Os gatos de Atenas

Quando chego a Atenas dou a ouvir a um amigo uma canção que Chico Buarque escreveu em 1976, “As mulheres de Atenas.” Traduzo-lhe a letra às três pancadas, por baixo da voz de Chico, à pressa. Ele escuta fascinado. Comentamos que alguns versos parecem datados, a começar pelos primeiros: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas,” mas até isso é complicado e discutível. As mulheres de Atenas na canção de Chico são um exemplo de estoicismo, força, paciência, mas os seus homens, à medida que a canção os descreve, são o contraponto, o exacto oposto, bebem em excesso, e ocupam-se da guerra, e deixam-nas à espera enquanto se vão encontrar com outras mulheres, e elas parecem aceitar tudo isso com um orgulho indiferente. O seu orgulho complica ou não a letra? E que mulheres de Atenas são estas? De quando? Provavelmente as clássicas, mas podiam facilmente ser as de hoje, ou as da história da Grécia recente, aquelas mulheres que bordam em longas quarentenas, enquanto os homens desaparecem para ir para a guerra. Contra quem? Não sabemos. Todas as personagens nesta canção são personagens-tipo. De Chico Buarque passo para Elis Regina e para aquela canção em que ela balança vulnerabilidade, dança e desequilíbrio, “Dois p’ra, dois p’ra lá.” Lembro-me enquanto tocamos a canção que o meu amigo tem as portas das varandas do seu apartamento todas abertas, e que todo o bairro estará agora a sofrer esta minha introdução intempestiva e desordenada a alguns cantores brasileiros. Chegamos a Chico Buarque não sei muito bem como, mas a última canção que me lembro de estar a ouvir antes de entrar no avião era “Make you feel my love.” O melhor verso dessa canção, digo eu, é aquele que introduz um desequilíbrio em tudo o que Bob Dylan diz, é o último desta estrofe:

The storms are raging on the rolling sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet 

Estes versos podem ser auto-referenciais (rolling sea faz pensar em “Like a rolling stone,” “on the highway of regret,” lembra “Highway 61 Revisited” and “the winds of change,” talvez atropele “Blowing in the wind” em “The times they are a-changing”), mas não há como escapar, no verso “you ain’t seen nothing like me yet,” ao facto de que é um verso impregnado por uma auto-confiança que é contradita pelos três versos anteriores, mas é também um verso, equilibrado como está numa teia de referências a outras canções de Dylan, sobre auto-emulação, sobre os poderes de reinvenção de um poeta inesgotável. “To make you feel my love” é uma canção de 1997.

            A minha canção de Atenas, dou-me conta disto enquanto escrevo estas linhas, não é música, mas um gato, ou melhor, o ritmo de um gato específico quando nos cruzamos num certo ângulo. Ou as revelações que a presença desse gato por vezes parece conter, em termos da cronologia das metamorfoses da minha relação com a cidade, do ritmo da minha cíclica existência nela. A pergunta que me faço, sempre que me encontro com este gato é: sou ainda uma turista nesta cidade ou não? Quando ao certo se deixa de ser turista numa cidade? Há mais de uma década, nas minhas primeiras viagens a Atenas, o bairro onde eu fico costumava ser para mim as poucas coisas que sabia dele de sobre ele ter lido em guias turísticos, era o bairro do Museu Nacional de Arqueologia e também o bairro onde está o Politécnico, onde, durante a chamada Revolta do Politécnico, a partir de 14 de Novembro de 1973, os estudantes fizeram greve e entraram em protesto contra o Regime dos Coronéis. A revolta foi esmagada pelo regime a 17 de Novembro, e terminou com um total de 24 mortos. Hoje em dia, nas ruas desse bairro, justapõe-se a essa história, a minha história nele, que se desenrola em redor dos apartamentos onde fiquei ao longo dos anos, dos apartamentos onde vivem os meus amigos, onde às vezes fico, de bares, cafés e restaurantes, onde aconteceram para mim tantas coisas que sei hoje que estas ruas não são apenas paisagem. O que é ao certo a pertença a um lugar? Qualquer coisa entre o deslumbramento e a pena? Não sei. Digo, a alegria sem medida do regresso a pessoas que amei. Até àqueles que já não podem ser encontrados aqui.

            O que me leva ao gato, à minha relação com aquele gato de rua que vive já um pouco fora do meu bairro, um pouco mais acima dele, numa esquina do Monte Licabeto, esse lugar que faz pensar em Aristóteles, perto da padaria onde, quando estou em Atenas, costumo ir tomar o pequeno-almoço, um espaço que não é café, mas uma espécie de balcão virado para a rua, onde se vende café, pão, e alguns bolos de pequeno-almoço. Na esquina do prédio onde está essa padaria, há uns três ou quatro anos, alguém que vive no prédio adjacente, adoptou e não adoptou um gato preto de rua, deixando-lhe um cesto no degrau do prédio e água e comida ao lado do degrau, já quase diante da padaria. Ao longo do tempo eu vi-o passar de gato bebé com não muitas hipóteses de sobrevivência a gato adolescente e daí a gato adulto, confortável na vida do bairro, príncipe e pedinte, como só os gatos de rua de Atenas sabem ser. Em nada como na sua relação com os gatos de rua é visível a generosidade e a crueldade dos atenienses, o que há de melhor e pior na cidade emerge no modo como as múltiplas colónias de gatos são tratadas pelas pessoas nos bairros onde os gatos vivem. Os gatos de Atenas, que não existiam na antiguidade clássica, são hoje um símbolo da cidade.

