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2024

Para fugir, mais por fastio do que por medo, dos ecuménicos votos de bom ano, trazemos aqui um pequeno texto do filósofo francês Vladimir Jankélévich sobre o futuro. Extraído (com o máximo cuidado) de L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux. A tradução é de Victor Gonçalves, que quis recordar que nenhum feitiço de Ano Novo, por mais apolíneo que seja, editará um bom futuro aos que alienam a sua liberdade (tornemo-nos, pois, aquilo que somos).

«O que é certo é que o futuro será, que um futuro acontecerá; mas o que será permanece envolto nas brumas da incerteza. Em todo o caso, o Ainda-não será mais tarde um Agora; em todo o caso, o futuro estará presente e será um Hoje, quer estejamos lá para o ver ou não; em todo o caso, o próximo Domingo aconteceria mesmo que não houvesse nenhum homem para lhe chamar Domingo - e isto em virtude da futurição [futurition] que inevitavelmente faz o futuro acontecer. Mas o que será esse futuro? “qualis” De que natureza? Será um dia de festa ou um dia de luto? Um dia de luz ou um dia de trevas? Tal é o enigma da esfinge chamada futuro. É a resposta à pergunta na qual é certa: “An futurum sit?” Haverá um futuro? Sim, haverá um futuro. Mas “quid sit futurum?” Com será ele? De que espécie, de que cor, de que estado de espírito? Qual será a sua luz e qual será o seu género?

Já não podemos responder a estas questões. Podemos responder à questão geral, a saber, que haverá um futuro [...]; mas não podemos dizer o que será; não podemos responder à questão circunstancial, aquela que questiona sobre as modalidades e segundo as categorias da interrogação; não podemos dizer o que será. Assim, a “futuridade” do futuro não é outra coisa senão a nossa temporalidade destinal [destinale], isto é, o nosso pesado destino encerrado pela morte. Mas as modalidades do futuro representam o reino do talvez, e apontam ao homem o horizonte exalante da esperança: o que será depende da nossa liberdade

Conto de Natal

quando a sereia estava prestes
a iniciar o seu canto
Ulisses disse
                        espera
não te enfadam
as águas geladas?
ofereço-te uma cama quente
peixe com fartura
a oportunidade
de ver o mundo
e a sereia hesitou

na sua gaiola
ela cantava um canto
cada vez mais desesperado
Ulisses exigia aos ouvisses
que pagassem adiantado
antes de serem
levados à loucura
e com cera nos ouvidos
contava o lucro

mas animais selvagens
não duram em cativeiro
a sereia
deixou de comer
o seu canto
cada vez mais estridente
fazia tremer
os madeiros do lenho
enchia de medo
o coração dos homens
e o líder
cedeu por fim
aos princípios
de boa liderança
e teve a coragem
de dar a ordem
para que outros
tratassem do assunto

enlutados os navegadores
prosseguiram a sua viagem
aportaram no Dubai
e lá passaram o Natal
num hotel de cinco estrelas
dissipando o dinheiro
que tinham feito com a sereia
em excessos
de toda a espécie

Fim

O ethos do Ensaio

Michel de Montaigne, que com os seus Essais talvez tenha mudado a configuração do mundo, adverte o leitor, na edição de 1580 da sua Magnum Opus, de que nada mais fez, neste trabalho discursivo de uma década, do que se autorretratar («car c’eſt moy que ie peins»).

Será este o limite do género (haverá um género?) ensaístico? Viverá ele de uma subjetividade que, contra a universalidade cartesiana ou a finitude transcendental kantiana, assume a plena responsabilidade de se saber simultaneamente único, impreciso e interesseiro? Estarão as tentativas de explicação (é bem este o horizonte de sentido do ensaiar) dobradas, desde sempre, sobre a angústia de um sujeito que por mais que fale acerca do mundo só deseja conhecer-se a ele, talvez com uma pequena ajuda dos leitores? Conhecer-se ou conjurar-se, sobretudo agora que se reaviva a sombra de um pecado originário, finalmente transladado para dentro da história.

