Anne Sexton, "Disse a poetisa ao analista"

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Tradução: João Coles


O meu ofício são as palavras. As palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso a minha ruína pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
despojadas dos seus olhos amarelos e das suas secas asas.
Devo sempre esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra, influenciar outra, até obter
algo que pudesse ter dito...
mas que o não tenha dito.

O seu ofício é examinar as minhas palavras. Mas eu
não admito nada. Faço o meu melhor, por exemplo,
quando consigo escrever um encómio a uma caça-níqueis,
como naquela noite no Nevada: contar como o mágico jackpot veio a tilintar
com três sinos no ecrã da sorte.
Mas dissesse o senhor que isto é algo que não é,
então esmoreço e lembro-me de como senti as minhas mãos tão estranhas
e ridículas e lotadas com todo aquele
dinheiro crente.


Said the poet to the analyst

 My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees.
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget how one word is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I work with my best, for instance,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money.

NOTAS SOBRE 2019

“muitas vezes digo a mim próprio que melhor

seria ter ficado em casa com os mapas e os horários”

- W. G. Sebald (“Vertigens: Impressões”)


I

Num filme de François Ozon – “Dans la maison”, de 2012 – é dito, nos minutos finais do filme, que qualquer pessoa, hoje em dia, pode escrever sobre arte. Não me recordo exatamente a frase, pois escrevo de memória e sem a ir confirmar, mas o sentido era de que qualquer pessoa podia escrever umas “coisas” sobre arte. A frase é dita em tom de ironia, na medida em que quer dizer exatamente o seu contrário, ou seja, poucos, muito poucos são os que conseguem e bem escrever sobre arte. Muitos dos textos escritos sobre arte, estou a falar de textos para exposições temporárias, são na realidade uma série de construções de vazios retóricos que nada dizem. Falar de dois ou três nomes de artistas num texto não é escrever sobre arte. Começo por lembrar essa imagem do filme de Ozon, para dizer que este pequenino texto não procura ser um texto sobre arte, mas, sim, meras impressões pessoais. Quando vi o filme de Ozon não pude deixar de estar inteiramente de acordo com Ozon. Muitos textos que já encontrei em galerias, jornais, panfletos, mesmo de “curadores” da moda, nada de interessante dizem. Escrever sobre arte é das coisas mais difíceis porque requer demasiado conhecimento e, além disso, talvez ainda mais importante, sensibilidade e imaginação. Venho dizer isto para dizer o óbvio, que este texto não é um texto sobre arte, mas, sim, notas imperfeitas, incompletas e pessoais. E antes de avançar queria evocar Arthur Danto. O filósofo e crítico de arte americano viu Andy Warhol pela primeira vez nos anos 60 e só foi capaz de escrever sobre Warhol 40 anos depois da primeira exposição que viu de Warhol. Gosto desta história porque isto, sim, é pensar e escrever sobre arte, foram precisos 40 anos para que conseguisse dizer algo que valesse a pena ser lido. Escrever sobre arte não é algo que nasça da noite para o dia , é, sim, um processo longo, doloroso (em parte) e persistente. A arte está sempre à frente do pensamento e aquele que escreve faz um esforço para ir atrás do sentido da obra de arte, não saber isso é o maior dos erros! É preciso longo Tempo para se escrever alguma coisa consistente. É preciso dizer o óbvio para que se perceba que a minha intenção é apenas dar aqui uma pincelada, uma impressão meramente pessoal. Não há nestas notas a pretensão de ser crítica; a crítica é uma coisa séria, ou pelo menos devia ser levada e pensada a sério. São, repito, meras impressões.