            Nesta viagem, dei conta, muito embora o cesto estivesse no sítio, que o meu gato não andava perto do cesto. Nos primeiros dois ou três dias isto não me preocupou, mas ao fim desses dias uma nuvem de fumo dos incêndios que assolaram Atenas desceu sobre a cidade e, quando eu estava prestes a ir-me embora por alguns dias, para uma cidade do norte onde tinha um compromisso, o cesto foi removido. Vi o desaparecimento deste cesto como um símbolo do lado violento e cruel de Atenas, do tipo de descuido que banaliza o lado precioso da vida, uma forma de indiferença alicerçada em descuido. Quando voltei, três dias mais tarde, o ar na cidade tinha voltado a ser respirável, mas o cesto continuava desaparecido. Não sei como, por que milagre, no meu último dia havia um novo cesto, e no novo cesto o mesmo gato, com o seu inconfundível focinho manchado de cinzento, fitou-me de dentro dele, como se entre nós nunca se tivesse desenhado o horizonte de angústia e ausência com que o imaginei desaparecido. De que me tinha esquecido eu? O que é que eu não tinha entendido? As mãos destas pessoas, talvez de um prédio inteiro, que resolveram que este gato é parte do seu prédio, e que nos dias de calor irrespirável talvez o tenham recolhido e depois trocaram-lhe o cesto de inverno por um de verão. A solidariedade é uma tecnologia simples e por vezes irracional, teimosa como a improbabilidade da vida. O seu efeito secundário é o mundo tornar-se um lugar menos cruel. “You ain’t seen nothing like me yet” é o que na minha imaginação aquele gato canta a partir do seu cesto.

Uma viagem pela Europa, cidades (parte III)

De onde és? Uma pergunta simples e frequente com uma resposta difícil, se quisermos ser verdadeiros. O local de nascimento será assim tão determinante? A socialização primária define o que seremos para o resto da vida? Ficámos com alguma dívida natural relativamente a um qualquer local? Somos de um só sítio ou de vários? Podemos dizer, como Kavafis, que devemos partir de Ítaca e prolongar o mais que pudermos o regresso? Nunca regressar? Renegar, até? Pensar com atenção o elogio que Édouard Louis faz à sua família meio iletrada, homofóbica e racista por o ter obrigado a partir (um pouco à semelhança de Didier Éribon). Sei hoje que se Bragança fosse um sítio mais habitável não tinha partido com tanta facilidade, e isso talvez fosse mau para mim, teria quase de certeza parado de me superar antes dos trinta anos, como aconteceu com os que ficaram ou retornaram a essa cidade que definiu o autocontentamento como estratégia para resistir à auto-dissolução (uma forma de ficar parado e acreditar que se avança).

A minha pátria é a Europa, a de agora e a dos últimos 30 séculos. Exagero? Sim e não. A forma como penso e sinto encontra sempre neste continente, no de agora e no de antigamente (múltiplo e heterodoxo), similitudes, na Europa nunca sinto uma solidão estéril ou uma fúria destrutiva. E será bem isto que procuramos na pátria, algo que nos acolha e nos proteja das trevas (numa noite fria sem luar, num monte isolado experimentamos as trevas), exteriores e interiores.

Claro que há várias Europas, mas ainda é fácil encontrar muitos sítios e pessoas que preferem uma poesia a uma chave inglesa, uma estante de livros a uma televisão dita inteligente, uma sinfonia a um martelo. Um critério mais modesto, mas com um grande poder discriminatório, seria o de escolher viver num sítio no qual as pessoas, num plural alargado, quando fossem à praia se preocupassem seriamente em deixá-la mais limpa do que a encontraram. Ou onde houvesse associações de moradores que cuidassem sistematicamente de colónias de gatos assilvestrados e dos jardins públicos, com as próprias mãos e reportando ao poder público as situações de mau funcionamento. Claro que, podendo pedir mais, gostaria de viver numa cidade temperada com uma ágora cheia de gente a falar do bem, do belo e da verdade (como nos diálogos platónicos, com extrema atenção ao que o outro diz, à procura de esclarecer uma dúvida, um enigma... e que bom seria encontrar novamente Sócrates, esse parteiro de inteligências). Haveria também tabuleiros de xadrez, e cada jogador saberia dispor as peças de forma tão rigorosa que só com ousadia, coragem e inventividade se conseguiria ganhar vantagem.

Museo del prado, madrid

Na Europa real que visitámos, estivemos perto e longe do meu ideal (um ideal puramente sonhado, não creio que mereça a realidade que imagino). Longe em França (Lyon e Brive) perto em Pádua, Itália, e Freiburg im Breisgau, Alemanha. A uma distância ambígua em Turim, Itália, e Madrid, Espanha.

