Cisne

  “I keep on fighting against God

In such a dirty, cruel place”

                                 Björk

 

 

Se houvesse cetim suficiente,
que me cobrisse a cintura larga, eu 
seria um conjunto de penas brancas
esvoaçando num lago gelado da Islândia. 

Porventura teria cantado, depois de subir
as escadarias vermelhas ou, simplesmente, depois
de ser condenada à morte.
Preferia, sim, correr e cantar em cima de
um comboio em movimento
a ter de contar as desaventuras da minha,
inexistente, vida sexual. Estão a ver o pantanal?
Isso, mas sem nenhum animal,
sem onça ou bico longo. 

Pobre de mim? Não. Quero que se fodam
os Homens, que me desejam, e as mulheres,
que me evitam. Quero, sim,
 a liberdade!
Acima de tudo, poder cantar com aquilo
que me caiu em sorte e
não pensar muito. Deixo
o pensamento para
os que têm, realmente, tempo.  

Se o cisne, enrolado no meu pescoço,
cantasse a minha morte, eu
jamais seria este corpo. 

Neste cetim branco, ele canta
a minha invisível garganta.

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Leda e o Cisne, Pompeia.

Not me

Artur,

 

   lembro-me de ti, estarias sentado ou serias a escada em que te sentavas? desculpa-me a pergunta, hoje acho que é parva, na altura julguei que a escada se tinha desmoronado em ti, ainda sinto os degraus. 

 

   A primeira coisa que te disse?... há coisas primeiras?... julguei que tinhas pouca experiência nestas coisas do “eu era” ou do “quando”... eu não estava aqui, ainda não estava aqui, tinha-te aclamado, e distorcido a tua voz a um ponto em que não tinhas degraus (ou serias uma escada?).

 

   Disseste-me: “sou um amigo”.

 

   Um amigo?... Fiquei embrulhada. Olhei-te nos olhos, havia algo de estranho nos teus olhos, reflectiam demasiada coisa, ou eram demasiado mortos... e então, bateu-me, é claro, pensei que já tinhas morrido, há muito, muito tempo. Não posso dizer que não estivesse surpreendida. Soube que todas as histórias, desde agora, começariam por “há muito tempo”, porque de facto tinham tempo demais. Por isso me senti sozinha, porque estava sozinha contigo, há muito, muito tempo.

 

   Vieste? Sorri com a tua arrogância de cometa: não fui eu, disseste, enquanto destruías lá de cima todos os astros que alguma vez caíram. “Nunca perdi o controlo”, como se fosses filho do sol, ou coisa assim. Olhei-te nos olhos: vendeste o mundo por um punhado de ideias. Imbecil. Dei-te a mão, um inócuo passa-bem, e voltei a casa com a tua arrogância na cabeça. Filho do sol o caralho. E durante anos aquilo ficou-me na cabeça, o filho do sol, quem diria, durante anos olhei-te com um olhar parado, e quando dei por mim estava a caminhar contigo durante um milhão de anos.

 

   Disseste: “agora estamos mortos juntos”.

 

   E ninguém nos disse. Quem sabe?... Eu não. Nunca perdi o controlo, especialmente quando falei com os teus olhos, há muito, muito tempo, como todas as histórias que morreram antes de nós, antes de teres vendido o mundo para dares umas voltas no carro do teu pai. Com o homem que vendeu o mundo. Olhos nos olhos.

 

Desculpa.

 

Isabel

O fim deste mundo

Anselm Kiefer, Für Paul Celan: Aschenblume, 2006, Centre Pompidou

Anselm Kiefer, Für Paul Celan: Aschenblume, 2006, Centre Pompidou

Albert Camus, em L’Homme révolté, escreve que os cirurgiões têm em comum com os profectas o facto de operarem em função do futuro.

Se reduzirmos a estas duas profissões (sei, pelo que encontro na minha caixa de correio quase todos os dias, que os profetas se profissionalizaram, resolvendo todos os males, da ausência de amor e dinheiro, às fragilidades fisiológicas e psicológicas) o agir para o futuro, e tendo em conta a lógica predadora da nossa civilização (capitalista e especista), será o próprio futuro que nos abandonará (não nos esqueçamos que o futuro começa por viver-se no presente).

Sejamos claros, a ética humanista (não tanto pelo amor ao humano, mas pelo desprezo pela biodiversidade) e o modelo económico baseado num consumismo desenfreado fragilizam de tal forma as condições de vida que num futuro próximo a Terra será incapaz de nos oferecer uma existência saudável (excluo desta equação niilista as elites que terão os meios económicos e o poder político para criarem oásis protegidos da desolação, elites filhas de elites). Proponho, pois, que pensemos sobre um novo niilismo, mais implacável do que todos os que tivemos desde a Grécia Clássica: o niilismo ambiental.

