Debaixo da Figueira 

 

No verão a sombra daquela figueira enchia-se de diferentes sotaques, 

De netos e filhos, havia vida atrás daquele muro, que os gatos ignoravam 

Como qualquer fronteira ridícula, às vezes quando não havia outras vozes, 

Ouvia-se falar com o cão ou com as galinhas, nos invernos havia um silêncio frio 

Debaixo da figueira nua, a humidade aos poucos depositava-se nos ossos, 

Fazendo pesar os anos e com o peso dos anos, cada vez menos vozes 

Debaixo da figueira, nas tardes de canícula, quando me julgava só, 

Debaixo do marmeleiro, matraquilhando contra mais uma ressaca, 

Ouvia o roçar dos ramos da figueira no muro, não era um gato, 

Não era o vento, então ouvia-a a ela, que me chamava e deixava 

Sobre o muro um saco com um tupperware, quando adivinhava 

Que eu por ali, logo apareciam uns dormidos, depois surgiam 

Umas análises que impotente lia e dizia o que já era sabido estar mal, 

Aqueles malditos diabetes e tinha razão, nunca lhe reconheci uma palavra 

Que me ofendesse, mesmo quando era garoto e ignorava, como os gatos, 

Fronteiras e muros, envelheceu debaixo daquela figueira, chamava-se Esperança. 

 

Turku 

 

16.11.2020 

Rui Cóias, "Duas canções póstumas para Paul Celan"


1. Canção de Brzezinka (1)




Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos

Paul Celan


Onde vieres também tu a sussurrar 
nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, 
perdidos pelos campos, em sítios que estremecem, eu regresso, «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, 
se te vejo, Margarete, eu «escureço, e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, 
como escurece o vento nos bosques frios 
em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 

Onde vieres também tu pelo adordo sublime 
do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, 
à hora mágica, lendo os poemas da Galícia, eu regresso, «eu 
até nos comboios que cavam um túmulo pelos ares, 
se te vejo, Sulamith, eu «escureço, e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, 
como escurecem as rugas pelos rostos
ardendo sombriamente, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos.


2. Canção da Carélia (2)



Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo 

Paul Celan 


Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo, 
quem diria ser a namorada ensaiando na fronteira
a dança lenta, à aura que burila nos loendros,
quem diria que a coroa ela deslaçasse, seduzindo-nos, 
quando com ela baila o rancho, o rancho da Carélia. 

Roseira que desabrocha ao coro de vozes da Carélia,
vem à tardinha insinuar-se na sebe e recitar as suas rimas, 
que ora na volta adejam, ora a chorar bem querem,
p’los arraiais brandidas em travessas de madeira. 

Quem diria Leslie que ao seu beijo o refrão entoasse
e a grinalda o tornozelo afagasse aos viandantes,
tu que a folia adornas batendo um contra outro os pés, 
que o estalajadeiro baixinho repete em brincadeira. 

Mais hora menos hora não haverá noite na Carélia, 
aziaga noite em que ambos passeamos solitários,
à beira de outra lâmina que oscila no moinho,
à beira da vigília mentirosa sobre o dia. 

Cautela pois mocinha andante da fronteira,
tem cautela que o sol esplende se sorris — «e se a brisa no 
prado a vês passar — a vês passar — olha
como ela já dança — dança — agora, Leslie,
tu com madeixas em vagas luminescentes, agora, Leslie.» 






(1) In Brzezinka, ou Birkenwald, na Silesia, Polónia, o sentimento que assola o observador vazio, ao avançar por desvios ou trilhos, para lá das folhagens do bosque, ou nas cercas arborizadas que o aproximam de um ponto em que se cruza com um terreno, um baldio, com tempos individuais num fluxo de segundos, cada pequeno elo entre mulheres e crianças deitadas no catre, cada olhar — que se supõe conter os salmos, os cantos populares, holandeses, russos, húngaros, polacos — exprime, mais ainda que a funesta existência real que o rodeia, o contraponto quase metafísico, referido por Kertész, com que fazemos tentativas para pontuar vínculos desconhecidos e funestos, traçando inclusive os olhos que distinguiram nas bétulas a claridade das estrelas, o vento numa certa permanência ou a linha fantasmagórica do azul-celeste da noite nos gradeamentos de jasmim. 