II

2019 foi um ano muito especial: o 5º centenário da morte de Leonardo da vinci; a Retrospetiva de Hans Hartung no Museu de arte Moderna de Paris; o centenário de Pierre Soulages e a sua consagração (definitiva) no Museu do Louvre; a morte de Robert Ryman; … Só estou a apontar. A retrospetiva de Hans Hartung é de maior importância na medida em que reabilita Hartung como um grande pioneiro da pintura abstrata, quer do expressionismo abstrato dos anos 40/50, quer da revitalização da abstração do início do século XXI. Esta seleção de acontecimentos que parecem nada ter haver entre si, têm, sim, ligação clara. A arte como “coisa mental”, a pintura abstrata, está viva e espelha-se nas suas mais importantes instituições artísticas. Esta última frase acaba por ser um pouco estranha, pois parece que mistura coisas que não se misturam: Leonardo da vinci + o negro de Soulages (e o outrenoir) + o branco de Robert Ryman + os gestos negros e os sprays de Hans Hartung; mas é exatamente isso. Qualquer um destes artistas merece um desenvolvimento especial que não tenho como dar conta aqui. Interessa-me apenas dizer duas coisas: a reabilitação e a consagração de Hans Hartung trata-se não só um reconhecimento da importância da obra de Hans Hartung, como um espelho do seu tempo, ou seja, a nova abstração do início do século XXI exige a revisão dos últimos anos do século XX. Muitos são os artistas abstratos atuais, uma nova geração, que exploram e amplificam as técnicas e gestos de Hans Hartung, nomeadamente através do uso de diferentes sprays. Por outro lado, dois pintores opostos, um senhor do negro e da luz, outro senhor do branco e da luz: Pierre Soulages versus Robert Ryman. São duas visões completamente opostas mas que têm como fim a luz, um via negro, outro via branco. Pierre comemora o seu centenário e Robert Ryman, infelizmente, morreu no início do ano. Ambos não são pintores para estudar por reproduções, ambos são experiências físicas; só conseguimos senti-los e vê-los no espaço físico. São distantes, diferentes e, no entanto, têm tanto em comum: a matéria, a importância do corpo no espaço; a preocupação pela montagem; a luz; o silêncio…

III

Em Portugal, de todas as exposições que vi, há duas que achei absolutamente extraordinárias: Carlos Bunga no Museu de Eletricidade em Lisboa e Nikias Shapinakis na Galeria Fernando Santos. A obra de Carlos Bunga parece herdeira de toda uma linguagem pós-minimalista e muito herdeira das preocupações com o espaço e arquitetura, obras que me encantaram e as quais ainda ressoam na minha memória. Por sua vez, Nikias Shapinakis faz uma espécie de cisão com toda a sua obra anterior e concentra-se apenas no uso do preto e branco, assim, encontramos as suas habituais paisagens e formas orgânicas imbuídas de uma nova e refrescante aura. Ainda neste ano: a retrospetiva de Joana Vasconcelos, no museu de Serralves, foi muito “previsível”, tirando uma peça, nada me impressionou, achei-a demasiado aborrecida (como todos os artistas tem coisas interessante e coisas desinteressantes, mas a exposição em si foi demasiado fraca); a exposição retrospetiva de Joan Jonas foi uma surpresa, muito boa, com obras muito interessantes, sobretudo “Reanimation” (2010), das melhores obras que vi este ano; a exposição “Estar vivo é o contrário de estar morto” uma perfeita desilusão, se retirarmos uma ou outra obra, acabou por ser um enorme vazio para um ideia interessante; a exposição de Pedro Cabrita reis, ainda em Serralves, ainda não a vi, mas creio que Isa Genzken teria aprovado.

IV

Sobre a poesia apenas uma pincelada, uma pequeníssima pincelada, 2019 viu a publicação de 4 poéticas que merecem toda a atenção: Santos Barros, Pedro da Silveira, Urbano Bettencourt e Emmanuel Jorge Botelho; 4 açorianos, 4 obras importantes e que merecem ser lidas no seu contexto nacional enquanto poesia de qualidade. Este bem pode ser o ano da “Poesia açoriana”, com aspas porque tenho dúvidas sobre essa designação que tanto tem de pertinência como de catalogação simplista. Todos os 4 autores merecem ser lidos com atenção. Sem querer fazer o meu “Top 10”, direi apenas que gostei muitíssimo de “Zombo”, de Alberto Pimenta, talvez o melhor livro de originais de poesia que li este ano. O Pen Club de Poesia para a Tatiana Faia veio corrigir um esquecimento nas listas de melhores livros de 2018, que tendem a ser, ainda, “masculinas e maiores de 60”. Uma última pincelada, a poesia no feminino está em alta, quer entre gerações mais velhas, quer entre as mais novas, livros de Inês Lourenço, Ana Luíza Amaral, Andreia C. Faria, Francisca Camelo, Mafalda Sofia Gomes, Inês Morão dias, Tatiana Faia (a fechar o ano com “Leopardo e Abstração”)… haverá outras mas não as li. Poesia masculina, e próxima do meu universo pessoal e de interesses, direi apenas: José Pedro Moreira, João Bosco da Silva, Leonardo, Ricardo Marques, João Coles, Sebastião Belford Cerqueira e Pedro Craveiro. Haverá outros, muitos outros, mas isto é uma nota pessoal, não mais do que isso.

