o “canto um” de “L'été langue morte” de Bernard Nöel

tradução a partir de L’été langue morte (1982), presente no volume La chute des temps, Bernard Nöel, Éditions Gallimard (1993)

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o mundo não acabou
e quando o vento se levanta
o nosso rosto é diferente
o amor desfaz o amor
para se tornar mais do que ele mesmo
quem vai morrer
sabe que a beleza é inexorável
eu observo o teu sopro
tu evaporas-te
o obscuro do tempo é uma unha
atrás do olho
seria preciso segurar a língua
até ao começo do mundo
a luz é terrífica
o mar não cessa
tu procuras um ponto por entre o dia
o presente é sem objectivo
sem contorno
e o cume das pedras
não conhece a sua sombra
aquilo que me pára
sou só eu
a minha cabeça demasiado numerosa
um sentido
uma dúvida
não basta ver
o olhar fez cair de mim
todo o visível
a língua lança em vão uma ponte
para reparar
cada sílaba é o eco
travesti de um adeus
pétala de ar
quem és tu
tu faltas-me no teu nome
ah tornar-se o antigo de si mesmo
é falar
o sopro faz no espaço
menos que um reflexo sobre a água
esta noite
a música é uma ilha sobre a ilha
e a sua margem
um anel de olhos
pousado
todo o centro é vazio
mas o nada onde se apagam os passos
come o nosso chumbo
o osso areja
e eis o Outro
o delegado do desejo
quem dança
o seu passo escreve sem traço
um instante
uma medida
onde o perdido carrega o que vem
o tempo deita-se sob o tempo
de repente
o vazio do anel
torna-se o vazio do aberto
o O
de um grito que nos atira
pelo ar
a arte
não é eficaz
o desejo também não
deixemos a eficácia para a roda
e digam-me onde é o seu começo
os caminhos não fazem sinal
eles são caminhos
simplesmente
a língua desaparece sob as pedras
estar aqui é suficiente
no entanto
quem conhece o instante
nós fugimos ao pensamento no pensamento
lembras-te
ele era esse monte de cabelos
sem boca
apenas a tua sombra o cobria
não há sujeito
não há profundidade
apenas o esquecimento
onde vamos para pecar
e por vezes é tão bonito
aqui e ali brincam juntos
o céu esconde a mesma coisa
que o mar
toda a forma diz NÃO ao vazio
mas
o intervalo fazes tu
eh que posso eu
se o azul não é tão belo sobre os teus lábios
como ao longe
nós procuramos por todo o lado o em lugar nenhum
de uma outra terra
o perecível
está nos nossos olhos
a luz verte-se para fora
é o suor das coisas
escuta
eu não tenho nada sobre a língua
mas digo
estar aqui é muito
e pela primeira vez
ouvimos o ar amarrotado
sob a asa do pássaro
uma andorinha
o único é sem limite
eu não arrumo na minha cabeça
o uma vez
esta vez perde-se no ter sido
e uma vez resta uma vez
como o vento sobre a mão
escuta
ninguém imagina ser
senão nós
e isso faz de nós a besta
de um labirinto de ar
onde cada um só se vigia a si mesmo
entre o dito que morre e o não dito
que vai morrer
a boca é o remetente
do exprimível
a morte
perde o fôlego
e a vida
dança
alto
depois nada
vírgula sexual
palavras em demasia
acreditámos no poder da palavra
e a terra ferveu
onde está a nossa casa
se a minha língua apaga todas as portas
as palavras imitam um segredo
que sacodem
eu escrevo por amor dos olhos
que são o meu conteúdo
rosto rosto
não há candeeiros suficientes
e livros demais
mas o mar está aqui
imóvel
e nessa imobilidade
a linguagem reconhece a sua promessa
olha
a imobilidade chama o vento
o estado de angústia está ligado
à gota em movimento
assim vai a palavra
na ilusão que se desfaz
nada será seguro
a própria ideia abisma-se
na ideia
que história
entre ti e o mundo
que palavra-a-palavra
contra natura
os olhos da minha amiga estão na terra
aquela que me dizia Canta
agora
escrevo
cada linha come
o que a terra já comeu
miséria
miséria
eis que vem a mentira
a quem se dirigir
a quê                                   
uma noite
nós fomos
eu sobre ti
e a chuva sobre o telhado
sim
ninguém fala com ninguém
mas as nossas línguas por vezes
são as de duas bestas
que brincam e se entendem     
sim
o que é que é possível
o desejo
a usura do desejo pelo desejo
e no entanto
tu fazes parte de mim
como o sopro faz parte
da boca que abandona
eu queria
como viver
eu queria
eu queria examinar em mim
aquilo que precisa de querer
e aí os meus lábios procurariam
a fenda
e tu dirias
mostra-me o rosto
e haveria
aqui mesmo
o face a face
de mim e do meu esquecimento
mas quê
o que é que está em jogo
escrever
pousar aqui
uma palavra-buraco
pousar a minha boca
e que este O
seja o aberto
de uma bela loucura
agora 
agora
agora

