Nada de Novo   

 

Morreste e nesta nova década, continuas morto, parece impossível 

Que haja algo realmente definitivo, algo tão familiar e abismal, 

Incompreensível não voltar a ver o teu cabelo branco rampa acima, 

Enquanto a tua transit da mesma cor te esperava o regresso, 

Preferia ser carro, não sentir a falta de ninguém, era vendido 

E pronto ou apodrecia numa garagem ou numa eira 

Onde garotos perderiam inocências e virgindades na companhia de vespas, 

Não passa de uma semana em que não a veja novamente, 

A dos outros, sempre a dos outros e a minha sempre possível 

A cada instante, contudo a tua é a que mais estranho, 

Todos os teus ódios apagados como a pólvora que acendias 

No escalpe do inimigo em África, o medo às camas armadilhadas 

Um esquecimento encaixotado em forma de eternidade, 

A palidez perfumada das francesas um desejo mudo nos teus lábios, 

Nada nunca mais, e não há nada mais estranho nem mais certo, 

Agarra cada oportunidade, dizias-me, entra em tudo o que se abrir, 

É o que se leva da vida, mas na verdade, da vida não se leva nada, 

Só se estranha tudo, então aborrece e depois nada, 

A década é outra e tu continuas morto e eu não apodreço numa eira, 

Nenhum garoto perdeu a inocência em mim, as vespas só dentro, 

Nem isto é um poema, é só um pedaço de tristeza que não pinga. 

 

Turku 

09.01.2020 

  

visões da serra

1

ela vai sempre adiante
abre o caminho a passo de desejo
e curiosidade         a cada volta
o mesmo é novo porque há
a miríade do outro

como se eu fôra cego
abriu-me os olhos ao rato
esquivo que joga às escondidas
a toupeira cega pequena Dédalo
cujas patas são mãos e dá
vontade de cumprimentar num aperto
afável         o esquilo onda de fogo
vermelho que abrasa a vista
o coelho medroso célere fodilhão
produtor de chocapic natural que aprecia
o veado de nádegas brancas em saltos elásticos
como molas de carne e pelugem à procura de deus
o javali que lhe enche o coração
e os sonhos de uma caça infinita

se a soltasse          por instantes
                    desta corda que a mim a ela me prende
vê-la-ia de arpão em baleeiro batel
e para rimar chamar-me-ia Ismael

2

quando me encontrava
na funda cova de mim
escavaste um túnel
desde um buraco onde te estendias

à noite          a princípio          só
uma pata e uma mão
palma com palma se tocavam
para          palmo a palmo
        me ensinares a trepar para fora
                                                           de um pensamento

a ti         cadela        meu sol negro
minha sombra canina
      devo mais que um poema

3

a minha cultura não te arrebatou
por completo         o teu traço
abre ainda o olho à presa
e tomas-me na tua matilha
como eu a ti na minha morada

distraído não vi o ataque
fechei os olhos quando dei conta
da vida na tua mandíbula

como a um cego o quebrar dos ossos
narraram-me a tua violenta dança

agora calma caminhavas a meu lado
olhando por vezes para mim
com o esquilo pendendo da tua boca
um olhar que hoje traduzo e dizia

vi como esse súcubo te deixava
sentado com as suas melancólicas
mãos sobre os teus ombros
e na janela jazia o teu olhar de afogado
sabia o que tinha de fazer
convido-te
o jantar é por minha conta

4

que importância tem         redobra o olhar
é uma cadela num mundo-
cão

com menos de um ano mal conhecendo
o cheiro que exalava forçou-a
a natureza à ferocidade de uma matilha

os homens que anteriormente de si cuidavam
não se dignaram a procurá-la
de qualquer modo já o interesse da novidade
se tinha retirado dos olhos das crianças

quando nos vimos         a alta noite        só pele
e osso e medo da pedrada
ou pontapé-de-sai-daqui
vi a rainha de pêlo de ébano que és
esse porte que portas em minha companhia
perna cruzada a observar o animal que escreve
o quarto poema das visões que lhe dás