V

Entre o chocalhar de herbertinhos e os piu piu à volta de Sophia, Sena foi um adereço, uma espécie de autocolante no peito por umas horas. O bizarro não foi a banana de Maurizio Cattelan mas a condecoração post mortem a Sophia e, semanas depois, a morte na miséria de um ator português. Ou seja, louvar os mortos, esquecer os vivos.

VI

ÓBITO DE BARBARA STRONGER (1983-2019)

Morreu, hoje, a poeta luso-canadiana Barbara Stronger.

A causa da morte ainda é desconhecida, mas, segundo

os mais próximos, morreu de cocktail de barbitúricos.

Trabalhava, em part-time, num McDonald para sobreviver

e comprar livros. Fez uma tese sobre Paul Celan nunca

publicada, ou valorizada, em Portugal; o que é normal entre

nós! Publicou em vida um único livro de poesia, no qual

é visível a sua irritação e o seu amor pelos mulheres. Não

tinha pachorra, sobretudo, para os moderadores de poesia

que sempre achou terem mais ego e barriga que nobre

espírito poético. Tudo o que fez foi enfiar o dedo nas feridas.

Presa ao álcool, vítima do desprezo e solidão, tudo mandou

à fava. Sabe-se que escreveu uma carta a todos os amigos

e aos inimigos, o que é caso raro. Nas últimas dizia: “Ide-vos

foder, à dissolução e libertação do meu Ser cheguei primeiro!”

VII

Para desespero do Daniel, continuo a ouvir a mesma música (ou álbum) durante uma semana. Melhores álbuns: Lana del Rey –“Norman Fucking Rockwell”; Jakub Orlinski –“Facce d’amore” e de Jarrousky – “Passion”. Do outro lado da barricada: Thom Yorke, FKA twigs (que ainda não ouvi com atenção) e Angel Olsen. E cinema? Vi tanta coisa que não vi nada. Para mim, “Fausto”, de Sokurov, é sempre atual.

VIII

Sentado na sarjeta, só me resta notar que estas notas podiam ter sido melhor escritas, mas o meu país não me deixa, afinal ainda estou vivo. “Um país de reles alternativa/ não frutifica”. Portugal continua a ser aquilo que sempre foi, um charco onde a água só corre para a água.

Ps1- Sobre duas obras que me são particularmente estimulantes - Fernando Guimarães e João Miguel Fernandes Jorge: sobre o primeiro, uma fabulosa obra completa, perfeita; sobre o segundo, a “Antologia dos Poemas”, preciosa, é certo, mas pequena demais, pois vi muitos poemas, de que gosto, ficarem de fora.

Ps2- E atenção, atenção; Wake up, Wake up (Madonna): a extrema-direita está à porta. “Enquanto o Kraken não estiver à /nossa porta o Mal não existe” (Vítor Teves).

Hans Hartung - “T 1989 R 45”, 1989.


O amor nem sempre é uma palavra despida de tudo

Os teus dedos acesos pousados sobre a mesa
lembram-me a calma com que me tiras as botas
quando volto do trabalho sob a chuva

A casa ferve da pureza das tuas mãos
há pão sobre a mesa, os meus filhos correm no quintal
tudo aqui guarda o segredo dos teus dedos
da tua voz levantada como o fogo
que aquece o interior dos templos

Dizes que é tarde e fechas a porta
e lá fora tudo se reveste de uma pele secreta
que poderias tocar

Mas é sobre o meu corpo que
inclinada como as árvores ancoradas à terra
te estendes

"The Advantages of Being an Azorian Poet and Artist"

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AS VANTAGENS DE SER UM POETA

E ARTISTA AÇORIANO

 

1 – TRABALHAR SEM A PRESSÃO DO SUCESSO

2- NÃO TER DE SORRIR EM GALERIAS

3- NÃO TER EXPOSIÇÕES NO ARQUIPÉLAGO

4- TRABALHAR APENAS 4 HORAS NO INFERNO

5- SABER QUE A SUA CARREIRA SÓ SERÁ RECONHECIDA DEPOIS DOS 80

6- TER A CERTEZA DE QUE QUALQUER ARTE OU POESIA QUE FAÇA SERÁ POESIA E ARTE AÇORIANA

7- NÃO FICAR PRESO NA ILHA

8- OUVIR AS TUAS IDEIAS NA BOCA DOS TEUS INIMIGOS

9- TER A OPORTUNIDADE DE ESCOLHER ENTRE PEQUENOS TRABALHOS E EXÍLIO

10- SER INCLUÍDO EM VERSÕES REVISTAS DA HISTÓRIA DA ARTE

11- SER SEMPRE UM ESTRANHO EM CASA

12- NUNCA SER CHAMADO DE POETA OU ARTISTA EM VIDA

13- MORRER SOZINHO

 