A Torção dos Sentidos - Recensão

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Louve-se o aparecimento de um livro de filosofia (num sentido amplo, A Torção dos Sentidos segue a linha ensaística inaugurada por Montaigne), exercício de pensamento que nos habituamos a menosprezar desde que, há muito, em Portugal, lhe preferimos o lirismo ou o discurso comum. Não somos uma cultura filosófica, nunca o fomos, nunca o seremos. Uma fatalidade que construímos e com a qual nos damos bem.

Os que escaparam ao destino da indigência intelectual encontrarão neste livro bons estímulos para pensar o uso da tecnologia digital, uma crítica às sociedades capitalistas e uma fenomenologia, entrelaçada com uma hermenêutica, do amor, viagem, comunidade, estudo e arte. Se é verdade que não aderimos totalmente às teses do autor (sobretudo porque nos parece que há demasiados tipos de capitalismo para que se continue a pensá-lo uniformemente e porque a questão da desigualdade social deve ser, em primeiro lugar, abordada a partir da situação privilegiada, ou não, em que nos encontramos, uma ética antes de uma epistemologia), reconhecemos a importância do seu labor e confessamos que sentimos prazer ao lê-lo.

O capítulo inicial é sobre o que pode a filosofia perante a situação pandémica originada pelo SARS-CoV-2, um questionamento que terá várias respostas, todas, contudo, assentes num único eixo de sentido: poder de interpretar e poder de transformar. Isto segue, claro está, a inversão realizada por Marx: mais vale transformar do que interpretar, ou, no mínimo, só devemos interpretar se com isso quisermos e pudermos transformar (uma filosofia política que ocasionou, mesmo que numa versão bastarda, a civilização soviética, e agora, ainda com mais enxertos, a chinesa). Que na origem tinha uma atmosfera messiânica do reino dos fins, neste caso seria, mas o autor não vai tão longe, uma sociedade de iguais inconfundivelmente feliz. Assim, «a hipótese filosófica visa não a máxima adequação à realidade mas a máxima tensão entre a aproximação interpretativa e o distanciamento transformador.» (p. 21)

É, pois, necessário ler esta obra «com a pulga atrás da orelha» (expressão do autor), João Pedro Cachopo quer, pelo menos, transformar, com a ajuda de uma escolha calculada de comentadores (Zizek, Badiou, Byung-Chul Han, Agambem, Nancy, Rancière, Naomi Klein, Walter Benjamin…), a nossa perceção da realidade (mistura de subjetividade e objetividade, um pouco à maneira da «situação» sartriana), aderindo à sua cosmovisão. Será, então, um livro emancipador? Sim, se o lermos com a «pulga atrás da orelha».

Ora, o que Cachopo vai interpretar (para transformar) não é a pandemia em si, «as transformações que a pandemia revelou e acelerou já estavam em curso», mas as formas de aproximação e distanciamento (no amor, viagem, estudo, comunidade e arte) na era digital (evitando simultaneamente a desconfiança catastrofista e o entusiasmo ingénuo, a tecnofobia e a tecnofilia, as linhas do intelectual «apocalíptico» e, inversamente, do «integrado»). É por isso que a pandemia serve somente de lente de aumento para interpretar melhor, intempestivamente (não é a verdade enquanto adequatio que se procura), a realidade, descobrir as linhas de fuga que conduzem a previsíveis transformações, alteração «radical de os nossos modos de vida, de um modo consequente em termos éticos, políticos e ambientais». (p. 12)

