Europa

I

Em The Idea of Europe (A Ideia de Europa), George Steiner esboça uma marca geral da Europa a partir de 5 traços: 1- O Café (“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. (…) Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».”); 2- A Paisagem a Uma Escala Humana que Possibilita a sua Travessia (“A Europa foi e é percorrida a pé. Isto é fundamental. A cartografia da Europa é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percepcionados dos pés humanos.”); 3- As Ruas e Praças Nomeadas Segundo Estadistas, Cientistas, Artistas e Escritores do Passado (“Cidades como Paris, Milão, Florença, Francoforte, Weimar, Viena, Praga ou S. Petersburgo são crónicas vivas. Ler as respectivas placas toponímicas é folhear um passado presente.”); 4- A Herança Dupla de Atenas e Jerusalém (“Esta relação, simultaneamente conflituosa e sincrética, ocupou o debate teológico, filosófico e político desde os Doutores da Igreja a Leon Chestov, de Pascal a Leo Strauss. (…) Ser europeu é tentar negociar, moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.”); 5- Uma Consciência Própria Escatológica (“Muito depois daquilo que os historiadores denominam como «o pânico do ano mil», as profecias de condenação escatológica e as numerologias que procuram fixar a sua data povoam a imaginação popular europeia.”)

O desenvolvimento, poético e demonstrativo, destes marcadores culturais definem um bom ponto de partida para pensarmos, repensarmos, a ideia de Europa (tangível e intangível). Sobretudo se destacarmos, imitando muitas campanhas editoriais, um horizonte hermenêutico geral que aposta no carácter paradoxal de nos alimentarmos, desde a espiritualidade trágica semita, da convivência, quase incestuosa, entre bem e mal. Diz Steiner no mesmo livro: “Europe is the place where Goethe's garden almost borders on Buchenwald, where the house of Corneille abuts on the market-place in which Joan of Arc was hideously done to death.” Um continente, com fronteiras imprecisas, vivendo da tensão irredutível entre ideias e acções rivais, onde as convicções são tanto esmiuçadas sem perdão até ao núcleo puro da necessidade e verdade que as sustenta, quanto usadas em bruto como armas de arremesso mortíferas (matou-se quer em nome da verdade quer, nos períodos de anarquia ou de vontade de domínio, sem qualquer razão imediatamente inteligível). Um continente que se foi constituindo sobre um manto de antagonismos, porque é nossa condição estarmos envoltos nas lutas fratricidas de mitos fundadores, na adição ao agon racional da Aufklärung grega, na irredutibilidade longa de projectos religiosos concorrentes, no sectarismo político-cultural de muitos estados-nação, na “luta de classes”, mas também, numa descida ao prosaico para melhor distinguir o essencial, na actual luta de regiões, nas rivalidades desportivas, no choque urbano/suburbano, na guerra partidária... Mais, no seio de cada indivíduo europeu (alargado a grande parte do Ocidente), actual legado da psicanálise, insinua-se o conflito, depurado até emergirem as pulsões mais originárias e formadoras da humanidade europeia: eros e thanatos, vontades, cegas muitas vezes, de vida e de morte. Neste sentido, qualquer história política europeia é uma lente de aumento que nos devolve os fantasmas escondidos em cada um de nós.

Há quem desloque esta perspectiva para uma visão menos linear, a história materialista seria, na duplicidade das leituras hegeliana e marxiana, a dos permanentes conflitos, enquanto a ideia de Europa viveria da utopia da paz perpétua, comunidade capaz de conciliar as diferenças culturais numa luxuriante tapeçaria civilizacional, onde em vez do confronto haveria concórdia e enriquecimento mútuo entre visões do mundo.