VÍTOR TEVES

(AFTER GUERRILLA GIRLS)

a felicidade efémera de antífon, pintor de vasos ateniense, ca. 490 a.C.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

a partir de C. P. Cavafy

pistachos e solidão
enchem a oficina do chão ao tecto
durante as noites de outono
lá fora a chuva que cai a cântaros
dá cabo dos nervos e é
uma forma de medir o tempo
humilde no escuro como uma romã
e escuridão é o que atravessa o vermelho
das sementes derrubadas sobre a mesa
e alguma espécie de má sorte
tem-me acordado toda a noite
rumino lentamente tudo o que me preocupa
inutilidades banais disputas com outras artesãos
todas as parvoíces que não me deixam
fazer o meu trabalho em paz
e conto as minhas pequenas alegrias
elas deixam-me sempre perplexo
as suas sementes semeio-as no escuro
elas contêm a noite e vão
um dia talvez chegar à primavera
que chegará muito depois
de eu ter deixado
os tigres caminharem sobre o meu peito
sem razão
também no que parece ser escuridão
um negro absurdo e absoluto
farei iluminar a sua figura que agora me foge
ao centro sentado absorto no seu trabalho
o seu nome e o meu hão-de desaparecer
e esse esquecimento
outra forma de alegria
será o selo do nosso segredo
mas ele será ainda mais esquecido do que eu
porque é ainda mais efémero o seu trabalho
os meus traços sobre a superfície
farão o seu rosto a princípio parecer
mais indefinido
e de mim será dito que preferi sempre
pintar nos vasos
cenas com rapazes aristocráticos atenienses
e batalhas míticas para
serem vistas e adoradas em banquetes
por ainda mais rapazes
aristocráticos atenienses
cenas onde se pode observar
os mais respeitáveis heróis gregos
os mais sangrentos mitos da grécia
os arqueólogos notarão
que são poucas as mulheres
que surgem nos vasos onde se pode reconhecer
a minha mão, a mão por que será reconhecido o meu nome
que não será já o meu nome
mas o nome que outros me terão dado
em virtude de serem reconhecíveis os meus traços
os meus padrões, mesmo na solidão de mínimos cacos
nas imagens que ficarão perdidas para sempre
elaborados pormenores deixarão
emergir o meu verdadeiro nome
e que se entenda que foi meu o meu trabalho
que este trabalho
por certos pormenores se fez famoso
e não há nada de errado
em um artesão capaz querer viver
em paz
da sua arte
com uma certa dignidade
mas não nesta noite
e não para o trabalho deste vaso
que será descoberto muito longe de onde
se passou esta cena e esta cena devia
ela própria ser efémera
nem tu pensarás de imediato
em páginas saídas da história
em gente como dario ou xerxes ou nos anos
em que os malditos persas
atravessaram o helesponto
para nos darem o inferno em atenas

este jovem que não é nem aristocrata
nem efebo mítico nem terá nome
ficará assim pacientemente sentado
diante do capacete que foi o seu trabalho
esculpir de uma só peça
atento, quase imóvel, quase vencendo o tempo
à velocidade de uma corrida mortal
a sua mão alonga os gestos
que terminarão o trabalho que não é o meu
esta intenção opressiva esculpida no bronze
a força desta leveza quase luz fazendo inchar o peito
até ao transporte final das imagens através da escuridão
transformadas em incêndio e pelo fogo visíveis
antes queria não ter sabido nada disto
queria tê-lo deixado dormir quieto na oficina
entre os pistachos e as romãs
aconteceu então
embora eu não o tivesse entendido
que foi minha uma coisa breve do mundo
de repente um rosto reconhecido
e esta outra arte mais difícil de dominar
muito dificilmente conquistada
aquilo que aqui se pode ver agora
uma efémera lei do caos, indecifrada

Tatiana Faia, Oxford
30 de Setembro de 2019