Roger Federer a persona tenística

 Roger Federer anunciou há poucos dias que se retirava do ténis. Não é bem assim, pelo que fez, 20 títulos do grand slam, 6 títulos em Masters, 28 títulos de ATP 1000, 24 títulos em ATP 500, 25 em ATP 250 (incluindo o Estoril Open), 237 semanas como número 1 mundial, 103 títulos no total, ele é, se não o ténis, uma grande parte do ténis (ia dizer «moderno», mas o ténis é todo ele moderno, jogado, em qualquer época, é sempre veloz e mutante, traços da modernidade baudelairiana). E agora que não pode voltar a perder ou a jogar mal (raramente), alcançou o estatuto de lenda (todos o dizem, basta isso). E como acontece na economia do lendário, o protagonista torna-se eterno.

Roger apareceu depois de me ter iniciado nas artes da raqueta, mas na altura jogava tão espontaneamente mal que não identifiquei o cometa que entrava no mundo do ténis. Reparei, sem dúvida, na beleza dos gestos, e na vasta gama de recursos técnicos, Roger jogava, e isso percebi imediatamente, um ténis total, usava todas as pancadas, movia-se fantasticamente, era taticamente brilhante e, igualmente importante, não parecia lutar contra ninguém, jogava e ganhava porque aproveitava o momento certo (tinha um kairós exemplar) para superar as circunstâncias (adversário, lei da gravidade, limitações biomecânicas, público, chuva, vento…).

Mas daí a projetar a carreira que viria a ter ia um grande passo. Limitações da minha análise e imaginação, com certeza. Mas faltavam também referências superlativas. Havia Björn Borg, John McEnroe, Andre Agassi, Pete Sampras, Mats Wilander, Ivan Lendl, Rod Laver, depois Novak Djokovic e Rafael Nadal…, mas faltava uma ideia de génio que enquadrasse Roger Federer. E tinha de faltar, o génio é precisamente aquele que não pode ser enquadrado, que está fora das regras conhecidas, que cria (a partir do quê?) as suas próprias regras.

 Essa genialidade foi revelando alguns dos fios com que se tecia, nas pancadas, seguramente, nos pontos e encontros ganhos, ainda mais claro, mas igualmente na beleza dos gestos (o belo, apesar da modernidade tardia o descartar, continua a fazer-nos felizes) e na personagem que Roger criou, meio real meio ficção, na sua persona tenística. Pouco a pouco, mesmo depois de terem surgido tenistas mais performativos, Djokovic e Rafael Nadal (Federer não tem um registo positivo com eles), a persona Federer continuou a ser a mais reconhecida (apesar dos 14 títulos de Roland Garros de Nadal, épico). Uma persona tangível, obviamente, mas também celestial, feita de uma metafísica que nos toca sem nos esclarecer, uma admiração sem conceitos. Talvez se trate de uma «experiência religiosa», como a descreveu David Foster Wallace. Ou de uma plenitude mais secular. O certo é que basta um nível mínimo de iniciação ao ténis para nos prostrarmos perante a sua enorme persona tenística. Não é por acaso que a vedeta emergente, vencedor do US open deste ano, Carlos Alcaraz, o tem como modelo (inimitável, sabe-o bem).

Assim, confundindo-se o ténis com Federer, mais o ideal, no sentido platónico, do que o real (onde pontua demasiada imperfeição), o anúncio da sua retirada significa apenas que vai deixar de competir no terreno de jogo. Quer queira quer não (e parece querer), ficará incrustado nesse mundo, no qual é impossível brilhar sem lhe pedir emprestados alguns raios de luz, é o que significa dizer que tal ou tal jogador se «compara a Roger Federer». Encostou a raqueta, mas a sua persona está em todo o lado, bem viva.

Nietzsche e a moral

Podem passar desde já ao ponto II, escrito com um discurso mais direto, mas nunca literal, ecos da voz de Nietzsche, fios de Ariadne que nos podem levar, não sem riscos, a uma sala do seu labirinto. No ponto I coloco em perspetiva a sua economia do bem e do mal, ou melhor, do bom e do mau. Em modo síntese, é preciso não esquecer.