Transformar matricialmente o quê? A era capitalista (neste sentido, o livro é neo-marxista), algo que alguns autores vislumbraram nos efeitos da pandemia, sobretudo com o decréscimo da produção industrial e a mudança das relações laborais. Em boa verdade, não se conseguiu «arrepiar caminho», a matriz capitalista permaneceu inalterada (não se muda uma civilização — conjunto de práticas e valores — de um dia para o outro). Mas a pandemia teve a virtude (política mais do que epistemológica) de mostrar à saciedade que «não estamos no mesmo barco» (Cachopo parafraseia Sloterdijk, invertendo a sua tese)[1], tornou ainda mais «patente as desigualdades que estrangulam o nosso planeta.» (p. 34)

Mas não sendo um livro de filosofia política, pelo menos diretamente, o autor vai pensar as transformações no «modo como sentimos, pensamos e agimos» (p. 36), tanto mais que isto, e aqui está a veia política indireta, sobrevém e influi nas transformações do «mundo» (não é indiferente em filosofia usarem-se os conceitos de mundo e de realidade, aquele é bem menos fenoménico do que este). Um mundo construído na «gritante fragilidade da engrenagem sobre a qual o capitalismo global erige o seu castelo de cartas.» (p. 39) Estamos, pois, no limiar de uma revolução, ou melhor, da revolução. Preparemos, pois, com a ajuda, entre outros, da Torção dos Sentidos, o nosso pensar, sentir e agir para o que aí vem.

E o que aí vem conterá estes últimos anos de remediação digital, mais visível durante a pandemia. A ação do digital herda a «reprodutibilidade técnica que revolucionou a experiência moderna na transição entre os séculos xix e xx» (p. 43). O digital, por exemplo, promete a «aproximação do distante», bem como uma «equalização das distâncias». Mas ao lado de promessas exequíveis e emancipadoras, há outras tantas que são de manipulação e exploração. É por isso, retomando uma ideia de Umberto Eco, que Cachopo distingue o intelectual integrado do apocalíptico, para, no final, os recusar em bloco. Acoplado às suas virtualidades, no primeiro uma «ingenuidade e leniência» (p. 58) desenvolve a ideia estéril, e filosoficamente imprecisa, de vivermos no melhor dos mundos possíveis; a partir do segundo, emerge um reacionarismo que não deixa avançar o mundo (revolução e progresso vão a par, pelo menos no discurso).

Mantém-se, pois, a pergunta: como «combater a revolução digital em defesa da experiência humana» (p. 66)? A resposta geral é a de que nos devemos orientar «não para uma rejeição genérica da tecnologia digital, mas para o discernimento dos seus usos, das suas potencialidades e dos seus perigos.» (p. 67) Salomónico. Mas, então, onde cabe a revolução? Talvez, finalmente, ela não passe de um bordão performativo, capaz de alimentar uma boa consciência que se resignou sem repousar, resignação semi-ativa.

Fiquemos, então, com uma reforma do sentido do amor, da viagem, do estudo, da comunidade e da arte. Estas parcelas do mundo ganham novos sentidos quando investidas pelo digital. Isto, diz Cachopo, sem esgotar significados, pretende somente «sugerir algumas — precárias, genuinamente indecisas — pistas de reflexão.» (p. 70) Não sabemos se esta modéstia esconde ou revela.

O amor, jogo de distância e aproximação, mas no qual o contacto entre corpos importa acima de tudo, não ganhará muito com a remediação digital, tanto mais que no namoro telemático não é possível, como muito bem viu Byung-Chul Han, ficar «olhos nos olhos», num dispositivo ou olhamos para a câmara ou para os olhos do outro, a simetria do olhar, tão decisiva, nunca acontece.

«Viajar é conhecer o mundo no contacto com ele», por isso, com o slogan «fiquem em casa», a viagem foi tão ameaçada pela pandemia. Sem deixar de ser crítico relativamente à massificação turística (quem não é?), o autor defende a necessidade de se viajar, porque só as viagens permitem certas experiências multissensoriais. Ao mesmo tempo, conhece-se o impacto ambiental, e social, negativo das viagens. Portanto, o «desafio não é deixar de viajar, mas viajar menos e melhor» (p. 77). E aqui também não é possível uma qualquer remediação digital significativa.