A ambiguidade, primeiro. Em Turim fomos influenciados pela desagradável Brive (é assim que se inflacionam as avaliações, experimentem ler o poeta razoável depois de um mau poeta, desses que ganham concursos reservados a naturais do concelho e nascidos depois de 1990 — isto existe, sabei-lo bem, e o ou a premiada jubilam com o prémio e as oportunidades editoriais que parecem emergir desenfreadas nesse mesmo dia). Mas tivemos também a percepção de uma cidade suficientemente grande para causar um frenesim vibrante, com praças amplas, um rio que no Inverno deve ser exuberante, ruas e mais ruas cujos edifícios se elevam por cima de arcadas (ruas de comércio intenso antes da invenção dos centros comerciais que no final do séc. XX enxamearam o velho continente, copiando o sucesso da sociedade de hiperconsumo americana), com ainda algumas lojas interessantes, mas sobretudo servindo de resguardo contra a chuva e o sol (inclemente, nalguns dias de Verão). Percebemos por que razão Friedrich Nietzsche adorava Turim, onde teve um dos anos intelectualmente mais prolíficos (1888, escreveu o Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche Contra Wagner, O Caso Wagner e Ecce Homo), até colapsar nessa mesma cidade em Janeiro de 1889. Antes do aquecimento global, Turim era uma cidade temperada, suficientemente cosmopolita para acolher um apátrida, com uma boa agenda cultural. Nietzsche gostava das ruas e das pessoas, mais discretas do que as de Génova ou Nápoles. Agradava-lhe também o baixo custo de vida, alugava-se um quarto e comia-se bem por pouco dinheiro (e ele tinha pouco dinheiro). Hoje, continua a ser uma cidade acessível: é possível jantar por cerca de vinte euros, um apartamento numa rua central de duas assoalhadas custa entre 150 000 e 200 000, um gelado de pistáchio, duas bolas, cerca de três euros. Além disso, é uma cidade que gosta de ténis, realiza há uns anos o Master ATP Finals (oito melhores tenistas do ano). Se vivesse lá, seria uma semana de ténis fantástica. A tudo isto acresce estar perto dos Alpes.

Puertas del Sol, madrid

Madrid tem três magníficos museus, sobretudo de pintura (pinacotecas), num raio de 600 metros: Museo del Prado, Reina Sofia e Thyssen. Grátis para professores, mesmo estrangeiros. A ideia de um professor culto parou a meio caminho em Portugal (ficámos muitas vezes a meio caminho, por falta de ousadia com certeza, por cansaço metafísico também, mas igualmente porque não sabemos como percorrer a parte que falta). O parque de El Retiro, grande, central, cuidado, diverso, perfeito para uma tarde de leitura nos dias mais quentes. Restaurantes pouco caros e que servem bem. O limite de velocidade dos automóveis é de 30 km/h, isto torna imediatamente a cidade mais habitável, menos agressiva, mais lenta, menos ruidosa. Cidade limpa, cujo metro é um excelente meio de transporte, racional, previsível, fiável, sem as greves tontas do de Lisboa. É perfeitamente exequível viver e trabalhar em Madrid sem usar o automóvel (o dinheiro que se poupa sem esta prótese quase imprescindível em Lisboa ou Porto, dá para viver três ou quatro anos com uma licença sem vencimento, o tempo de escrever um romance). Há teatros, cinemas, livrarias, esplanadas, universidades, um aeroporto internacional a sério... Uma cidade de que não teria partido se por acaso tivesse nascido lá. Dois problemas, contudo: o preço da habitação, ao nível, talvez até um pouco mais, de Lisboa, e as altíssimas temperaturas, dia e noite, de Verão. Mas, vá lá, com muita sorte teria nascido numa família endinheirada e podia escapar durante as canículas para lugares mais frescos. Ou ia ao Prado, todos os dias, ver quadros e pessoas (considero que quem vai voluntariamente aos museus são os melhores da humanidade, não sei se moralmente, nem isso me interessa muito, mas nos gestos de observação. Eles revelam a curiosidade que almeja compreender e consolar-se com o belo ou o sublime (guardo este sublime para a arte contemporânea pela sua capacidade de gerar o pânico do fim da arte). Ver um grupo de japoneses a tentar decifrar meticulosamente o Las Meninas, não por exotismo, mas à procura de algo que ligue a pintura europeia à arte da gravura do seu país, dá-me um prazer que raramente obtenho noutras realidades.

José de Ribera, San andrés, c. 1631, museo del Prado

A trilogia museológica de Madrid que referi há pouco pode ser suficiente para desenhar um projeto de vida. Não vislumbro qualquer absurdo em passar pela vida dessa forma, não vislumbro sequer qualquer tédio, seria uma vida feita mais de diferença do que de repetição. Por exemplo, no Prado tive a fase Velázquez, a fase Goya, a fase El Grego, a fase Ticiano, a fase Rafael… agora estou na fase José de Ribera. Por outro lado, contemplar uma pintura activa todo o entendimento e inúmeros códigos de leitura (os mais próximos do mundo da arte, certamente, mas igualmente conceitos filosóficos, avaliações e especulações económicas, grelhas históricas, estratégias políticas, estatísticas sociológicas…). Desta vez, no Reina Sofia havia uma exposição com o título «De la máquina a las maquinaciones». Partindo dos pensadores franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, expuseram-se artefactos e documentos que pretenderam mostrar como a categoria de «máquina» pode, com proveito explicativo e performativo, substituir a de «estrutura». Uma revolução filosófica, social e política.