I

Tenho a sensação que demasiadas coisas trabalham em mim, há um balanço generalizado de fim de século (talvez termine agora o século xx). Estamos exaustos, procuramos o bem e o mal e não os encontramos. Nada é claro, apagaram-se os focos que iluminavam prodigiosamente alguns trilhos da vida, vivemos na obscuridade, do presente, mas sobretudo do futuro.

Nietzsche disse coisas semelhantes, a sua genealogia do niilismo e da decadência fizeram-no desconfiar da pujança ocidental, reino de uma moral «hostil à vida», pedra de toque do cristianismo (por crença teológica e desonestidade filológica) e da ciência, cada uma à sua maneira preocupadas com verdades metafísicas e a produção de boas-consciências (auto-satisfeitas por seguirem o bem da época). Pelo contrário, os magníficos gregos valorizavam a aparência, a arte, a ilusão, o perspetivismo e o erro. A crítica axiológica nietzschiana acentua-se em Aurora (1881), na Gaia Ciência e Zaratustra (1882-1885), com a forte convicção de que a morte de Deus (processo de secularização) dará origem ao sobre-homem, um pós-humanismo assente no devir, no individual, na liberdade e na interpretação. O projeto de uma vasta crítica da moral prossegue em 1886 com Para lá Bem e Mal, Para a Genealogia da Moral no ano seguinte e os Crepúsculo dos Ídolos e Anticristo (ou Anticristão) em 1888. Nestas investigações antropológico-axiológicas, destaco a ideia de que «a vida é algo de essencialmente amoral», apesar de ser a possibilidade de todos os valores. O combate à moralidade cristã consagra a vida (é sintomático que a única composição musical publicada por Nietzsche tenha sido o Hino à Vida (Hymnus an das Leben), para coro e orquestra, em 1887 (Leipzig: E.W. Fritzsch). Retomou parte de o Hino à Amizade (Hymnus auf die Freundschaft) de 1873/74, a letra é de um poema de Lou von Salomé, Oração à Vida). Nietzsche recupera uma mundivisão antiga: «Enquanto filólogo e homem de palavras, batizei-a, não sem alguma liberdade — pois quem saberia verdadeiramente o nome do anticristo? — com o nome de um deus grego: chamei-lhe dionisíaca.» («Ensaio de Autocrítica», 1886).

Dioniso funciona para ele como uma divindade contraditória: geração e corrupção, vida e morte, bem e mal..., sem querer superar a tensão agónica que contém, retomando o princípio pré-reflexivo do agon pré-clássico. Temos, então, a figuração do anticristo em Dioniso, e decerto que ele pode representar esse papel de vida espontaneamente plena para além bem e mal. Mas esta função só emerge na nova interpretação mais de dez anos após a publicação do livro cujo pano de fundo é a da recuperação de uma cultura apolínea-dionisíaca, O Nascimento da Tragédia (1872). Quando escreveu este livro não teve a clarividência nem a coragem, diz ele no §6 do «Ensaio de Autocrítica», para opor o dionisíaco ao cristianismo (estava enfeitiçado por Wagner e Schopenhauer), e por isso usou fórmulas kantianas e schopenhauerianas [um pouco hegelianas, também]. Mas aquilo que mais critica, auto-critica, é a esperança infundada no renascimento do trágico grego, principalmente na música alemã (leia-se, Wagner), afinal a menos grega e a mais romântica de todas. Deste modo, revogando a falsa solução dos últimos §§ de O Nascimento da Tragédia (centralidade da música wagneriana), mantém-se viva a pergunta sobre como seria uma nova música dionisíaca. Sem responder cabalmente, termina numa espécie de liturgia anticristã onde o dançarino Zaratustra consagra o riso como comportamento superlativo.

Excerto do quarto livro de Assim Falava Zaratustra, «Do homem superior», final do §20: «Das Lachen sprach ich heilig: ihr höheren Menschen, lernt mir – lachen!». No §294 de Para lá Bem e Mal, escolhendo neste caso confrontar-se com Thomas Hobbes, confessa que gostaria de estabelecer uma classificação dos filósofos de acordo com o seu riso, que também os novos deuses, na medida em que filosofam, saberão rir, de modo «sobre-humano» (übermenschliche). François Warin tem em Nietzsche et Bataille (P.U.F., 1994) um bom capítulo sobre o riso na filosofia (destaca Nietzsche e Bataille, mas atravessa igualmente o pensamento de outros filósofos: Platão, Aristóteles, Descartes, Espinosa...). Para Warin «O riso é essa janela de luz que se abre para a noite, para o abismo do não-saber. Todo o mundo sabe que quem se deixou levar uma vez pela convulsão do riso, do riso “louco”, a angústia de rir “do que está fora de lugar... redobra o riso”; quem ri perde o equilíbrio e abandona-se a um deslizamento vertiginoso, a um movimento que o destrói.» (p. 96).