Sobre o estudo, recusando «elucubrações de cunho nostálgico e conservador.» (p. 80) — uma crítica a Giorgio Agamben —, concede que houve alguma remediação digital durante o enclausuramento pandémico. Contudo, nada que invertesse o novo statu quo universitário, que mais do que emancipar pelo pensamento, profissionaliza o pensamento, sobretudo o crítico. Além disso, acentuou o colapso da «hierarquia entre mestre e discípulo» (p. 82), sem que o autor nos diga que benefícios se retiravam dessa hierarquia, somos, até, tentados a ver aqui um pequeno lapso, tendo presente a críticas que faz ao desigualitarismo. Sabemos bem que a igualdade não significa ausência de hierarquia, ainda assim, sem que Cachopo nos queira explicar a sua ideia, ficamos com a «pulga atrás da orelha». Mas talvez o mais grave, continua o autor, tenha sido o desaparecimento da «vida em comum» dos estudantes, porque o «estudo é feito de encontros, atritos e colisões entre pessoas, objetos, experiências, ideias e palavras.» (Ibidem).

Na comunidade, esfrangalhada por décadas de individualismo e arrivismo, «foi o receio de não estar a salvo que motivou a comoção global, não a solidariedade.» (p. 87) Tomando de empréstimo uma ideia de Byung-Chul Han, João Pedro Cachopo vê o digital transformar o «rebanho ou a matilha» num «enxame»)[2] Assim, a remediação digital não criou qualquer novo tipo de comunidade, mas enxames, ajuntamentos de partículas pontualmente coincidentes que nunca chegam a formar um «nós». São, assim, um paliativo inconsequente para o isolamento. Daí que, com Catherine Malabou, alguns tenham, retomando o princípio rousseauniano (Les Confessions) de se retirarem para dentro deles, de combater o isolamento (resultado de não pertencerem ao enxame) com a solidão, ponto de partida para, paradoxalmente, se encontrar um «nós».

Finalmente, na arte a «verdade alternativa não é entre o acolhimento e a rejeição de novos media, mas entre usos mais e menos criativos, mais e menos ousados, mais e menos desviantes das tecnologias — incluindo as tecnologias de remediação — na prática das artes.» (p. 97) O autor justifica esta posição com exemplos de obras realizadas e difundidas telematicamente durante a pandemia.

No epílogo, do livro [e do mundo?], questiona-se a possibilidade de um «nós universal» (p. 107), capaz de renovar as «sociedades estranguladas por desigualdades». (ibidem) Mesmo sendo «universal», João Pedro Cachopo diz que o «livro prescinde de determinar a priori um “nós”».[3] (ibidem) Prescinde, porquê? Não quer ou julga ser impossível? Haverá ainda disponibilidade filosófica para se propor uma universalidade, não terá essa extravagância sido definitivamente revogada no final século xviii? Trata-se de filosofia ou de política? Seria esse nós, talvez a «vontade geral» rousseauniana, a traçar uma terceira via entre o pessimismo e o otimismo, capaz de encarar e intervir no mundo. Cuidando de não embarcar em antíteses incapazes de culminar numa dialética da síntese, o autor demarca-se de um «antiglobalismo» que parece «contribuir para o que pretende combater: o egoísmo nacional-capitalista.» (p. 109) Portanto, a passagem do «eu» para o «nós» só poderá ser realizada, bem realizada, com «experiências de estudo, arte, viagem, amor e comunidade.» (ibidem) Numa boa aliança entre «tecnologia e ecologia». (ibidem)

Desta forma, deixamos que se insinue um pequeno Pangloss e percebemos por que razão foi tão criticado o pessimismo, social e antropológico, sartriano (o «homem é uma paixão inútil» de O Ser e o Nada), pelo menos o do «primeiro» Sartre. A lógica do happy end, na economia política e emocional, continua a recompensar mais.

[1] Peter Sloterdijk, No Mesmo Barco. Ensaio Sobre Hiperpolítica, Lisboa, Edições Século XXI.