Explicação da exposição temporária no museo Reina Sofia, madrid

Cidades preferidas, aquelas nas quais gostaria de viver pelo menos durante alguns anos: Freiburg e Pádua. Na primeira, o que mais imediatamente me convenceu, persuasão pré-reflexiva, foi a sensação de que os habitantes vivem a cidade por inteiro, não num ou noutro lugar, mas na cidade. Porque o centro se vai alargando sem nunca criar periferias, margens com uma autonomia feita de discriminação (estética, económica e cultural). Por isso, circula-se de bicicleta ou a pé, sempre a uma velocidade moderada (lembro-me de em Bruxelas os ciclistas serem uns aceleras muito perigosos). A universidade tem o lastro negativo do reitorado de Martim Heidegger (de Abril de 1933 a Abril de 1934), do seu apelo aos estudantes para que seguissem o Führer, da sua participação no saneamento dos professores judeus. Mas tem também o lastro positivo de alunos como Max Weber, Hannah Arendt ou Walter Benjamin, e continua a ser filosoficamente relevante. Há, e isto é importante para mim (sou um falso sulista), água a correr por pequenas valas domesticadas nas ruas do centro mais central. É uma espécie de sistema de irrigação permanente que antes de se alojar na terra circula perto das pessoas, recordando-lhes que a água não nasce nas torneiras e oferecendo um som que alegra qualquer coração aberto ao mundo. Ao fim-de-semana há um mercado de produtos naturais no largo da catedral (Das Freiburger Münster). Uma magnífica banca de cogumelos, ameixas e pêssegos divinais, mas o que mais nos agradou, pelo que projecta, foi haver cerca de meia dúzia de grandes bancas de flores, variadas e belas. Isto significa que os habitantes gostam de embelezar as casas, de o fazer com coisas naturais em vez de bugigangas e ecrãs de televisões gigantes. Se pudermos escolher, devemos habitar um lugar que deseja o belo e o limpo, as pessoas são aí mais afáveis e discursivas (em vez de rudes e fala-baratos). A localização também é importante: junto à floresta negra, na qual as clareiras aparecem como o esplendor da luz que atravessa momentaneamente a noite; perto da Suíça, do lago de Constança, a meio dia de viagem dos Alpes; a um passo de França (Mulhouse, Strasbourg). Além disso, de suma importância, o alojamento tem preços que um ordenado médio pode pagar sem se privar, como acontece tantas vezes nas cidades maiores de Portugal, de comprar livros (esse supérfluo essencial).

rua do centro de Freiburg im breisgau, alemanha

Quanto a Pádua, amor à primeira vista, não sentimos qualquer força centrífuga, teríamos ficado lá vários dias, semanas, meses. A bela sonoridade da língua italiana (também me agrada a do alemão), as ruas antigas compostas por arcadas (mais orgânicas do que as de Turim, parecidas com as de Toledo), as igrejas (a magnífica Basilica di Sant’Antonio di Padova, a capela de Scrovegni), cafés a 1€, bicicletas em vez de carros, a simpatia dos habitantes, os cursos de água. É difícil explicar as razões todas por que nos deixámos abraçar por um genius loci, há qualquer coisa que nos primeiros tempos de vida num local escapa ao raciocínio, o encontro antes de ser cerebral é corporal (a «grande razão» de Nietzsche), olhamos, ouvimos, cheiramos, sentimos a pressão atmosférica… e isso é processado por mecanismos hermenêuticos anteriores aos conceitos. «É isto mesmo!», dizemos. Depois vem a análise, porque não vivemos na rua, porque compramos comida, porque nos nutrimos também de cultura, porque queremos viajar. Neste caso, temos o norte de Itália à disposição, os Alpes não estão longe, cinco/seis horas para chegar a Viena de Áustria (uma capital que não se envergonha de ser asseada), os Balcãs para mergulhar no mar Adriático a preços aceitáveis. E depois, um bom apartamento de três assoalhadas, bem situado, ronda os 200 000 euros; uma pechincha, comparados com os preços nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O único, por enquanto, senão: as temperaturas elevadas nos meses de Verão, acompanhadas de bastante humidade.

Rua no centro de Pádua, itália

Da pátria mínima de Steiner (será onde tivermos uma mesa de trabalho com café à disposição), à da língua de Fernando Pessoa, da Heimat nazi à Ubi bene, ibi pátria (a pátria é onde estamos bem) de Chateaubriand, do nomadismo nietzschiano ao sedentarismo fingido de Kant, do enraizar nacionalista ao deslizar cosmopolita, do sacrífico individual pós oitocentos (quantos hinos apelam ao sacrifício bélico — «pela pátria lutar»?) à sagração, narcísica muitas vezes, de cada ser humano, com um valor de uso incomensurável ao do território, do povo e da história. Só o hábito e a burocracia nos dão, sem qualquer processo de questionamento, uma nacionalidade, vínculo jurídico e afectivo (o primeiro chega para alguns). Agostinho da Silva, esse rebelde sensato, saiu do jogo. Talvez devêssemos fazer o mesmo, nos nossos próprios termos, sermos nómadas lentos: três anos em Pádua, três em Freiburg, três em Madrid… Nómadas analógicos, contudo. Habitar inteiramente os lugares, também com a força transformadora do trabalho, mas apostando sempre na sobriedade como arte de viver. Contribuindo, decidindo ficar ou partir, para uma boa gestão dos fluxos nómadas para que as assimetrias não despovoassem ou sobrepovoassem vilas e cidades, evitando a lógica perversa do sobreturismo actual.

Ó meu deus de Vasconcelos

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994

O primeiro livro de Mário Cesariny que comprei foi a primeira edição de Pena Capital, acabada de lançar pela Contraponto.  Passava-se isto em 1957 e eu estava em Lourenço Marques.

É um livro do qual nunca me separei. Uma voz reveladora, cheia de sedução e desafio. Um livro originalíssimo que marcou uma geração. E foi com esse livro na mão que, anos mais tarde, apresentado por Alberto de Lacerda, conheci Mário Cesariny em Londres.

O nome do autor na capa do livro ainda incluía o apelido Vasconcelos. Mas Mário Cesariny foi o nome com que assinou a breve dedicatória que lhe pedi e me fez. Data da assinatura 1964. Local da dedicatória, Lisboa. Ao reparar no engano, Mário disse: “Fica assim e faz de conta!”. E esse seu “faz de conta” fez sentido.