Como refere no centro do debate sobre a revolução moral, o homem nobre (der vornehme Mensch) determina os valores sem qualquer aprovação extrínseca, dignifica as coisas por si, «é criador de valores», e para isso é fundamental que não seja um homem do ressentimento (ódio e inveja que não se exterioriza), que seja um homem, um sobre-homem que queira e saiba rir. Valores de contexto, presos à história, cúmplices das circunstâncias. Por isso, como muito bem viu Gilles Deleuze, a ética nietzschiana não se tornará anacrónica, os «novos» valores do sobre-homem serão eternamente juvenis, na medida em que valem somente para acontecimentos singulares, concentram o princípio e o fim axiológicos que definem uma porção de vida. Não podendo ulteriormente cristalizar-se numa tábua de valores aspirando à universalidade. O sobre-homem cria valores para cada circunstância, com a única condição de não se oporem à vida, uma moral assente na criação festiva e permanente de valores que sublimem a vontade de viver. Se for caso disso, viver uma e outra vez a mesma coisa, divinizando cada instante e cada acontecimento dentro do tempo do eterno retorno do mesmo.

II

É, pois, indiscutível que a moral nietzschiana tem um pendor individual, retornando ao ễthos grego, a formação do carácter pessoal, que concorria e muitas vezes se sobrepunha às leis da cidade (Antígona, Sócrates…). Como justificação, não esquecendo algumas das coisas que disse anteriormente, escolhi dois textos de Nietzsche, escolhi-os como prova filosófica (sempre em perspetiva), mas também porque me acompanham no dia a dia, através deles resolvo muitas dúvidas sociais. Nietzsche vive em mim.

1- Numa nota póstuma de 1880, 6[203], diz que «buscamos aqueles cuja existência é para nós uma alegria e encorajamo-los, enquanto debandamos dos outros — eis a verdadeira moralidade

2- No §304 de A Gaia Ciência: «No fundo, repugna-me toda a moralidade que diz: “não faças isso! Diz que não! Vence-te!”. Estou, inversamente, disposto a aceitar aquela moral que me impele a fazer algo e a repeti-lo e a sonhar com isso de manhã à noite e durante a noite, e a não pensar absolutamente em nada senão em fazer isso bem, tão bem como só a mim é possível!»

Num e no outro caso, a centralidade do bem e mal, ou do bom e mau, está no indivíduo, nas escolhas que faz. Escolhe aproximar-se e afastar-se de outrem, escolhe ser perfeito (orgulho em vez de humildade, Dioniso em vez de Cristo). Se se trata de um individualismo exaltado? Não, trata-se de transformar o acaso do nosso nascimento numa necessidade. Viver, diz Nietzsche no § 3 do prefácio à Gaia Ciência é incandescer: «Viver — isso para nós quer dizer metamorfosear constantemente tudo o que somos em luz e chama». (Leben — das heisst für uns Alles, was wir sind, beständig in Licht und Flamme verwandeln).

"Fim, meio, início", de Anne Sexton

Tradução: João Coles

Havia uma criança indesejada.
Abortada por três métodos modernos
agarrou-se ao útero,
enganchada nele
a construir a sua casa nele,
e de nada servia
boicotá-la.

À nascença
ela não chorou,
levou as palmadas,
mas não berrou -
em vez disso caiu-lhe neve da boca.

Ao crescer, ano após ano,
o seu cabelo tornou-se como uma rosa num vaso,
e sangrou pelo rosto abaixo.
Colocaram-lhe pedras em cima para manter
o crescimento em silêncio,
e embora pisassem,
não matavam,
embora a mortandade nela estivesse enredada desde o início.

Fecharam-na dentro de uma bola de futebol,
mas ela meramente encolheu-se
e fingiu que era uma acolhedora casa de bonecas.
Empurraram para dentro insectos para a comerem às dentadas
e ela deixou-os rastejar para dentro dos olhos
fingindo que eram um espectáculo de fantoches.

