectado com o ténis, capaz dos gestos mais incríveis e dos erros mais infantis (e no ténis, como diz Toni Nadal, uma jogada fabulosa vale tanto, quantitativamente, como um erro não forçado), competitivo e indigente, analítico e lírico, coerente e contraditório. O que o artigo de Rémi, que tentarei traduzir já a seguir (com margem para variar, o jargão desportivo é bastante idiomático), nos diz é que, finalmente, Kyrgios não faz mais do que ser o que é, vindo, aliás, a tornar-se cada vez mais igual a si. E isto, além de ter interesse para o ténis, leva-me a recordar a célebre máxima de Píndaro, retomada por Nietzsche: «Torna-te o que és!».

O texto é de sete de julho, está, pois, um pouco desatualizado. Mas creio que aguenta estar fora do tempo dos factos, e este é um bom critério para avaliar a sua qualidade.

«Ainda que se unam pelo talento e a precocidade, parece ser difícil haver mais oposição do que a que separa Nick Kyrgios e Felix Auger-Aliassime, que se enfrentarão este sábado [9 julho] num dos embates mais aguardados da terceira ronda de Wimbledon [Kyrgios desistiu quando a partida estava empatada a um sete].

Entre o jovem canadiano, estudioso e um pouco tenso, que parece colocar todas as possibilidades do seu lado, mas que ainda não ganhou qualquer final no circuito, e o seu opositor australiano, diletante e festivo, capaz de arrasar em cinco setes um jogar tão em forma como Ugo Humbert, sem antes ter jogado qualquer encontro há cinco meses (e não dando a impressão de se empenhar muito nos treinos), julgaríamos ver o aluno comprometido da primeira fila e o cábula desatento do fundo da sala que vão fazer o mesmo exame.

Qual dos dois terá, no fim de contas, a melhor carreira, se nos pudermos pôr de acordo sobre o que significa uma boa carreira? O futuro o dirá. Mas se há um que o deseja arduamente, podemos apostar que é Auger-Aliassime. Quanto a Kyrgios, há muito que deixou passar a mensagem de que nunca consentirá efetuar os sacrifícios necessários à vida de um jogador de topo.

A sua atitude na pandemia, durante a qual preferiu ficar em casa em vez de defrontar os constrangimentos sanitários para uma hipotética caça aos pontos (como o fez a sua compatriota Ashleigh Barty), não alimentou qualquer equívoco: em Kyrgios, o bem-estar pessoal estará sempre à frente das suas ambições desportivas.

No começo, aureolado pelas grandes esperanças que provocou nos juniores e depois na sua chegada tonitruante ao circuito, um quarto de final em Wimbledon com 19 anos, em 2014 — nunca conseguiu fazer melhor —, Kyrgios viu-se, também ele, provavelmente, como cabeça de cartaz. Mas só recolheu desilusões, uma pressão devastadora que não conseguiu suportar, e, no final, um certo mal-estar, que o vimos transportar de torneio em torneio, entre partidas oferecidas, derrapagens incontroladas e uma atitude por vezes arrogante. Kyrgios estava, muito simplesmente, infeliz.

Depois, passo a passo, o australiano corrigiu o tiro, reviu as suas próprias expetativas sobre o circuito, de que não gosta nem dos códigos, nem das rotinas, nem do espírito muito básico. Pouco a pouco encontrou o seu lugar: a do batedor imprevisível, rei do golpe matreiro, intermitente do espetáculo, de acordo com as suas palavras. Para tal é preciso, evidentemente, ser genial, confiante, poderoso e ter um carácter meio cabotino. Na realidade, talvez só haja no mundo uma pessoa (e não mais) capaz de jogar tão bem tendo-se preparado tão pouco [o autor deve querer referir-se a Roger Federer]. E é nisto que Kyrgios é único. Depois do sucesso contra Mager [Gianluca Mager, tenista italiano], o nativo de Canberra voltou a martelar a sua posição: sente-se bem com a ideia de nunca vir a ganhar um Grand Chelem, se esse for o seu destino. De qualquer forma, fixou-se outro objetivo: fazer soprar um vento de frescura no ténis, quebrando os códigos e comunicando à sua maneira, simultaneamente provocadora e sem filtros, tentando conquistar novos fans. E isto, é preciso reconhecê-lo, fá-lo muito bem, bastante melhor do que qualquer inovação apressada.

Não nos enganemos: se Kyrgios escolheu a via do entretenimento, foi antes de mais porque, consciente ou inconscientemente, não suportou a pressão inerente às mais elevadas ambições. Podemos lamentar-nos por ele, lamentar que uma tal pedra preciosa não tenha ainda um ou vários títulos do Grand Chelem no seu ativo. Mas, pelo menos, soube encontrar o seu lugar no circuito, ao contrário de tantos outros talentos desperdiçados, perdidos na engrenagem do sport-business.

Atualmente, em perfeita congruência entre o que é e a maneira como joga, Nick Kyrgios tornou-se, incontestavelmente, muito útil para a causa de uma disciplina que diz não amar. A sua postura reenvia-nos para uma questão existencial do desporto moderno, sobretudo quando é tão mediatizado como o ténis: é possível estar no topo sem ser uma partícula aborrecida, constrangido por atos repetitivos, falhas sistematicamente dissimuladas e asperezas continuamente aplanadas? Nick Kyrgios, quanto a ele, escolheu ser ele próprio, indomesticável e selvagem. Continuará assim, quer venha, ou não, a glória bater-lhe à porta.»