Lisboa, nessa altura, era para mim uma cidade perdida desde o começo da minha adolescência. A Londres que me acolhera constituía o meu mundo. Mas Mário tinha chegado de Lisboa e Lisboa está presente no seu livro. Uma Lisboa que me deixava saudoso e que Mário recuperava com imagens como a do eléctrico “amarelíssimo”, “a bela mancha diurna dos calceteiros na praça”, e a “gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro”. Aquele Lx. que Mário pôs na dedicatória deu-me uma aproximação à Lisboa de onde me tinham levado há tanto tempo.

Mário regressou a Londres para uma estadia mais longa e a certa altura hospedei-o em minha casa. Por coincidência e para meu prazer, foi lá que escreveu parte do livro Poemas de Londres.

Mas foi com essa primeira edição de Pena Capital que o mundo de Cesariny se me revelou. E creio poder dizer que essa primeira edição foi o livro que o lançou. Quem não se lembrará de versos comos os que abrem o poema A Antonin Artaud?

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.

E mais adiante:

Como assim Mário   como assim Cesariny   como assim
      ó meu deus de Vasconcelos?

E quem não se assarapantou com o extraordinário menu do pic-nic evocado na Homenagem a Cesário Verde?

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas
cosidas

Quem não se deixou arrebatar com poemas como Corpo Visível e Autografia e Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos? Esses, e outros e sempre. Outro livros apareceram e outras edições revistas de Pena Capital foram surgindo. Nenhuma com a irreverência dessa primeira edição.

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Mário Cesariny proponho que a melhor homenagem a prestar-lhe seria o relançamento da versão original do livro excepcionalíssimo que é Pena Capital. E quanto ao nome do poeta, é melhor que fique inteiro: Mário Cesariny sim, mas certamente também de Vasconcelos.

Uma viagem pela Europa, hotéis (parte II)

A cabana de Martim Heidegger em Todtnauberg

Durante a nossa viagem pela Europa alugámos oito quartos de hotel. Preferimos os hotéis tradicionais a outras formas de alojamento locais, sobretudo quando pernoitar apenas uma ou duas vezes.

Habitar efemeramente um espaço diferente da nossa casa tem, para nós, uma dimensão predominantemente funcionalista, distanciamo-nos das funções classistas ou fetichistas. Um quarto de hotel deve responder ao objetivo para o qual foi alugado, no nosso caso para uma boa noite de sono e um pequeno-almoço decente.

Há uns anos, as reservas e alugueres eram difíceis e os resultados imprevisíveis. Fora do circuito das agências de viagens (e mesmo nestas havia muita aldrabice), era bastante complicado saber que hotéis tinham quartos disponíveis, a que preços e com que qualidade (daí, parece-me, a catalogação por estrelas e a importância do nome da cadeia). Muitas vezes, só no local, seguindo a sinalética de rua, se conseguia obter a informação devida. Era ainda necessário interpretar certos indícios para projetar a qualidade do quarto e do pequeno-almoço (aspecto da recepção, simpatia dos empregados, estilo dos hóspedes, características do edifício, localização…) ou visitar o alojamento, quando autorizavam. Havia também alguma informação de viajantes anteriores, mas o boca-a-boca tem riscos: raramente se diz mal das próprias férias, seria assumir o fracasso numa área que quase só combina com felicidade.

Hoje, é possível escolher os hotéis guiando-nos pelas avaliações de hóspedes anteriores e, claro, imagens e outras informações fornecidas pelos próprios. A plataforma que mais utilizamos, creio que domina o mercado, é bastante fiável, mesmo para neófitos. Avaliações de diferentes parâmetros (limpeza, simpatia, conforto, pequeno-almoço, localização…) de um a dez e uma geral na mesma escala. Uma comunidade de utentes que após um certo número de avaliações define a qualidade do hotel. Normalmente não escolhemos abaixo do oito (muito bom), mas as avaliações, como nas escolas e universidades, estão inflacionadas.

O pior de todos, em Brive, França. Tudo era mau e feio, excepto o estacionamento. Pintado de roxo e cinzento oficina de automóveis, o fundo das portas (saída e WC) apodrecidas, a carpete com manchas de inundações, a recepcionista que não falava inglês e me corrigiu, mal, o meu francês, um pequeno-almoço de caserna. Quando entramos no quarto senti um pequeno arrepio, parecia um cenário à Twin Peaks. Dir-me-ão que foi mal escolhido e barato. Estava um pouco abaixo do limiar dos oito pontos na avaliação, mas foi o hotel mais caro de todos. Explicação? Brive está longe de ser uma cidade turística, como disse na primeira parte deste relato de viagem, encontrámos vários restaurantes fechados num sábado à noite para descanso do pessoal. Não há uma economia da emulação e da competição turística que lhe dê um certo nível de competência. Também não há um gosto individual e colectivo pela hospitalidade, algo habitual, aliás, nos franceses.