Mais tarde, mais tarde,
já crescida, como soem dizer,
deram-lhe um anel,
e ela usou-o como uma raiz
e disse para si própria,
“Não ser amada é a condição humana,”
e estendeu-se na cama como uma estátua.

Então uma vez,
por um terrível acaso,
o amor tomou-a no seu grande barco
e ela escavava o oceano
em escaldante alegria.

E então,
lentamente,
o amor esvaiu-se,
o barco transformou-se em papel
e ela, por fim,
sabia qual o seu destino.
Vira para onde pertences,
para o surdo-mudo
aquela casa de metal,
não deixes que ele te perfure em ninguém.

Do livro póstumo 45 Mercy Street.


End, middle, beginning

There was an unwanted child.
Aborted by three modern methods
she hung on to the womb,
hooked onto it
building her house into it
and it was to no avail,
to black her out.

At her birth
she did not cry,
spanked indeed,
but did not yell-
instead snow fell out of her mouth.

As she grew, year by year,
her hair turned like a rose in a vase,
and bled down her face.
Rocks were placed on her to keep
the growing silent,
and though they bruised,
they did not kill,
though kill was tangled into her beginning.

They locked her in a football
but she merely curled up
and pretended it was a warm doll's house.
They pushed insects in to bite her off
and she let them crawl into her eyes
pretending they were a puppet show.

Later, later,
grown fully, as they say,
they gave her a ring,
and she wore it like a root
and said to herself,
'To be not loved is the human condition,'
and lay like a statue in her bed.

Then once,
by terrible chance,
love took her in his big boat
and she shoveled the ocean
in a scalding joy.

Then,
slowly,
love seeped away,
the boat turned into paper
and she knew her fate,
at last.
Turn where you belong,
into a deaf mute
that metal house,
let him drill you into no one.

3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022

Sete andamentos em torno de Córtex de Hirondina Joshua

Primeiro andamento:  um possível auto-retrato

  

pássaros chamam: — "hirondina"
convocam a limiar vocação das imagens:
o que assusta é a nitidez:
a possibilidade da fala em exercício.
a tirana condição de escapar do sangue.

 

Segundo andamento: Exterioridade em relação à língua

Córtex tem um conjunto  de poemas, que poderíamos dizer dissecam a língua, e a anatomizam em experiência criativa. Trata-se aqui de um olhar de exterioridade em relação à língua, pensada como heterogeneidade, percecionada e sentida como léxico objectal, e ritmo sintáctico, decomposto e ou reconfigurado.

A poeta moçambicana fala outras línguas como o chope  e o changana por exemplo, a par do português; quero com isto dizer, sem entrar em simplificações, que a sintaxe da língua portuguesa se reconstrói num cruzamento de outros ritmos e a escrita é pensada como quase um trabalho de escultura rítmica, lexical e sintáctica , desconstruindo  a força do sentido normativo das estruturas da linguagem.

de repente as palavras estão na minha cara
brincam no meu rosto
basta olhar os animais diante da pedra
nos corredores da insónia
os fortes animais trilham na noite
pelas mãos cruzam a remota
barbárie  
alumiam
velocidades.
às vezes o rosto é
palavra  que os
animais trilham.
 

Terceiro andamento: “Não se pode escrever com as chaves no bolso”

Um dos poemas diz: “Não se pode escrever com as chaves no bolso,  implicando que a porta do sentido é múltipla e nas “gargantas ancestrais” outras línguas se movimentam. Leia-se o poema:

o poema rebarbativo exalta a inocência nos pontos cruciais da fala
poderia trazer o sol na saliva
nas gargantas ancestrais da vocação  erro ao chamar-lhe falo
não se escreve permanentemente com as chaves no
bolso    
nem com a gnose diante dos olhos

O Córtex é a sede do entendimento, da razão. Se não houvesse córtex não haveria linguagem, percepção, emoçãocognição e memória. Aí se situam aspectos básicos da percepção, movimento e resposta adaptativa ao mundo exterior; e outras importantes actividades como a linguagem e o pensamento abstracto.

Tomando em linha de conta esta relação entre córtex e linguagem, o livro de Hirondina Joshua permite, entre vários veios temáticos possíveis de leitura, revelar esse trajecto pela observação da língua enquanto materialidade.