(2) (Carélia) Não se sabe ao certo em que raízes profundas têm início os fragmentos que espelham as reflexões que diante de nós recuam, como não se sabe de onde provém o estrépito do machado que ecoa nas florestas do sul da Kareliya, como não é claro poder saber quando pisamos sem dúvida a fronteira que funde as aldeias e os pinheiros bravos da Finlândia e da Rússia no caminho certo ou no caminho escolhido, como não é discer- nível, nem imaginável, saber onde começa ou acaba o Ocidente, onde começam ou cedem as ligações entre o pensamento e o seu destino, onde se levantam as faúlhas da vida que pousam na morte, e as da morte que transcendem a retaguarda da vida, onde se ouvem os coros da ortodoxia e do cristianismo, onde se iniciam os salmos e terminam as canções populares, onde está de facto reservada a lembrança da nossa existência.

Charles Bukowski, "o banho"

Tradução: João Coles


gostamos de tomar banho depois
(eu gosto da água mais quente do que ela)
e o rosto dela sempre suave e cheio de paz
e ela lava-me primeiro
ensaboa-me os tomates
levanta-os
aperta-os,
depois lava-me a gaita:
“eh lá, isto ainda está duro!”
depois lava-me os pêlos lá em baixo, –
a barriga, as costas, o pescoço, as pernas,
eu sorrio sorrio sorrio,
e depois lavo-lhe a ela...
primeiro a rata,
ponho-me atrás dela, a minha gaita entre as nádegas dela
ensaboo-lhe suavemente os pentelhos,
lavo-lhos num movimento delicado,
talvez me demore mais do que o necessário,
depois atrás das pernas, o rabo,
as costas, o pescoço, viro-a, beijo-a,
ensaboo-lhe os seios, depois a barriga, o pescoço,
as coxas, os tornozelos, os pés,
e depois a rata, mais uma vez, para dar sorte...
mais um beijo, e ela sai primeiro,
seca-se à toalha, às vezes canta enquanto ali me demoro
ponho a água mais quente
desfrutando dos bons momentos do milagre do amor
e só depois saio...
é normalmente de tarde e faz silêncio,
e enquanto nos vestimos falamos sobre o que mais
poderíamos fazer,
mas estar juntos resolve quase tudo,
na verdade, resolve tudo
pois enquanto estas coisas estiverem resolvidas
na história entre mulheres e
homens, é diferente para cada um –
para mim, é esplêndido o suficiente para relembrar
após as memórias de dor e de derrota e de infelicidade:
quando me levares isto
fá-lo lenta e docemente
fá-lo como se estivesse a morrer no sono em vez de
na minha vida, ámen.


the shower

we like to shower afterwards
(I like the water hotter than she)
and her face is always soft and peaceful
and she'll watch me first
spread the soap over my balls
lift the balls
squeeze them,
then wash the cock:
"hey, this thing is still hard!"
then get all the hair down there,-
the belly, the back, the neck, the legs,
I grin grin grin,
and then I wash her. . .
first the cunt, I
stand behind her, my cock in the cheeks of her ass
I gently soap up the cunt hairs,
wash there with a soothing motion,
I linger perhaps longer than necessary,
then I get the backs of the legs, the ass,
the back, the neck, I turn her, kiss her,
soap up the breasts, get them and the belly, the neck,
the fronts of the legs, the ankles, the feet,
and then the cunt, once more, for luck. . .
another kiss, and she gets out first,
toweling, sometimes singing while I stay in
turn the water on hotter
feeling the good times of love's miracle
I then get out. . .
it is usually mid-afternoon and quiet,
and getting dressed we talk about what else
there might be to do,
but being together solves most of it,
in fact, solves all of it
for as long as those things stay solved
in the history of women and
man, it's different for each -
for me, it's splendid enough to remember
past the memories of pain and defeat and unhappiness:
when you take it away
do it slowly and easily
make it as if I were dying in my sleep instead of in
my life, amen.