E quanto ao leitor — haverá, aliás, um leitor de ensaios, como se pensa haver, por exemplo, alguns de filosofia, outros de poesia e outros de legendas de filmes? —, será útil para a sua emancipação? Quando há uns meses alguém me disse: «agora só leio ensaios!», imaginei aquelas formas de embriaguez que avivam o Dom Quixote habitando nos limites da loucura pessoal. Hoje, creio compreender melhor a vontade bizarra de não voltar a tocar na ficção, no lírico ou num sistema de ideias codificado em conceitos. É porque no ensaio, como disse Montaigne, lemos o autor, o autor em funcionamento (e isto é mais do que uma «função autor»), mas lemos também tentativas de decifração de alguma da nossa coleção de enigmas. Tudo sem qualquer fatalismo epistemológico, porque somos humanos, demasiado humanos, mas igualmente porque tememos descobrir por detrás de um carpe diem um memento mori. Decidimo-nos pelo sonambulismo.

No café filosófico, que pela sua natureza não se interessa muito por sistemas, procuraremos, essencialmente a partir de João Barrento e do seu «Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis», pensar acerca do ensaio, de porque e como ensaiamos. Pode ser para chegar a «verdades relâmpago» como esta de J. Barrento: «sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma». Ou, nas palavras de Maria Filomena Molder (uma superior ensaísta), «Escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?». Mas pode ser também para apanharmos um génio na sua nudez involuntária. Ou uma máquina pensante que se desvinculou da grande fábrica do positivismo lógico.

Veremos aonde nos levam a dialética e os ensaios.

Todos esses ténues irmãos

Todos esses ténues irmãos procuram

uma fina brecha no espaço do tempo   e eu digo

o tempo não é como o xaile que vias pousado

ou se fores como eu jamais viste   pousado

na cadeira antiga   e repara   disse pousado

porque pausado seria ainda uma expressão

que nos traria de volta   concentra-te   concentra-te

agora nessa cadeira   e imagina-a sólida

à imagem do teu irmão sentado   como quem

assenta ladrilho   ou assentou   num dia solene

em que se anunciava qualquer compromisso

à fachada de uma coisa qualquer   imagina

essa mesma cadeira coleccionada pelo teu sorriso

isto é   pela ténue brecha que todos os irmãos

nas vésperas de serem condenados sabem abrir

ao céu ou à imortalidade da renúncia   e sabes

nem todos nós conservamos a morte de joelhos

prostrados ou indolentes à espera que se faça dia

desenhando na curva desse xaile a que certa vez

deste o rosto da tua avó   a adivinhação

dos pássaros   nem todos nós deixaram de crer

que quando os antigos falavam do seu voo

isto é   das aves que voam   estavam a falar

dos homens   pouca gente sabe   que atrás

de cada suspensão eras tu que murmuravas   a asa

do tamanho de toda a mais pequena partícula

poucos sabem que não eram os antigos que desenhavam

templos no céu eram os pássaros já que previam

que o tempo se corrompia e desafinava

em pequenos ecos de véspera   ou melhor dito

em laudas tais que os benditos   os certos

eram os que escolhiam passar   como tu

como tua aliás   irmã   ténue irmã

que de alguma forma aprendeste a poluir

com a pontualidade que só os grandes deuses

têm    a pontualidade dessa cadeira onde

dizem   certo tempo se escondiam os ombros

da mãe da tua mãe   onde hoje uma geração

que se esqueceu de se agasalhar se lembra ainda

de uma fina ou quase ténue ruptura   alguns diriam

doce   em que nos conhecemos   isto é

uma ruptura qualquer em que sulcámos

o Elevador do Lavra e nos encostámos

ao assento da madeira   e dentro do amarelo

como só os eléctricos sabem ser   soam

todas as vésperas   ou todos os hinos

que reconhecemos apesar da matéria

tu sabes a que me refiro

àquela brecha   àquela sombra   em que constatámos

para grande incredulidade dos pássaros

e de outras formas de expressão náutica

que todas as vozes que jamais soaram

têm a definição de uma cadeira

ou do colo que a tua avó por vezes

te oferecia   outras te recusava.