[2] Byung-Chul Han, No Enxame: Reflexões sobre o Digital, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água.

[3] Pouco depois coloca-se novamente no «verdadeiro» escrevendo que se trata de «um “nós” que, mais do que pressuposto, pode e deve ser elaborado.» (p. 108)

Os sapatos

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Os sapatos são quase uma colecção de boas e más ideias. São também a memória de por onde andaram, a interrogação acerca de onde ainda podem ir. Reparo que os meus sapatos são sobretudo de ténis. Não sei porquê. Gosto de sapatos de ténis e gosto de sapatos que, não sendo sapatos de ténis, se parecem com sapatos de ténis. Qualquer coisa nos sapatos de ténis é sobre conforto e desadequação, imaturidade e perpétuo movimento.

Pergunto-me com que sapatos se terá apanhado Dante naquele bosque no meio do caminho da vida. Pergunto-me isto porque um dia na apresentação de um livro ou num colóquio qualquer, lá pelos inícios da segunda juventude, fiquei sentada ao lado do Vasco Graça Moura e reparei que ele estava a usar um par de ténis brancos (eram de lona ou não? não me lembro). Acho que foi isso que materializou para mim a noção de que os ténis podiam ser objectos de intelectuais.

Tenho dois pares de sapatos literários favoritos, mas não são talvez os que se imagina. Um desses pares é o que é mencionado no início de Conversazione in Sicilia de Elio Vittorini, um livro sobre anos violentos em Itália, quando os fascistas tomaram o poder. Lemos, nas primeiras páginas, que o narrador não tinha vontade de procurar ou de falar com ninguém, que se esquecia da vida e que os seus sapatos se enchiam de água. Penso que os sapatos a encherem-se de água são símbolo do desconforto, da pesada incerteza – abstractos furores, como lhe chama o narrador –, que paira sobre o princípio do romance e que traduzem a parálise de um tempo de medo, sem direcção aparente. São talvez a prefiguração de um afogamento.

Os outros sapatos literários que admiro e me comovem são também italianos e vagamente do mesmo período. São mencionados no ensaio “Le Scarpe Rotte” de Natalia Ginzburg. Esse texto foi escrito em Roma, no Outono de 1945, e está coligido em Le Picolle Virtù. Eis o primeiro parágrafo:

Io ho le scarpe rotte e l'amica con la quale vivo in questo momento ha le scarpe rotte anche lei. Stando insieme parliamo spesso di scarpe. Se le parlo del tempo in cui sarò una vecchia scrittrice famosa, lei subito mi chiede: «Che scarpe avrai?» Allora le dico che avrò delle scarpe di camoscio verde, con una gran fibbia d'oro da un lato. 

Este é um texto típico dos temas e do estilo de Natalia Ginzburg. As personagens são ao mesmo tempo melancólicas e divertidas (como ela própria dizia que as suas personagens eram sempre). Fala-se de sapatos para falar de hábitos, de família (os sapatos de família são sólidos e sãos), para caracterizar a escassez e a pobreza geradas pela guerra, para falar de cuidado e de amizade. Na descrição da degradação e persistência dos sapatos que as duas mulheres usam há uma metáfora de sobrevivência, nem assim tão bem escondida, que no fim do ensaio se concretiza na forma como Ginzburg acaba a imaginar que tipo de sapatos os filhos dela hão-de usar.

Este tipo de descrição, que se demora nos pormenores exteriores e que apenas indirectamente se torna caracterização psicológica, é outra marca do estilo de Ginzburg. As suas descrições mantêm sempre um afastamento objectivo, uma distância onde se vão acumulando e juntando coisas até que incisivamente se revela algum pormenor agudo e inescapável sobre aquilo que ela está a descrever, qualquer coisa que emerge como uma verdade necessária – isto vê-se, por exemplo, na descrição minuciosa das várias expressões do léxico com que o pai fala com os filhos em Léxico Familiar ou nas digressões existencialistas com que Cenzo Rena descreve as outras personagens em Todos os Nossos Ontens.