Três poemas de Mana Al-Sheikh em tradução de Rui Cóias

A iraquiana Manal Al-Sheikh nasceu em Nínive, en 1971. É licenciada em Tradução pela Faculdade de Artes da Universidade de Mosul. Tem trabalhado na imprensa árabe como jornalista freelance, e publicado artigos e textos literários em revistas e jornais iraquianos, árabes e europeus. Para além dos romances As Portas da noite de Antioquía (Damasco 2010) e Alteração de Túmulos (Nínive Unión de Autores Iraquís, 1996), as suas obras de poesia intitulam-se Gralla – Arquivo amoroso (Athar, KSA 2015), Antes de que morra o mar, Poemas escolhidos (Bagdad 2013) e Cartas Impossíveis (Amman 2010).

Manal Al-Sheikh (Iraque) .png


Traduções a partir de versões inglesas por Rui Cóias



 

MANAL AL-SHEIKH

 

 

 

 

-       لا زهور تنمو فوق اسمي 

عندما أموت

لا يهم أين سأُدفن

ففي العراق لا تنمو الزهور

وهنا؛

ما من عابر سبيل

يمرّ مصادفة

يضعُ وردة ًعلى اسمٍ

.لم يعد يذكرهُ لسانكَ

 

No flowers grow on my name

 

I do not care where I am buried
When I die
In Iraq no flowers grow
And here …
No straying traveller
Will leave a flower on a name
You no longer pronounce.

  

Nenhuma flor cresce em meu nome

 

Eu não me importo onde estou sepultado
Quando eu morrer
No Iraque não despontarão mais flores
E aqui …
Ninguém que passe sem destino
Deixará um flor sobre um nome
Que tu jamais dirás.  

 

 

تهويدة لمحارب صغير

-عندما تموت لن ينعاك أحد غيري..

لن أنشر اسمك ولا صورتك ولا كفنك الذي سأتولى تزيينه

هي أغنية سأغنيها فقط

وستعرف العصافير في السماء

أنكَ صرتَ لها.

 

-كان الموتُ قريباً منك جداً هذه المرة

قريباً جداً،

للدرجة التي التقط فيها صورةً معك

باتسامة أخيرة

لعدسة الحياة.

 

 

- المدينة التي انجبت صرختي الأولى..

انجبتكَ أنت ايضاً

لكنك لم تعلُ مثل صرختي

وبقيت روحكَ معلّقة

بين الشكّ واليقين

في قلبي.

 

 

 

- خرجت من بيت عامر بأشجار البرتقال

وخرجتُ من بيت دفن آخر نخلة

في ذكراه

لم نلتق يوما على الرصيف ذاته

لكننا تصادمنا كثيراً

في تقاطعات نينوى.. 

حتى ظن الحرس بنا

السوء.

 

-       في زاوية ما امرأة تنتظرك

 في كل مدينة وبلدة 

أنثى ترسم دائرة حول مبسمك

كي لا تتوه.

في كل حي تمشط بنت شعرها

بأسنان غيابك

وتتحاشى العويل

 

-       لم انتظر محارباً يوماً

رغم مقارعتي لحروب ثلاث وهزائم كثيرة

كنتٓ كل مساء تسرق من الليل نجمة

لتكون دليلك إلي

من اغتال عين الليل يومها؟



 

A lullaby for a little warrior

 

          — No one will mourn your death but me
I won’t reveal your name,
or your photo or even your coffin
which I am going to decorate
I will sing a song which tells the flying birds that you’ve become theirs. 

          — Death was too close this time
Too close to take a photo of you smiling for the last time
to life’s lens. 

