ANDRÓMEDA e outros poemas

ANDRÓMEDA

 

Ajude-nos a salvar

Melania Trump!

Cosido o seu braço

em arame branco

à pele rugosa do Kraken

pouco pode dizer.

O seu sonho é a liberdade.

Assine o abaixo-assinado

e salvemos juntos

Melania Trump.

 

Enquanto isto Perseu ranhoso

uma espécie de Clooney num

filme dos Coen discute com Ares

a importância dos guarda-sóis

deitado numa espreguiçadeira

“São a indiferença dos homens”.

 

 Para Ares Alexandrino tanto se

lhe dá haver guarda-sol ou não.

Uma vez em Myconos tudo o que

quer são umas grossas mãos

umas que saibam esfregar o

protetor solar nas costas.

 

Por favor assinem o abaixo-

-assinado aqui em baixo

____________________________

Para que tudo fique na mesma.

 

Enquanto o Kraken não estiver à

nossa porta o Mal não existe.



ESPARGUETE




and Nat “King” Cole is telling me I’m unforgettable,

Which i aprecciate, although i know full well that

I will be forgotten”

- Ron Padgett

 

Levantou-se da cadeira e escrevendo

no quadro o trabalho de casa

“da página 10 até à página 1943”

disse muito suavemente

no seu tom de sempre

de morto-vivo

“Porque é que há palavras que

aparecem assim do nada?

Ao mesmo tempo o colega do lado

franzindo a sobrancelha perguntava-me

“é 1943 ou 1948?”

 

Entre as duas perguntas

imaginava-me a descalçar as minhas

novas All Star no tampo superior da

Ponte D. Luís e inevitavelmente a saltar!

 

Esparguete, sim! Se lá existe é porque

é um dos alicerces de toda a Ponte.

 

Já viram que coisa feia plantaram agora na

nossa nobre cidade? Dois pisos para quê?



ÁGOAS ETERNAS

 

a Fernando Pessoa

 

agora a

ágoa reporta-se à

doçura de outrora a

ágoa da ternura que

levou na hora certa toda

a amargura.

lavada mágoa a mágoa

a fria agrura

regressou

uma e outra vez

sem que se fechasse a porta.

 

agora

regresso à ágoa

da ágora para lavar-me

a memória

e o corpo futuro que

me agoira.

 

lava-me ágoa de

agora!

leva-me a dor de

outrora e com ela

a fiança do meu fim.



*ágoa - grafia de Pessoa

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Tamara De Lempicka - “Andrómeda”, 1927/28. (Pormenor)















“The Bell Tolls For No One”

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A esta hora os dedos cheiram a alho, os bifes estão a marinar,
Enquanto isso pego em mais um conto de Bukowski, porque é Novembro,
O segundo amor tinha-o deixado e passa um fim de tarde com
A sua amiga Vicki, vão até ao The Hollywood Cemetery
E às tantas ela diz “we should fuck back here”, estranhamente ele recusa,
Contudo beija-a longamente entre o silêncio dos mortos,
Também eu tinha deixado um dos meus amores longe naquele
Início de primavera, quando te beijei no cemitério da terra,
E entrei pela primeira vez no teu corpo violento,
Havia poucos dias tinhas fodido um amigo meu no seu carro,
Depois de regressarmos os três de uma noite nos copos
E me teres dito numa mensagem que me querias a mim,
Ele disse-me que gostavas de levar no cu, eu gostava de calças brancas,
E lembro-me de te ver pela primeira vez através das janelas partidas
Da minha casa de infância, com a tua prima, sempre tiveste uma beleza silenciosa,
Não demoro em amanhar os bifes, acabo o conto, acabo o poema,
E é por isto que gosto de Bukowski, não deixa de com a sua perdição
Me trazer o doce gosto derrotado do que estas mãos com cheiro a alho
Uma vez tocaram, para nunca mais.

Turku

26.10.2019

Mar morto

tradução de Tatiana Faia

 Mar de Arava e Ló
Nas tuas margens ela transformou-se em pedra
Aquela que diz adeus às cidades
Em chamas

Aqui procuro a mulher de halite
Que traz flores brancas e púrpura
Procuro a beleza selvagem da rocha
Sem nome


Versões grega e inglesa

Νεκρά θάλασσα

 Θάλασσα του Άραβα και του Λωτ

Στις όχθες σου γίνεται πέτρα

εκείνη που αποχαιρετά φλεγόμενες

πόλεις.

 

Εδώ γυρεύω τη γυναίκα από αλίτη

Λευκά λουλούδια φέρνοντας και μωβ

Γυρεύω την άγρια ομορφιά του βράχου

χωρίς όνομα.

 

Dead sea

 

Sea of Arabah and Lot

In your banks she turns to stone

The one who bids farewell to flaming

Cities

 

Here I seek the woman from halite

Bringing white flowers and purple

I seek the wild beauty of the rock

Without a name

UM TROPEÇO NOS DIAS QUENTES (nota de leitura)

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João Bosco da Silva é e não é um jovem poeta, trata-se do 8.º livro que publica (http://www.enfermaria6.com/joo-bosco-da-silva), tempo e trabalho suficientes para o retirar, biográfica e esteticamente, das incandescentes experiências dos neófitos. Ao mesmo tempo, ainda não se cansou das palavras, percebe-se que as acolhe como se fossem só amigas, difíceis, mas amigas. Por estar neste limiar, que é sempre um interstício de liberdade, e por eu gostar do que Northrop Frye escreveu (“A absurda fórmula quântica da crítica, a asserção de que o crítico se deve confinar a «extrair» de um poema exatamente aquilo que vagamente se assumiu que o poeta terá «colocado» no poema de um modo consciente, é uma das muitas e desmazeladas iliteracias que a ausência de uma crítica sistemática permitiu que alastrasse.”) vou dizer o que bem me apetecer, com o devido respeito pelo autor. E neste livre jogo de pensamento talvez coincida, de vez em quando, com o que ele queria que percebêssemos e sentíssemos.

