25 de Abril, Indigência Reflexiva e Rendimento de Existência

Como é natural, muito se tem falado do 25 de Abril de 1974, discursos cheios de uma nostalgia amplificada pela actual crise social, económica e ambiental. Os historiadores profissionais sabem bem que ainda não estamos suficientemente distantes para interpretar com objectividade esse acontecimento, as releituras assentam sobretudo na selectividade e exacerbação emocional (a velha “idade de ouro”, o “antigamente é que era bom”), e um pouco de um cálculo político, que ele há gajos para tudo, e a vidinha está difícil.

Eu era muito novo para guardar memórias da data (a recordação emotiva vive de intensidades mais do que de evidências), não consigo limpar a opacidade do que recupero. Mas não esqueço a festa (é provavelmente isso que melhor distingue as ontologias das revoluções de esquerda das de direita, nestas uma seriedade de chumbo, tenebrosa e mortífera captura as comunidades), a ideia de que finalmente se podia “dizer tudo” e, vivendo em Bragança, ser possível emigrar à vontade. Havia poucos cravos, a Primavera é mais tardia em Trás-os-Montes, mas as bocas e os corações riam, pelo fim de qualquer coisa mas principalmente pela esperança que brotava de uma demiurgia acima da realidade, de um futuro que parecia conter, sem discriminações ou entraves, todos os possíveis (embora o “fascismo nunca mais”).

É por isto que não tenho o direito integral, mais fisiológico do que moral, de me apropriar do 25 de Abril, limito-me, sem pressupostos de menoridade, a seguir o que outros mais velhos dizem, pensam e sentem sobre essa festa. Mas não se passa o mesmo quanto aos futuros que podem ser projectados, também a partir dele: aí tenho direitos e deveres, tantos como os demais. Se alguns podem ser guardiões especiais do passado, concedo-o, o mesmo não se passa em relação ao futuro, que, este sim, a todos pertence. E é sobre o futuro que quero aqui deixar um horizonte de possibilidade, seguindo de perto Christian Arnsperger e o que diz no artigo “Revenu d’existence et promotion de la sociodiversité”.

Este economista alemão radicado na Bélgica, pensador inteligente sobre o pós-capitalismo (não, não se trata de voltar à velha dicotomia esquerda/direita, mas de governementalidade na idade de uma profunda crise ambiental, onde muitas coisas têm de mudar, não ao ritmo de slogans mas de uma existência mais frugal e muito menos antropocêntrica), alimenta a sua proposta de um “rendimento de existência” tendencialmente universal ligado ao incremento da diversidade social através da ideia de que não há qualquer determinismo sócio-económico, e por isso é possível criar “através da decisão colectiva um sistema no qual a pobreza de alguns não seja a contrapartida sistemática da opulência de outros.” Para o alcançar, devem desenvolver-se outras vias existenciais, sem buscar mais uma vez a famigerada, e perigosa diga-se, essência (da vida humana), mas experimentar formas de viver em liberdade, porque quer os actuais "ricos" quer os "pobres", por razões diferentes no entanto, vivem alienados, em indigência reflexiva; e os problemas ambientais graves a isso nos obrigam. Estas experimentações, ainda que vividas na primeira pessoa, necessitam de uma “colectividade de experimentação”, tudo em Arnsperger se distancia de neo-individulismos. Actualmente, vivemos “num capitalismo caracterizado […] por um produtivismo e consumismo focados na clara valorização maximalista dos capitais.” Isto e os constrangimentos suplementares ligados às dívidas soberanas e aos imperativos de crescimento restringem quase totalmente a experimentação colectiva. A força do capitalismo é tal que todas as perspectivas, que não passam disso mesmo, presas aos défices e à forma de os superar, parecem condições sistémicas auto-realizadoras (maneira de pensamento e acção únicas). Ajudadas, diz Arnsperger por uma “indigência reflexiva”, carência crítica partilhada pelos materialmente ricos e pobres. A luta contra a pobreza material se não for acompanhada de uma luta contra a “indigência reflexiva” pode, aliás, reforçá-la. A “lógica da monocultura” capitalista não permite “experimentações existenciais” excêntricas, inovadoras. Na verdade, a liberdade das democracias avançadas deve não apenas permitir exprimirmo-nos sem o espectro da censura, mas também conduzir a reais possibilidades de organizar a vida económica e social de outra forma, em colectividade.

Ora, é aqui que entra o “revenu d’existence” (rendimento de existência), com ele pretende-se tornar os rendimentos mais igualitários e dar aos pobres materiais as condições de sobrevivência para que possam realmente questionar o modo de vida dominante e substituí-lo por outro, “fazer a experiência vivida de uma outra existência.” Arnsperger justifica a bondade desta proposta por analogia com o universo ecológico: “tal como a biodiversidade é crucial para a manutenção de um sistema ecológico são, a sociodiversidade é essencial para a manutenção de um sistema económico e político são.” O rendimento de existência permitiria a todos, mesmo aos desempregados voluntários, experimentarem novas formas de vida. Mas para criar este rendimento e para abrir a sociedade à experimentação e à mudança é necessário repartir equitativamente o produto gerado por uma comunidade. E é aqui que surgem as resistência mais fortes, à esquerda e à direita do campo político: como se pode dar o mesmo a quem não quer trabalhar e a quem o faz diligentemente? Sobretudo, depois de se abrir o mundo à livre concorrência, quando o trabalho é cada vez mais extenuante, tornando os trabalhadores hipercríticos em relação ao dolce fare niente.

Arnsperger traz um novo argumento que, mitigando e transformando o statu quo moral e económico, torna mais plausível esta distribuição igualitária. Temos vindo a esgotar rapidamente os recursos naturais mais baratos e importantes (para o nosso estilo de vida), sobretudo os combustíveis fósseis, e ao mesmo tempo provocamos um aquecimento global difícil de controlar. Isso projecta-nos para a necessidade de uma frugalidade a que não estávamos habituados. Portanto, vamos entrar num decrescimento económico involuntário (imposto pela rarefacção das energias fósseis e por disrupções naturais) a nossa e as próximas gerações têm a necessidade de desenvolver “modos de vida frugais”. É, pois, necessário exercer a nossa liberdade para procurar formas de vida distantes da opulência capitalista, esta será, diz Arnsperger, a “grande tarefa cultural das próximas décadas.” E quem pode experimentar estes novos ways of life serão os materialmente mais pobres (mas não totalmente desprovidos, se houver rendimento de existência), os que quiseram ou tiveram de viver à margem da festa capitalista.

Assim, a constituição de novos comunitarismos engtrelaça a) reformas educativas radicais que permitam lutar contra a indigência reflexiva; e b) um rendimento de existência permitindo ao máximo de cidadãos de se desconectarem realmente e por bastante tempo dos sistemas sócio-económicos que julgam insustentáveis. As duas medidas só funcionam em conjunto: uma força e inovação reflexiva sem condições materiais mínimas geraria uma revolta aguda e estéril; um rendimento sem reflexão criaria um “sub-proletariado pauperizado e frustrado” por viver nas margens do poder, sem real influência nas linhas de desenvolvimento económicas e sociais. Trata-se, pois, “de ao mesmo tempo lutar dentro do capitalismo contra uma pobreza material que não cessa, nem cessará, de se engendrar. Mas também, e sobretudo, de lutar para que a diversificação das experimentações sócio-económicas aconteçam apoiadas num rendimento de existência, acompanhadas pelo acesso à saúde e a uma reforma.”