Esta técnica de acumulação às vezes passa a método para nos deixar entender uma personagem vista de todos os ângulos possíveis. Isto acontece, por exemplo, com Alessandro Manzoni, em A Família Manzoni. O escritor de I Promessi Sposi é uma figura tão imensa que Natalia Ginzburg só o consegue abarcar através da descrição de todas as personagens que o rodearam: pai, mãe, filhos, netos, genros,... e mesmo assim temos a impressão que nunca chegamos a entender Alessandro Manzoni.

Esta caracterização objectiva e cumulativa, tensa, aparece de um modo muito comovente na descrição de Cesare Pavese (de quem ela contava que uma vez ele lhe disse: “pára de ter filhos e põe-te mas é a escrever”) e do marido, Gabriele Baldini, nos ensaios “Rittrato d’un amico” e “Lui e Io,” respectivamente, ambos coligidos em Le Picolle Virtù.

Sobre Gabriele Baldini, em “Lui e Io,” Natalia Ginzburg nota que ele raramente comprava sapatos, embora tivesse um número gigante de camisas e gravatas. Diverte-me esta observação minuciosa, quase tanto quanto outra, que aparece noutro ensaio no mesmo livro, sobre Inglaterra, em que ela diz que os sapatos que se veem nas montras das sapatarias londrinas fazem mal aos pés só de olharmos para eles. Tento lembrar-me dos primeiros sapatos que comprei em Inglaterra e se eram desconfortáveis, mas do que me lembro melhor nesse ensaio é daquela frase, de uma certeza que me perturba, em que Natalia Ginzburg escreve que Inglaterra é um país que não muda as pessoas, que elas se tornam mais o que são, ou permanecem as mesmas. Penso que isto não é verdade, ou que entra noutra discussão, que me aborrece um pouco, sobre se alguém pode mudar de facto ou não. Eu creio que sim e fica implícito que Natalia Ginzburg também, exceptuando que o que as mudaria não seria Inglaterra.

Suspeito que os primeiros sapatos que comprei em Inglaterra não eram nada desconfortáveis, porque penso que talvez tenham sido um par de Camper que duraram pouco, ou menos do que eu tinha esperado, arruinados pela chuva inglesa e por umas intermináveis caminhadas numa Paris igualmente chuvosa. Não sei que sapatos lhes sucederam. Não sei se foi aí que entraram em cena umas botas de couro, com ar de sapatilhas, leves, aparentemente não muito resistentes, fabricadas no Porto, mas compradas algures numa tarde de dilúvio em Londres. Não sei bem, mas quase que duraram para sempre, e entristece-me que estejam agora muito arruinadas. Houve uma vez em que um sapateiro inglês as declarou um caso perdido, numa altura em que quis substituir-lhes as solas demasiado gastas em vez de as deitar fora. No entanto, um sapateiro megalomaníaco de Lisboa tornou a trazê-las à vida.

As ideias erradas que tenho sobre a capacidade de resistência dos sapatos aos dilúvios e às longas caminhadas dão sinal da má-fé que mantenho perante a aceitação dos limites naturais das coisas, e talvez denunciem um certo espírito lírico, ao mesmo tempo melancólico e cómico, quanto às possibilidades deixadas em aberto por todos os caminhos que serão percorridos por sapatos que ainda estão por vir.

 

Oxford, 11 de Outubro de 2021

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.

"Crocodilo, Dundee" e "Itália, vulcão", de Gabriela Gomes

CROCODILO, DUNDEE

já estamos demasiado velhos para fazer os mochilões
e mesmo assim andamos como crocodilos pelos
mercados de marrakech
olhando roupas de odalisca
que é o que pensamos que se vende em marrakech
e também temperos coloridos e açafrão

também costumamos pensar que se formos à índia agora
já disfarçados de outro animal
podemos ser como uma cobra ou como a vaquinha maribela
se fôssemos agora à índia
nos desapontaríamos ao perceber que o curry não existe

às vezes sonho que uso os quatro membros
como o meu meio de transporte
na maioria das vezes corro como uma chita
na savana da namíbia
mas hoje sonhei que me rastejava pelo mercado de fez
como um crocodilo gordo e pesado
procurando pedras preciosas

estamos demasiado velhos para fazer os mochilões
mas mesmo assim conseguimos matar as pessoas
com os pesos de nossos corpos