5

és um pedaço de carvão que respira
nessa cama algodoada         uma lasca
de grafite a cortar os campos
sempre verdes das terras alemãs
a sombra de uma sombra ou uma alma
a suspirar quando te sentas
ao meu colo pedindo atenção e com prazer
concedo as mãos no teu dorso
pelo queixo massajando
os teus triângulos de veludo que cobrem
o vasto mundo de barulhos sons e gentis
ares alheios ao meu sentido e
a tua barriga tracejada a branco
onde o bisturi te raspou a nada
o que ao futuro darias

dormes numa espiral de número d'ouro
numa perfeita paz que me desperta a inveja e
a curiosidade         quem te faz
ganir e uivar e ladrar e correr
no vazio        quem te habita
o sonho        será o meu         o de olho
a olho e entendimento estendido
por cima da areia de diferenças
a imergir no mar da tranquilidade
em que tu e eu nos sabemos iguais
                                        ou o da rainha da floresta teutónica
protegendo as suas crias da tua manha

se lesses este poema saberias que te respeito
te levo ao peito e memorizo o teu corpo
e movimentos e apenas procuro livrar-me
desta doença da interpretação humana
demasiado humana impedindo-te de seres
um simples animal intocado e colonizando-
te com a minha linguagem quando sou eu
quem é surdo cego e analfabeto
ao que dizes com a tua vida vivida a meu lado

Autores convidados em Janeiro

Carlos Bessa.png

Carlos Bessa

Vive e trabalha nos Açores. Tem publicados os seguintes livros de poesia: Lenços de Papel, 1987; Artesanato: 3ª geração, 1988, Legenda, Edições Atlas, 1995; Termómetro. Diário, Black Sun Editores, 1998; Olhos de Morder Lembrar e Partir, Black Sun Editores, 2000; Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina, & etc, 2000; Em Trânsito, & etc, 2003; Em Partes Iguais, Assírio & Alvim, 2004; Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007; Pai, do lado esquerdo, 2017.

2016-02-22 11.45.02.jpg

Fernando Machado Silva

Lisboa, 1979. actor/assistente de encenação, investigador de Performance Philosophy, ex-membro do CFCUL - Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Publicou "Primeira viagem" (Orfeu, 2012), "Passageiros Clandestinos" (Companhia das Ilhas, 2012), "O coração estendido pela cidade" (Gato Bravo, 2017), "Para um outro dia Lázaro" (Enfermaria 6, 2018), "Um espelho para reproduzir as mutações da vida" (antologia 2004-2017) (Companhia das Ilhas, 2018) e um ensaio/capítulo no primeiro volume em torno da Performance em Portugal, "Intensified Bodies from the Performing Arts in Portugal" (Peter Lang, Bern, 2017). Participa em revistas de Poesia e de Filosofia. Vive actualmente em Bad Meinberg, Alemanha, onde estuda e pratica Yoga Integral, segundo a tradição de Sri Swami Sivananda.

Ricardo Leitão.png

Ricardo Leitão

Nasce no Porto no verão de 1991. É arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (2015) tendo frequentado, ao abrigo do Programa Erasmus, a École Nationale Supérieure D’Architecture De Paris-Belleville (França) e a Faculty of Architecture Chiang Mai University (Tailândia). Co-fundador do atelier de arquitectura atmo, é assistente convidado na Porto Academy desde 2018, tendo organizado o programa Visiting Barragán na Cidade do México (México) em 2019. Colabora desde 2017 com a Biblioteca da FAUP onde investiga e procura uma nova ordem para o repositório de revistas e periódicos do acervo da Faculdade de Arquitectura.  

AÇORES

“Sovente il sole

risplende in cielo”

  - Vivaldi (RV 117)

 

                                                                                    a Urbano Bettencourt

  

                        I

NOUGAT E GORREANA

 

Entre palavras o fio é retomado.

E doce é a entrega do encontro quente

essas mãos de apertada amizade.