          — The city that gave life to my first cry
Gave you life, too
But your soul couldn’t fly as high as my cry
It dwelt in a limbo inside my heart. 

          — You came out of a house bursting with orange trees
I came out of a house which buried the last palm tree
in his memory
We’d never been at the same roadside
Yet, our meetings at Nineveh’s crossroads upset the guards. 

          — Somewhere a woman awaits you
Everywhere a female encircles your mouth to stop you going astray
In each neighborhood a girl draws the comb of your absence through her hair
And shuns wailing. 

          — I have been through three wars and many defeats
But I have never awaited a warrior
Each evening you used to steal a star to find your way to me 
Who murdered the star that night?

  

 

Balada para um pequeno guerreiro

 

          — Ninguém vai lamentar a tua morte a não ser eu
Eu não vou revelar o teu nome,
ou o teu retrato ou mesmo o teu caixão
que eu vou ornamentar
Eu vou entoar uma canção dizendo aos pássaros que tu te tornaste um deles.  

           — A morte estava desta vez muito próxima
Demasiado próxima para tirar o teu retrato sorrindo uma última vez
para a lente da vida. 

          — A cidade que deu vida a minhas primeiras lágrimas
Também te deu vida
Mas a tua alma não pôde voar tão alto como o meu pranto
Pois ele morava em um limbo dentro do meu coração. 

           — Tu vieste de uma casa cravejada de laranjeiras
Eu vim de uma casa que enterrou a última palmeira
em sua memória 

Nunca estivemos na mesma berma da estrada
Contudo, nossos encontros inquietam os guardas na encruzilhada de Nineveh. 

          — Nalgum lugar tua mulher te espera
Em todos os lugares mulheres circundam tua boca para não deixar que te percas
Em cada bairro uma rapariga desenha o pente da tua ausência nos cabelos
E oculta seus lamentos.  

          — Eu passei por três guerras e tantas outras derrotas
Mas eu nunca tinha esperado um guerreiro
Cada noite costumavas furtar uma estrela para encontrares teu caminho para mim
E quem matou a estrela nessa noite? 


 

 

 

"Romance factual" de Erich Kästner

1602234437172,image-swr-158610__v-23x10@2dM_-89ad2f435b0c63e533f249d4b0ac1f956e12b097.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Romance factual

Depois de se conhecerem havia oito anos
(e deixe que se diga: eles conheciam-se bem),
perdeu-se, de repente, o seu amor.
Tal como muita gente perde uma bengala ou um chapéu. 

Eles eram tristes, mas enganavam-se com alegria,
ensaiavam beijos como se nada fosse,
e olhavam um para o outro e não sabiam o que viria.
Então ela chorou. Ele ficou ao seu lado.

Da janela podia-se acenar aos navios.
Ele disse que já eram quatro e um quarto
e era hora de tomar um café em qualquer parte.
Na casa ao lado, alguém praticava piano.

Eles foram para o café mais pequeno das redondezas
e entretiveram-se a mexer as suas chávenas.
À noite ainda lá estavam.
Sentaram-se sozinhos sem dizer uma palavra -
simplesmente sem se poderem acreditar.


Sachliche Romanze

Als sie einander acht Jahre kannten
(und man darf sagen: sie kannten sich gut),
kam ihre Liebe plötzlich abhanden.
Wie andern Leuten ein Stock oder Hut.

Sie waren traurig, betrugen sich heiter,
versuchten Küsse, als ob nichts sei,
und sahen sich an und wußten nicht weiter.
Da weinte sie schließlich. Und er stand dabei.

Vom Fenster aus konnte man Schiffen winken.
Er sagte, es wäre schon Viertel nach Vier
und Zeit, irgendwo Kaffee zu trinken.
Nebenan übte ein Mensch Klavier.

Sie gingen ins kleinste Cafe am Ort
und rührten in ihren Tassen.
Am Abend saßen sie immer noch dort.
Sie saßen allein, und sie sprachen kein Wort
und konnten es einfach nicht fassen.