Hotel de Turim

O melhor de todos, em Burgos, Espanha (Crisol Almirante Bonifaz). Tudo previsível, competente, profissional, limpo. Apesar de ficar numa rua central e movimentada, nem um pequeno ruído no quarto. WC com utensílios de higiene pessoal em bambu, uma nota personalizada de boas-vindas, alguns chocolates e duas garrafas de água (não de plástico) de oferta. O melhor pequeno-almoço de todos, normalmente não se cuida muito dos vegetarianos. Próximo deste, o de Pádua, centralíssimo, cheio de peregrinos (Hotel Casa Del Pellegrino), na recepção foram extremamente amáveis e prestáveis. No pequeno-almoço havia uma grande diversidade de compotas caseiras e vários tipos de leite. Tratam bem os vegetarianos. E foi o mais económico de todos, quase metade do preço do de Brive. Antes de Pádua, o Best Quality Hotel Dock Milano, impecáveis na recepção, com a maravilhosa sonoridade da língua italiana, a jovialidade de uma cultura há muito habituada a receber estrangeiros, um edifício dos meados do século xx com um chão magnífico de calçada fina romana, a dois passos, sempre debaixo de arcadas, do centro. Tem, além disso, muito perto uma geladaria com um extraordinário gelado de pistáchio (este fruto é já referido no À la recherche du temps perdu, Du côté de chez Swann, de Proust como o suprassumo dos sabores em gelados), melhor e mais barato do que o da Avenida de Roma em Lisboa.

Mas o mais sedutor foi o Hotel Zum Schiff de Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Martim Heidegger foi professor (e reitor durante pouco tempo, em plena ascensão do movimento nazi) nesta cidade e a sua famosa cabana (aldeia de Todtnauberg), na qual terá escrito uma parte importante da sua obra, fica a cerca de seis horas a pé (era assim que o filósofo, mais antissemita do que se pensou até há pouco, gostava de se deslocar, através da floresta negra). Não fizemos a romaria filosófica, estávamos sem fé metafísica. Quando chegámos à recepção pareceu-me ver um americano com ar de quem iria repetir os passos do autor de Sein und Zeit. As informações que pediu, as respostas que obteve, o ar de peregrinação filosófica (peregrinação extrema, colonizados pela filosofia analítica, os americanos que lêem Heidegger devem ser excêntricos no pensar e academicamente suicidas), o livro de 1000 páginas que não largava da mão esquerda, tudo remetia para um missionário pronto a resgatar o «pensar autêntico» das garras de técnica. Perceber a amabilidade da recepcionista com aquele hóspede surpreendeu-nos e, claro, descansou-nos. Confesso que não tínhamos associado a simpatia a Freiburg. E foi assim que desfizemos o preconceito, alimentado também pelas fotografias do hotel, quando reservámos, em cima da hora, o quarto (aparenta ser muito anos 80). Simpáticos, competentes, óptimo pequeno-almoço, edifício com alma, um quarto enorme, vista para a floresta (pela qual talvez caminhasse Heidegger), cama confortável, almofadas perfeitas (o critério das almofadas pode bastar para definir a qualidade de um hotel, não há hotéis bons com más almofadas, e o inverso também é verdade). Mais uma nota, a ficha de avaliação em papel colocada na mesa do quarto tinha os campos habituais, conforto, limpeza, simpatia, pequeno-almoço…, mas havia uma novidade: informative. Isto diz muito da cultura alemã (simplifico ao uniformizá-la). Foi assim, também contra Heidegger, que derrotaram uma metafísica bolorenta mais preocupada com o aprofundamento, quase delirante, da subjetividade do que com a descrição e a resolução dos problemas da vida colectiva. Às vezes penso que o nosso lirismo barroco e o falatório para-discursivo do futebolês deviam ser esmagados a golpes de martelo informative. Não para alimentar as máquinas do lucro, predadoras incansáveis, mas para tornar os humanos melhores (continuo aristotélico, apesar de Nietzsche).

Hotel de Pádua

Mais duas ou três notas. Primeira, sempre que nos instalámos num hotel verificamos as saídas de emergência, construímos um esquema de autoproteção. Segunda, quando pesquisámos os hotéis pusemos dois critérios fixos: estacionamento e pequeno-almoço. Mas só nos de Brive e de Freiburg é que não pagámos pelo parqueamento fornecido pelo hotel. Nos outros, ou despendemos cerca de 15% do preço da estadia para estacionar, ou, como em Burgos, Turim e Pádua, tivemos de estacionar na via pública, sem muitos problemas contudo. Finalmente, depois de reservar é bom tentar esclarecer por correio electrónico os aspectos menos claros, ficamos mais informados (regressa o informative) e mostramos que não nos podem comer por lorpas, mas cuidado o excesso de prudência costuma transformar-se em desconfiança («cinismo ingénuo», nos termos da psicologia) e isso é mau para a literatura e a vida.  

Homo Viator, uma viagem de carro pela Europa, parte I (estradas)

Percurso, ida e volta (acrescentei o vermelho e o amarelo)

Este artigo é composto por três partes: I introdução e estrada; II hotéis; III cidades.

Talvez sejamos, numa disposição que nos aproxima e afasta de muitos mamíferos, um Homo Viator. A Odisseia e Ulisses são a prova de que mal soubemos registar as histórias que mantêm um povo unido (mitos) escrevemos sobre viagens. Nelas, sejam as de Heródoto, Marco Polo, Petrarca, Rousseau, Goethe, Nietzsche ou, entre outros, Thoreau, há sempre encontros com a alteridade, exterior e interior, tal é, aliás, desejado pelo viajante: encontrar o diferente fora e dentro para redefinir a sua visão do mundo e de si. E assim se distingue do turista, que mesmo quando esbarra com o excêntrico se mantém firme, passada a primeira surpresa, nas suas convicções identitárias. No máximo, regista a extravagância e o icónico (normalidades hipertrofiadas) para compor o estatuto social e alimentar a economia da vanglória.