ITÁLIA, VULCÃO

andávamos por ruas tortas e parávamos sempre no mesmo lugar

a itália presente aqui
presente aí
enquanto eu
andava pela via dei poeti por entre as paredes
todas elas amarelas todas elas laranjas todas elas cor de tijolo tijolo
todos eles um pedaço de telha que é um pedaço de casa e você
alla nostra casa
chegando na sua própria cidade invisível,

você

você que precisa visitar, construir telha a telha a sua cidade
invisível e torná-la visível a itália na língua na cor da telha a itália
na língua na massa enrolada na ponta do garfo do molho no pão
(do pão no molho)
a itália
até

você

enquanto você chegava nessa itália
eu longe
caminhava nas mesmas ruas da itália entrava nas cantinas e ouvia
ciao bella arrivederci buongiorno e a língua que grita é a língua
me rasga e me rompe num início de primavera

é a língua que me queima e arde
e me faz

a língua

me faz querer servir bolonhesas dobrar tortellinis cortar na ponta
da faca com a mesma ponta do dedo cortar os pequenos pedaços
dobrar os ravioles miúdos ralar o queijo e unir no molho a
língua que fala e a língua que come a pequena cidade da pequena
(grande) nonna que fala alto que grita a língua que rasga em mim
e eu que chegava à casa da nonna e decidia como quem foge de
ti que é para cá que venho e que sem saber você por aí construía
com a mesma língua que enrola que rasga que grita a sua nova
cidade a cidade invisível mais vermelha que já vi
e talvez bolonha seja mesmo a cidade vermelha da história de
gerião e herácles
e talvez seja mesmo a cidade invisível mais vermelha que já vi

todas nós chegaremos em algum momento na itália
nem que seja pelo vulcão

Sísifo para lá da montanha

Mito de Sísifo.jpg

Em 1942, Camus publica o Mito de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe). Fascina-o sobretudo a descida da montanha, depois de Sísifo ter sido vencido, uma e outra vez, perto de chegar com o rochedo ao topo (que provavelmente não existe). Foi esse o castigo dos deuses por tê-los desafiado. Daí que no final do ensaio diga a célebre, e celebrada, frase: «É preciso imaginar Sísifo feliz» (Il faut imaginer Sisyphe heureux). Porque no retorno incessante ao ponto de partida, Sísifo torna-se «superior ao seu destino». «Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa». Assumindo o seu destino, a sua fatalidade, Sísifo torna-se superior aos deuses, a própria luta chega para preencher o coração do homem, trazendo, paradoxalmente, sentido ao absurdo da existência. O absurdo é um dos pilares do existencialismo, representado por Camus, Sartre, Ionesco, Beckett, Genet e, entre outros, embora à sua maneira, Vergílio Ferreira.

Este último, por enquanto esquecido, escreve: «Sísifo não é ridículo, nem cobarde, nem estúpido, porque é grande na sua miséria, porque é corajoso em não desistir, porque é clarividente e sabe que o alto da montanha fica sempre para lá do alto da montanha.» («Da Fenomenologia a Sartre») Portanto, não é tanto o reconhecimento de uma fatalidade (universal talvez, encontramos facilmente o eterno retorno nas nossas vidas) que mitiga o absurdo da existência, mas um pensar que nos eleva acima do destino. O pensar pára [insisto no acento] o movimento, exclui-nos do movimento, permite-nos ver ao mesmo tempo a nossa fatalidade e para lá dela. E quando, em Alegria Breve, Vergílio escreve, dando voz a Ema (é relevante que seja uma personagem feminina), que «Todos os caminhos são bons, desde que sejam caminhos», elucida-nos sobre sermos lançados para caminhos que não desenhamos ou escolhemos, mas que depois tornamos caminhos nossos ao vermos para lá deles.

Noutros termos: ninguém se safa da vidinha, cheia de eternos retornos, mas se ao lamento acrescentarmos «há vida na vidinha» (uma forma de estabelecermos um «para lá», ou, com Vergílio, «A vida está nel[a] como a brasa sob as cinzas» — «Da fenomenologia a Sartre»), então viveremos numa tragédia decente, prontos para múltiplas felicidades e infelicidades.