 

Deitado em palhas

observa

o invejoso

o arranjo perfeito.

 

                        II

UMA VIZINHA COM ESTILO

 

Gata!

Uma espécie de leopardo das

neves

revestida de salgado marasmo

e lento tempo

desliza

 

não tem pressa.

O prazer traz entre as patas

e mia docilmente.

 

                              III

BANHISTAS DE OUTUBRO

 

A pele arrepiada do Outubro

submerge no líquido circular da ilha.

 

Nós aqui na esplanada frente ao mar

reencontramos o frio interior da espinha

como peixes que fomos.

 

Longe ela submerge para

dentro da nossa memória enquanto

à porta a nossa vontade espera.

  

                         IV

UMA ILHA CHEIA DE VIVENDAS

 

Vivenda Almeida Vivenda Botelho

Vivenda Soares Vivenda Maia

Vivenda Sousa Vivenda Melo

 

No presépio a rivalidade entre vizinhos

sempre foi muito intensa

Este é o meu palácio de dois metros quadrados

Este sou eu longe de ti, maldito!

 

No presépio as placas na parede de cimento

são sempre sinônimas de arame farpado

distância e chapadões.

  

                         V

ÓCULO DE BASALTO NEGRO

 

A Marquesa

senhora da alta elite

vai ao Teatro.

Hoje haverá Schubert e

notícias de Lisboa que

Dona Glória me trará.

 

Vestido o capote há que

espreitar através do óculo

o silêncio da calçada.

Não vá ela esbarrar com

Dom José de olhos gordos e

mãos ásperas.

 

“Se ao menos fosse pianista!”

  

                     VI

     O DIABO DA FOME

Vermelho sobre branco.

Um papel mais velho do que eu.

Queria ter desenhado este sangue!

 

O diabo semeador de misérias

corre pela ilha procurando vítimas

entre as 11 e a meia-noite.

 

Dona Josefa nunca sai de casa

a tais horas não vá a corrente

do diabo agarrar-lhe a perna.

Mas às vezes arrisca e segue

para casa do padre Rui.

“Não há peito peludo má linde!”

  

                   VII

À CHUVA E AO VENTO

 

Meu rico Santo Cristo

mudo-te as flores todos os dias

a lamparina está sempre acesa

meu pão meu senhor meu bom amor

faça de mim uma mulher justa.

 

Ao relento numa parede do quintal

o moço no quadro em lágrimas

reclama tão triste destino

desprezado à chuva a ao vento.

  

                         VIII

UM LAGO DE METROSÍDEROS

 

Num jardim já sem grades

D. Carlos e D. Amélia sentados

numa esplanada não

apreciam as mudanças

“Corre tão depressa esse tempo

hoje, já reparaste?”

 

Indiferentes à mudança os metrosíderos

reúnem-se no vazio do céu

deixam entre si

no meio do jardim

um lago de céu azul.

 

Combinaram entre si manter a memória

do lago circular que os homens

insistiram em destruir.

 

                   IX

O ELEFANTE CINZENTO

 

Muitos nichos quadrangulares retangulares

pés direitos muito altos

basalto negro e cimento branco

uma alta chaminé sobre o dorso.

 

O elefante caminha lentamente

tem mil pés de aranha

tão finos que ninguém os vê.

 

                                            X

MADRE MARGARIDA DO APOCALIPSE

 

Lembro-me do ano de 1988.

Havia crianças entre a entrada e o jardim

e eu morta conhecia ao fim de séculos

alguma alegria.

 

Na roda da dança havia sempre um

miúdo que olhava para mim

sentia-me viva.

Era o único que conseguia ver-me!

 

Hoje tento ir à janela mas não vejo ninguém.

Tenho por passatempo avistar o universo

na humidade das paredes mas confesso

que trocava esse universo pelo olhar

de uma criança um olhar vivo

um que me fizesse lembrar

padre chico       meu perdido amor.

12371112_10153482554592982_1028380183257685046_o.jpg

Vítor Teves - Ribeira Grande