Müller-Lauter, filósofo alemão imigrado nos USA, profundo conhecedor da obra nietzscheana, explica que há no termo “niilismo” uma opacidade invencível. Exprimindo genericamente “decadência fisiológica”, aparece, todavia, em diferentes culturas e pessoas com significados distintos. E aproveitando-se de Nietzsche, demonstra como devemos considerar várias formas de niilismo: Sócrates e Platão (a racionalidade que enfraqueceu o homem); Pirro e Epicuro (cepticismo e hedonismo dissolveram o heroísmo grego); Estoicismo e platonismo (prepararam o futuro niilismo cristão baseado na desvalorização da vida terrena); Bacon e Kant (desvitalizaram o sentir); Thomas Carlyle (edulcorou o pessimismo); Comte e Spencer (positivismo e pessimismo controlando a genialidade); o romantismo niilista de Schopenhauer (culto da passividade); Hartmann, Dostoïevski, Leopardi e Pascal (descoberta de pulsões destrutivas alojadas no íntimo do humano)... A densidade do termo não se esgotou nestas variações, a história continua (embora se tenha reduzido a radicalidade das alterações culturais, é o poder da globalização) e por isso haverá sempre novas formas de negação, ou pelo menos de resistência, às estruturas afirmativas.

Mas tudo isto é relativamente anódino ao pé das forças revolucionárias (talvez inférteis) que acompanham a degradação profunda das condições ambientais, o próximo grande niilismo não se mitigará num sofá psicanalista ou com uma molécula farmacêutica, nem sequer possíveis novos dispositivos recreativos com inteligência artificial de ponta (e o poder que isto tem!) serão, parece-me, capazes de nos reencorajar. A “idade da ira”, como lhe chama David Pilling (um crítico lúcido da prevalência da economia quantificada para medir o bem-estar), começou com a paragem mais ou menos geral do “elevador social” nas sociais-democracias economicamente mais avançadas, vai continuar com o deslocamento da economia-mundo para o Oriente, crescerá, incontrolável, com o esmagamento de qualquer esperança, colectiva e individual, num futuro vivível.

Bem-vindos ao fim deste mundo.

ARMANDO NUMA CIDADE LIVRE DE ARMAS NUCLEARES*

                                               “Unless they paying your bills,

                                                 Pay them bitches no mind”

                                                                               RuPaul**

  Para o Pedro Craveiro

 

Sempre me disseram o que devia ou não dizer. Sobretudo, o que deveria evitar dizer!

     Ingremes eram os meus dias monótonos, calçadas melancólicas de dias de omissão.

Sempre sonsas saladas sem sal ou sol. Tentei de tudo, tentei amar os dias rotineiros do

     Suave trabalho repetitivo, na firma que me prometia tudo, menos um salário digno!

  Young, forçava o meu andar de macho para caminhar e recolher o respeito alheio.

 

Torturados os dias, hirtas bagas atiradas por deuses cruéis, ultrapassei a porta e, sem

     Hora definida, lentamente ergui a espinha de peixe. Saíram-me os testículos da

Amplitude do meu ser. Consegui, mastigadas e sobrepostas as horas de silêncio, ter

     Tudo aquilo que sempre quis: um caminho plano e cheio de pétalas de cor rosa.

 

Wagner ritmava com as cigarras da cidade, era tempo de crescer, e, ao mesmo tempo,

     Assinava a liberdade em desfile ondulante, como se fosse uma fresca alga do mar.

LIPSYNC FOR YOUR LIFE! Ouvi, em saltos altos, frente à morte na desforra. E a antiga

     K7 repetia a performance, vezes sem conta, registado já, o meu passo livre!

*https://www.youtube.com/watch?v=lMKjCXO2Qfg

**https://www.youtube.com/watch?v=M4d20Tyzlv0

Louis Bouwmeester as Oedipus, Oedipus Rex, c. 1896.

"Voltar a casa" de Paul Celan

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Voltar a casa

Queda de neve, cada vez mais densa,
em tons de pombo, como ontem,
queda de neve, como se ainda agora estivesses dormindo.

Lá no fundo, branco ao montes.
Acima dele, eterno,
a pista de trenó dos perdidos. 

Por baixo, escondido,
erguem-se ao alto
o que tão aos olhos magoa,
colinas e colinas,
invisíveis. 

Em cada uma delas,
trazidas para casa no seu hoje,
um Eu escorregando no silêncio:
de madeira, uma estaca.

Ali: um sentimento,
chega no sopro do vento gelado,
que amarra a cor de pomba e de neve
ao pano da bandeira. 

In Sprachgitter (1959)


Heimkehr

Schneefall, dichter und dichter,
taubenfarben, wie gestern,
Schneefall, als schliefst du auch jetzt noch.

Weithin, gelagertes Weiß.
Drüberhin, endlos,
die Schlittenspur des Verlornen.

Darunter, geborgen,
stülpt sich empor,
was den Augen so weh tut,
Hügel um Hügel,
unsichtbar.

Auf jedem,
heimgeholt in sein Heute,
ein ins Stumme entglittenes Ich:
hölzern, ein Pflock.

Dort: ein Gefühl,
vom Eiswind herübergeweht,
das sein tauben-, sein schnee-
farbenes Fahnentuch festmacht.

In Sprachgitter (1959)