II

Numa análise mais historiográfica, verificamos que o termo “Europa” é muito antigo, aparece já no século VII a.C na Grécia e Heródoto usa-o algumas vezes. Sem um sentido cultural ou político claramente definido, quer nos gregos quer nos romanos (Marc Bloch: “A Europa surgiu exactamente quando o Império Romano se arruinou.” Tese discutível e datada – 1935 –, mas sustentável, na medida em que o período imperial desenvolveu um soberanismo quase sem exteriores, uma unidade sem diversidade e cuja pedra angular era o Mediterrâneo), é preciso esperar pela Idade Média para dentro do círculo da cristandade (sobretudo no Império Carolíngio) adquirir o significado, ainda pouco assertivo (e quase totalmente revogado no sistema feudal, apesar da cristandade, das universitas, Bologne, Paris, Oxford e das Cruzadas), de civilização europeia. No século XVIII, o Iluminismo (Aufklärung, Enlightenment) soprou sobre o continente um renovado sentido de cosmopolitismo (muitas vezes só metodológico), à universalidade da razão correspondeu, quase por inerência, um humanismo (prosseguindo o do Renascimento) que esbateu bastante as velhas fronteiras culturais e políticas europeias, aí a palavra “Europa” esteve perto de substituir a de cristandade (embora isto preencha sobretudo o quadro mental das elites, unidas através da circulação das ideias filosóficas, teorias políticas, obras literárias...). Mas no século seguinte, depois do imperialismo napoleónico, exacerbam-se as crenças nacionalistas que darão origem aos dois conflitos mundiais quase suicidários do século XX. De seguida, começa o empreendimento da unificação, com a última etapa a decidir-se no Tratado de Lisboa, assinado a 13 de Dezembro de 2007 e em vigor (por vezes sem muita vitalidade) desde 1 de Dezembro de 2009. De passagem, o grande tremor geopolítico de 1989 recria as próprias fronteiras da Europa, alargando até aos Urais (com alguma excepcionalidade russa) o espaço vital da civilização europeia.

III

Já mencionei algumas vezes o europeísmo de Friedrich Nietzsche, forma de combater os nacionalismos niilistas europeus e de preparar uma espaço civilizacional que pudesse acolher o Übermensch. Quem se cerca de fronteiras que distinguem em modo racista o Próprio do Outro (nacional do estrangeiro) quebra, convocando agora Derrida, toda a ética da hospitalidade, a capacidade humana de receber a alteridade no seio da mesmidade. Ora, eu sou Europeu (devia ser mais, numa torção linguística, “estou Europeu”, porque, como veremos, trata-se sempre de uma essência fraca, apesar do lastro quase infinito de antepassados deste continente que vivem em mim), da cultura que extremando a vontade de destruição e domínio, chegou agora, por caminhos que podiam ter sido outros, ao patamar de sustentabilidade de uma comunidade pós-nacionalista, assente na liberdade individual, na vontade de igualdade, no respeito pela diversidade (o lema da União Europeia é “Unidade na Diversidade”) e numa ontologia política democrática (bem mais funcional do que o “melhor dos piores regimes políticos”). Ao mesmo tempo que ensaia substituir o humanismo antropocêntrico por outro mais vasto e acolhedor, onde caibam os animais sencientes e o meio ambiente, cortando as raízes especistas que equivocamente puseram o homem no centro de tudo.

Entretanto, parece que muito está ou em ruínas ou para ruir. À crise económica, relativa se nos compararmos com tantos países miseráveis no planeta, junta-se uma crise das instituições, sobretudo as ligadas à burocracia da União Europeia, a falta de confiança nos políticos (a justiça destapou como nunca casos de corrupção no topo do poder político e económico), o estilhaçamento do sentimento de pertença à nação (várias regiões desenvolvem processos secessionistas), mas também, e porventura mais importante, uma crise de esperança. Tanto mais decisiva quanto, como referia Heraclito, só quem a tem pode encontrar o inesperado. Não ponham nada de metafísico ou teológico nisto, trata-se de descobrir maneiras mais benignas de estar no mundo, a meio caminho entre o solipsismo e o comunitarismo, num respeito abrangente pelos outros seres vivos e meio ambiente.

De qualquer forma, parece-me que a própria condição de possibilidade da Europa se abre a esse imprescindível “inesperado”, justamente porque não tem, ao contrário do que as seitas nacionalistas propagandeiam, uma árvore genealógica rígida, que marcasse a ferros as poucas brechas do futuro a partir de determinismos originários do passado. A ela pode-se aplicar, mutatis mutandis, aquilo que Gilles Deleuze dizia a propósito da interpretação: “Uma coisa tem tantos sentidos quantas as forças capazes de a capturarem.” Mesmo se desconfiarmos do que acabou de ser dito, socorrendo-nos de uma geografia política apostada na exposição sistémica de demarcações nacionais ou regionais (por exemplo, “Portugal existe desde o século XII”), sempre mantivemos um bom cepticismo, conhecendo, e até venerando, os limites da nossa razão, religião e cultura. Sempre relativizamos, Voltaire (célebre Traité sur la tolérance) e Stuart Mill, por exemplo, defendem um lugar para todas as religiões, desde que cada uma delas renunciasse a considerar-se como a única expressão da verdade. Este cepticismo, espiritual e racional, não anulou, porém, a nossa vontade de uma paz perpétua (Kant sistematizou as condições da sua realização, mas o que mais lhe interessou foi dá-la como inspiração para o aperfeiçoamento da humanidade), percebendo que deve ser ela a suceder ao mal profundo que renasce em cada guerra.