O livro tem três conjuntos de poemas: “Tropeço nos dias quentes”, “Tóquio” e “Poemas Siberianos”. O primeiro é bastante mais vasto e forma o espírito do livro. Nele aparece por vezes, poucas vezes, o habitual erotismo, quase pornográfico, de Bosco da Silva (em geral, trata-se de um acto de imberbes que descarregam energias no primeiro buraco que encontram ou ejaculam para o ar). Mas no essencial, os poemas assumem uma viagem ao passado, ao seu passado. Sem nostalgia, e muito menos qualquer rito de auto-celebração, recordam o sem-valor e os falhanços. E quando aparece o avô é para irradiar tristeza, quase pura, sem a mediação poética (capaz, muitas vezes, de ressuscitar mortos e de os pôr a dançar, como se não tivessem viajado, paralíticos, para longe). É a tristeza do que se esvazia, não de quem busca catarses ou linhas de sentido para o presente e o futuro. Portanto, quando Bosco da Silva espera “que valha a pena o passado”, sente-se que a resposta só pode ser: não! Por nada em particular, somente porque ele está cheio de actos falhados, como o presente e previsivelmente o futuro (“Acredita que todos os dias também eu me perco um pouco mais / para sempre.”). Daí tratar-se de “tropeços”, desse embater, involuntariamente, sem inteligência, nas coisas que a vida vai semeando, em modo armadilha, na nossa passagem.

Este retorno ao passado está condicionado, como sempre acontece, pelo presente. Mais, para Bosco da Silva “o passado é [até] influenciado pelo futuro.” Assim, acontece ficarmos sem saber se o passado foi triste e com pouco sentido ou se o observador poeta está tão desolado que só pode lançar sobre o pretérito o seu estado de espírito niilista actual. Ao mesmo tempo, parece haver um efeito de ricochete, ao querer compreender, e julgar, o passado, este vira-se para ele e pergunta-lhe: “Olha lá, achas que te tornaste numa boa merda?”. De qualquer forma, “O regresso é apenas um desfile de ruínas, é uma amputação / certificada”. Talvez por isso, a par da palavra “passado” encontremos, similar na frequência e intensidade, as de “esquecimento” e “vazio”. Ir ao passado para constatar que “O que está perdido está perdido, não vale a pena mastigar o vazio que ficou.” Ou “deixa o esquecimento levar todos os sonhos e dores, lavar a poluição […] não vale a pena, apaga a luz e espera pelo fim da noite.” Tudo queima, em lume brando, passado, presente e futuro. Mas o que seria da civilização sem um mal-estar persistente e invencível?

É por isso que o título do livro poderia ter sido: “Querido passado não fizeste um futuro”. Apropriado a um manual do esplendor invertido, uma tragédia estóica, em vez do histrionismo catártico das tragédias mais conhecidas. Tragédia mais ética do que moral, porque se trata de um indivíduo ensimesmado, dando chapadas a si próprio. E nisto também se percebe que Bosco da Silva se transgrediu. Mantendo alguns traços do seu cânone (sexo, diatribes de infância, intentos surrealistas – apesar de Franco Alexandre –, experimentos alcoólicos, escatologias fisiológicas), esta viagem ao passado abriu a porta, quer ele a atravesse, quer não, para outra poesia.

Qual? Não sei bem, não sei sequer se ele saberá, e se isso interessa para alguma coisa. Se todos os poetas devem, para o ser, encontrar o que é duradouro no fugidio, cada um fá-lo-á à sua maneira. A maneira de Bosco da Silva será a que se lhe impuser sem remédio. Para já é muito bom que se desvie tão bem dos clichés, a principal causa da decadência da poesia em Portugal. Um cliché é uma ideia sem raízes inventivas, uma ideia-hábito, ou uma ideia-preconceito, ou uma ideia ready-made, que não projecta qualquer necessidade interior, que não se confronta com a possibilidade do universal, que não alcança qualquer noção de beleza. Mas acima disto tudo, eles impedem que o poeta desenvolva um estilo pessoal, e sem isto a sua vida artística será curta e aborrecida. Não se ter encantado pelos clichés, faz de Bosco da Silva um poeta para o futuro, tanto mais que tem uma certa genialidade panóptica. É com profundo interesse, pois, que esperamos pelo seu próximo livro. Entretanto, leiam este, terão muito a ganhar.

"MacMillan's Cross"

Ecce Lignum Crucis

in quo salus mundi pependit

“Esta série, de 7 desenhos, foi feita em 2009, aos 26 anos. De tudo o que já fiz, durante 30 anos, é aquela que mais gosto. Tem por base a composição musical de James MacMillan - “Seven last Words from the cross” (1993)*; e tudo o que parece ter sido feito em minutos, demorou horas a fio. As linhas não são retas perfeitas porque assim o quis; a cor é reduzida e simbólica; o material é o feltro; a dimensão é intimista (entre a miniatura e a pintura holandesa) e as linhas são as que estão presentes. Porquê? Não me compete dar a resposta.

Esta série marca um antes e um depois. “

Vítor Teves

nota de 22.10. 2019.

*https://www.youtube.com/watch?v=et8B79uR2Pk