Nos últimos anos, talvez quatro, não saí fisicamente de Portugal. Parecia satisfeito por ler o The Guardian, The New York Times, El País e Le Monde. Isto, a par dos livros estrangeiros e de alguma televisão (a magnífica ARTE), dava-me mundo suficiente para ser, como Immanuel Kant, um cosmopolita imóvel. Acresce a esta indisposição viajeira, a morte, há uns anos, de pessoas que conhecia num acidente de avião na ilha de São Jorge, Açores. Este infortúnio tornou mais tangível o risco, bem sei que sobrevalorizado (no medo, a percepção subjectiva vence estatística), de andar de avião, espoletando uma quase fobia por uma máquina que continuo, porém, a admirar.

Mas este ano senti que era imperativo sair por inteiro do «rectângulo», precisava de respirar outro ar, ver outras coisas, ouvir outras línguas. Precisava da diferença para afinar a identidade. Mas que diferença escolher? Uma que não fosse muito distante do que penso e sinto, que não criasse um deslumbramento estéril, de postal, ou fosse um passeio pelo abismo. Decidi-me pela Europa. A Europa de George Steiner (A Ideia de Europa!), exaltação da civilização (ou cultura) que constituiu mais anjos e demónios, que nunca perdeu, no meio das tensões agónicas e emulações admirativas, o culto ascético pela perfeição, assente na verdade, bem e belo.

E foi assim que fizemos 6500 quilómetros de carro e 75 a pé durante certa de 12 dias através da Europa meridional e central: Espanha, França, Itália, Áustria e Alemanha. Uma viagem que porventura acompanhou, sem premeditação, a geofilosofia moderna. Planeada, mas reservando uma margem significativa para o imprevisto, procurar possibilidades reais de vida noutros lugares, tudo se iniciou e organizou à volta da pergunta seguinte: «em que outra cidade gostaríamos e poderíamos viver?»

Fomos a Burgos, Madrid e Girona em Espanha; Brive e Lyon em França; Turim e Pádua em Itália; Viena na Áustria e Munique e Friburgo na Alemanha. Escolhemos algumas cidades como pontos intermédios para repousarmos depois de cerca de 700 km de carro: Burgos (que nos surpreendeu por aliar a jovialidade noctívaga da Espanha hedonista no centro histórico e ruas adjacentes aos espaços verdes refrescantes do rio Arlanzón que a atravessa, lugar adequado a leitores e escrevinhadores; tem, além disso, casas a preços comportáveis para os ordenados da, digamos, classe média portuguesa), Girona e Brive (na primeira, visitámos amigos e fomos epicuristas pela noite fora; na segunda, uma cidade de 100 mil almas que antecipa o «bonsoir» para as seis da tarde e fecha os restaurantes ao sábado para «descanso do pessoal»).

Escolhemos as outras cidades, como disse, para experimentarmos habitar nelas, estarão na parte III deste artigo.

ESTRADAS

Gilles Deleuze dizia que lhe interessava mais o meio do que o início ou o fim (Diferença e Repetição e Dialogues avec Claire Parnet). Numa viagem deste tipo, no meio está a estrada, muita estrada. Que entendo e não entendo como um «meio para». Parte dos países ou das regiões definem-se hoje pelas suas vias de comunicação. Que em geral acompanham a vontade, já pouco livre, de acelerar o viver. As vias digitais e analógicas devem levar-nos de uma experiência a outra no mais curto espaço de tempo, elas não valem por si. É também por isso que Marc Augé as classifica como «non-lieux» (Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade). Contudo, talvez sejam mais habitáveis do que parece. A viagem até Burgos foi impecável (Lisboa, Castelo Branco, Guarda, Vilar Formoso, Salamanca, Valladolid; cidades vislumbradas, só parámos em Ciudad Rodrigo, logo após a fronteira, exemplo da «Espanha Vazia», com apartamentos decentes a bem menos de 100 mil euros que quase ninguém quer). Do lado de Espanha, memorizei as terras cerealíferas de Castela e Leão, com uma geometria irrepreensível (o campo cultivado está mais geometrizado do que as cidades pré e pós modernas), a surpreendente cortesia dos automobilistas, o deslizar (uma categoria filosófica maior em Deleuze e Jean-Paul Sartre) do automóvel sem as entropias de um tráfego sobrecarregado, de curvas mais apertadas ou de entradas e saídas mal desenhadas. Foi uma viagem amiga da contemplação, mesmo como condutor. E ao ficar na memória, esta autovia acede à possibilidade de ser um lugar, o meu pensar e sentir compuseram algumas linhas de inteligibilidade a partir dela, inteligibilidade que perdura. Já as autovias, ou autopistas, de Burgos a São Sebastião, apesar dos Pirenéus, foram mais cansativas e insipidas, devido à orografia acidentada e a florestas monótonas. Comemos quilómetros, como se costuma dizer, à espera do fim. Além disso, no País Basco há portagens e são salgadas. Em França, as autoestradas são funcionais, mas muito caras. Até Bordéus, a viagem é tremendamente aborrecida (muitos pinheiros e poucas vinhas). Mas quando fizemos um desvio pela campagne para cortarmos em direção ao centro do país, revi as paisagens da Volta à França, de que gosto muito, pelo heroísmo desportivo e a beleza do percurso. Depois de cerca de 80 km, entrámos novamente numa autoestrada para acelerarmos em direção a Brive-la-Gaillarde, em pleno Limousin, que, vá lá saber-se porquê, deu inúmeros presidentes a França: George Pompidou, Valéry Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Hollande. O verde da região não supera a aridez pujante da Espanha seca (e eu sofro de stress hídrico por simpatia). É sintomático que quase não se vejam aldeias, a ocupação humana ficou-se pelos mínimos.