IV

Mas se a Europa tem linhas vermelhas que nos protegem de uma queda rápida na crueldade, não é por isso que devemos pensá-la como uma cultura, ou civilização, morta, no sentido de ter traçado definitivamente o seu ideário. Nada de a priori delimita a sua projecção no futuro, nenhum consenso constitucionalizado terminou o texto onde ela se vai descrevendo e prescrevendo. O sentimento de pertença que habita cada europeu, pelo menos os que não vivem em elevado ressentimento ou estado de culpa, é frágil, porque é-se, ou melhor, está-se sempre com os outros, e assim o mundo comum é a posteriori, falta sempre compô-lo. Assenta aqui todo o contrato social. Além disso, deixamos de acreditar nas paixões tristes aglutinadoras, como o medo, o ressentimento, a inveja... destiladas no jogo de promessas, recompensas e castigos da propaganda política ou de algum profeta mefistofélico.

Talvez devamos renovar, ajustando um pouco mais a nova variação, os impulsos dos Iluminismos: a razão povoada pelos grandes textos da humanidade e pela vontade permanente de compreender. Se virmos bem, o artigo de Kant sobre “O que é o Iluminismo?” (“Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”, 1784) continua sem uma ruga, justamente por remeter para o centro que dirige e sempre dirigiu o projecto europeu: a autonomia de cada cidadão, a seu desejo de se constituir com os outros, numa singularidade partilhada. Apelando à autonomia, desvia-se de quase todas as forças reactivas, aquelas que petrificam. Uma autonomia além do egoísmo, orientada para uma exigência inteligente que saiba acolher a pluralidade, na qual se desenvolverá a harmonia social, a beleza e a biodiversidade, respondendo ao desejo de vivermos melhor sem forçosamente consumirmos mais, de estarmos mais unidos sem excluirmos quem foge ao padrão, de sermos mais felizes sem adições ao hedonismo fútil.

Para o Iluminismo, os texto antigos não são modelos que devamos seguir acriticamente, mas fontes onde se pode ir buscar inspiração para fazermos Renascer a grandeza do passado no que se constrói no presente e projecta para o futuro. Em boa verdade, o Renascimento é sempre uma renovação do presente e do passado (a influência é biunívoca) a pensar no futuro. Ao mesmo tempo, a Europa, durante muito tempo eurocêntrica (colonialismos dos séculos XV ao XX), é hoje um dos continentes mais multiculturais (apesar de avultarem as “seitas da autenticidade”). Nenhuma cultura é inata, herdeira do que a precedeu ou das trocas com outras culturas, ela é sempre um campo de imigração. Talvez a cultura europeia o seja ainda mais, como se fosse imigrante nela mesma. Na verdade, ela nunca encontrou no passado um solo onde se fixar, a sua identidade aberta é descentrada, excêntrica. Recebemos a cultura como uma seta que foi lançada do passado, é certo, mas ela não é única, outras, por vezes bastante diferentes, jazem no solo à espera de serem lançadas noutras direcções. Nada está pré-definido, tudo está por fazer. E nas épocas de crise, porque são momentos especiais de ruptura de sentido, lançar setas às cegas é como apostar num inesperado pleno de sentido.

Infelizmente, vem emergindo o risco, visível nos atentados terroristas deste Janeiro em França, de em vez da dissolução dos fanatismos, sobretudo religiosos e políticos, nos dirigirmos para novos obscurantismos. A Democracia defende bem a liberdade individual, mas com isso quase se impede de lutar contra a vulnerabilidade e a precariedade identitárias. Não consegue, pois, responder à vontade bastante forte de novos integrismos, religiosos ou políticos, que instituam sentidos alargados, daqueles que escusam o pensar autónomo, não gerando a angústia das dúvidas ou hesitações (movimento anti-Iluminista). Recuperando a ideia do “pessimismo da força” nietzscheano, talvez seja bom evitarmos optimismos triunfantes ou, no oposto, pessimismos fúnebres. Nem uma panglossomania nem um novo niilismo. Reconhecer, contra o perceptor de Cândido (Pangloss, professor global e optimista inveterado, caricatura de Leibniz) que o pior pode acontecer, que a Democracia não é, nunca será, um dado adquirido. Viver, contra os profissionais da desgraça, projectando um futuro melhor, mais igualitário, sustentável, feliz e belo.