Quarto andamento:  um espaço kórico da linguagem

Ocorre-me aqui a distinção que Julia Kristeva estabelece entre dois planos e modalidades constituintes da linguagem e da significação, um semiótico, pulsional, rítmico, que designa como Kora, pura significância, anterior á figuração, e outro simbólico, lógico, lugar de significação, organizado em discurso, planos que se interpenetram.

Esse plano rítmico, semiótico, é fundamental no livro Córtex, e corresponde talvez àquilo que Mallarmé designou como Mistério das letras,  escrita indiferente ao intelegível, ao sentido, à noção de sujeito; um espaço musical e dispersivo:

desfaço o mioma nas regiões da dor o que fulgura está nas danças
a gravação do solo
o idioma atravessado 

Não se faz um poema com ideias, mas com palavras, afirmava Mallarmé. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser também encarado como um objeto em si mesmo. Cito o poeta: "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma ideia que ele termina o seu poema experimental:  Un Coup de Dés jamais n’abolira l’hasard. (Um lance de dados nunca abolirá o acaso).

 

Os poemas de Mallarmé representam um esforço para esgotar as formas poéticas tradicionais, como nos sugere um dos versos do poema acima citado: “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados. Considerado um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, promoveu uma grande revolução na poesia durante a segunda metade do século XIX e, mais tarde, influenciaria movimentos vanguardistas do século XX, principalmente os de vertentes futuristas e dadaístas.

 

Quinto andamento: como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”

 

Poderíamos dizer que a poesia de Hirondina Joshua também se radica nessa família ancestral de desarrumação das estruturas linguísticas, e que no espaço da língua portuguesa, a poeta vai ler/recolher, muito especialmente, em Herberto Hélder uma vocação, que sintetiza a surrealidade, não em expansivo, mas em económico e contido verso, como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”.

queria falar das linhas africanas nos orifícios dos rinocerontes
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
alguém diz não entender a veia no meio da cara dos rinocerontes
a severa desordem do ouro no centro das paixões
o chifre equilibrado no cimo dos poemas

Com efeito neste livro parece que o córtex está ameaçado de uma certa desorganização lógica e sintáctica da linguagem,  de um certo “caos”, recuperando a kora rítmica da linguagem, “antes de o poema parir o mundo”:

o mais terrível era o personagem saído das esferográficas gigantes
chamando pelas cidades
agarrado ao silêncio mortal
antes do poema parir o mundo
com as formas cálidas dos fonemas.

Sexto andamento: “Que farei com esta boca feroz?”

 

Roland Barthes em A Lição afirma que “A língua é fascista”, porque obriga a dizer, na sua normatividade sintáctica; a poesia e a literatura trapaceiam a língua, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem. Uma espécie de ferocidade e de manducação da língua, diríamos, retomando um verso da poeta, que nos diz: que farei com esta boca feroz?

 

de súbito vejo um animal carnívoro diante do poema

basta ter fome, a fome vem.
alucino ao esquecer a potência maior dos olhos
escrever é uma demência que patina a cada instante

 

Sétimo e último andamento: “o braço anterior, o lado etéreo da mão”

Esse espaço kórico, rítmico da linguagem - “o braço anterior, o lado etéreo da mão” - vem representado no livro de Hirondina em alguns poemas, associados ao espaço uterino  de abertura ao mundo, à infância primeira, lactente, lactência, câmara pulsional anterior  à noção de sujeito:

construo a ferocidade no seio da mãe,
o resto que vai à boca
desmancha o lado etéreo da mão. 

braço anterior ao líquido.
escolho olhar antes de deitar a pálpebra no rosto
o buraco na minha cabeça aquece
— pai! vem e me olha.

 

A poeta Hirondina Joshua constrói o poema, abrindo o córtex, imergindo no caos da pulsação inicial dos sons, nesse lugar sem luz, em que “está escuro”, para auscultar e simultaneamente analisar, construindo, a formação da linguagem e do verso.

   está escuro acendam a luz
—  a luz está acesa

a cegueira um cheiro que se move no centro do caos
acendam os peixes nas vulvas salgadas
ou dentro da fala toquem na ortodoxa abundância das imagens

Ana Mafalda Leite
(Itálicos meus)