Atravessar os Alpes para Itália foi uma semi-desilusão, montanhas imponentes, sobretudo do lado francês, certo, mas vários troços de autoestrada em obras e a dificuldade, natural, de aceder ao túnel de Fréjus (vai ser duplicado) tornaram os 650 km, 8h de condução, mais enfadonhos do que estava à espera. Mas chegados a Turim, o caos ordenado (uma ordem que não esmaga a espontaneidade e o improviso) compensou a desilusão anterior. No quarto dia fizemos uma das viagens mais curtas, 370 km, entre Turim e Pádua, mas numa das autoestradas mais movimentadas da Europa (linha Turim-Milão-Veneza, com saídas para a Áustria e os Balcãs, indústria e turismo intensos). Este aparente «não-lugar» exige perícia e coragem assinaláveis, a via da direita e central são quase exclusivamente ocupadas por camiões, conduzidos por italianos e, pior, polacos, croatas, bósnios, eslovenos e sérvios. Ninguém te faz um favor, é preciso ser temerário e quase arrogante. Dois ou três acidentes (é um milagre serem tão poucos) e um tráfego intenso como nunca vira aumentaram num terço o tempo de viagem previsto (3:30 horas). Isto marca. Tivemos, como nunca anteriormente, uma experiência de 4:30 horas de perigo de vida. Poderá ser isto um não-lugar (uma negatividade autofágica)?

Entre Pádua e Viena são 607 km, cerca de 250 em solo italiano, com muito trânsito até à saída para Veneza. Atravessámos novamente os Alpes, agora muito mais comodamente, túneis bem desenhados e duplicados. Quando chegámos à Áustria adquirimos uma vinheta para circular nas autoestradas, cerca de 10 euros para uma semana (incrivelmente barato, uma versão de mim, de que não gosto muito, imaginou vingar-se do nosso utilizador sobre-pagador e fazer milhares de quilómetros pelo preço de três cafés em França). A previsão de chuva concretizou-se, torrencial durante 3 horas, nunca estive tanto tempo sob tamanha chuvada. Mas apesar da visibilidade reduzida e de alguns mini-aquaplanings, senti-me mais seguro do que de Turim a Pádua, os automobilistas austríacos são exemplares. Guardo, então, a experiência de conduzir naquelas condições durante bastante tempo sem sentir os receios próprios destas situações.

Finalmente, as autoestradas alemãs, resquício dos Nacional Socialismo pela densidade e gratuitidade e, numa mistura contraditória, do postulado da liberdade individual como fundamento da moral (Kant), trouxeram-me a experiência de não haver limite de velocidade (nem sempre, contudo). Mas em cerca de 100 km, entre a fronteira austríaca e Munique (estranhamente, não existem autoestradas entre a parte mais ocidental austríaca e a Baviera, como se os austríacos se arrependessem do Anschluss de 1938) só cerca de uma dezena de carros nos ultrapassou a velocidades acima dos 130 km/h, muito menos do que acontece num trajeto idêntico na nossa A1.

Experimentámos também, de forma virtiginosa, engarrafamentos. Estava previsto para o dia 5 de Agosto um trânsito infernal, com as autoestradas francesas A7 e A9 (levam metade dos franceses, bastantes neerlandeses, alemães e belgas para o sul de França e de Espanha) à cabeça. Ora, foi nesse mesmo dia que fizemos a viagem de Lyon para Girona, utilizando aquelas duas autoestradas. Pensámos, erradamente, que saindo cedo, 9 horas, evitaríamos o grande fluxo de veraneantes vindo do Norte. Mesmo saindo algumas vezes da A7 para estradas secundárias seguindo o conselho, avisado, do GPS nativo do automóvel, demorámos 10 horas em vez de 6. Mas a experiência foi enriquecedora. Compreendi que os engarrafamentos podem dever-se exclusivamente à densidade de tráfego, não é preciso haver nenhuma barreira acidental ou estrutural (portagens, obras, acidentes…). Com o número elevadíssimo de viaturas, as paragens aconteciam quase sistematicamente de 5 em 5 km. Durante horas fazíamos 5 km à volta de 120 km/h, e depois ficávamos no pára-arranca cerca de 20 minutos (sistema acordeão). Experiência inolvidável, feita da apreensão empírica das leis da fluidez, da gestão da irritação por uma paciência neoestóica e da constatação da estupidez alargada e repetida de quem viaja nestes dias à espera, com a esperança ingénua dos apostadores medíocres, que os outros automobilistas, assaltados por um bom senso primário, evitem sair, deixando a autoestrada para os inexperientes e os intrépidos.

Em comparação com o que temos em Portugal, estradas, carros e condutores, gostámos mais de conduzir na Europa, mesmo em Itália (a condução é agressiva, mas há poucos e poucas incompetentes). Em geral, contrariando o que disse um político marialva há uns anos, as estradas lá fora têm melhor piso, estão mais limpas, são mais bem sinalizadas e desenhadas. A diferença acentua-se nas estradas secundárias, impecáveis na França e Áustria (os únicos países onde as utilizámos). Cá são uma lástima. Contrariando também um semi-marialva, amante de bravatas logo desde o pequeno-almoço, empreendedor político (um empreendedor político serve-se da cidade mais do que serve a cidade), os 30 km/h obrigatórios em todas as cidades pelas quais passámos não destroem a mobilidade. Voltar aos 50 km/h tugas foi uma experiência de regressão às culturas amigas dos acidentes (o fascínio pelo atropelamento, de preferência em passadeiras, ainda nos define como povo perigoso).