Livros de 2020 – Uma Lista

Natalia Ginzburg e os seus gatos

Natalia Ginzburg e os seus gatos

 

Comecemos com uma declaração do que esta lista não é: não é uma lista exaustiva de todos os livros que li em 2020 e também não é uma lista com aspirações a nomear os melhores livros que li em 2020. Embora mérito literário e preferência coincidam claramente na maior parte dos casos, não em todos. Passei várias horas de 2020 a ler coisas de mérito literário discutível, que, no entanto, me ajudaram a criar a minha própria bolha autista e a traçar a partir de dentro nexos de sentido. Aqui ficam alguns apontamentos sobre isso.

 

Brunetti. Já não me lembro bem o porquê do meu interesse inicial no comissário Brunetti, comissário de polícia em Veneza. Donna Leon é americana, viveu muitos anos em Veneza, tem uma obsessão por ópera, os seus livros são um sucesso de vendas na Alemanha e ela recusa-se a tê-los publicados em Itália, onde não quer ser uma celebridade. A partir de Abril, quando as regras do confinamento em Inglaterra se tornaram mais austeras, devo ter lido compulsivamente qualquer coisa como 15 dos cerca de 30 romances que compõem a série. Há uma máxima que os classicistas gostam de citar que diz que o género policial é de todos os géneros o mais obviamente herdeiro da tragédia grega, porque o seu objectivo é uma reflexão cívica sobre problemas que nos afetam enquanto corpo cívico. Ora, Donna Leon começou a publicar os seus romances sobre o comissário Brunetti na década de 90, numa altura em que o mundo era mais ou menos adoravelmente chato. Os primeiros romances parecem-me mais marcadamente interessados numa certa tradição do género. As suas preocupações temáticas têm a ver com o modo como a psicologia de certos crimes afecta diferentes classes sociais. À medida que os volumes vão avançando, há temas a que Donna Leon volta cada vez mais insistentemente, atribuindo preocupações que são assumidamente suas a diferentes personagens. Uma das mais insistentes de todas é a degradação ambiental que a actividade humana vai impondo aos diferentes ecossistemas em redor de Veneza, o que reflecte a sua preocupação com o contexto de catástrofe ambiental em que estamos a viver. Ler estes romances em curta sucessão expõe o lado formulaico e ao mesmo tempo profundamente idiossincrático do género policial. Há uma profunda empatia e inteligência emocional em Brunetti, algumas das melhores coisas acercas dos romances são as suas cuidadosas observações de outras personagens, o seu vício com a literatura clássica e a sua relação com Patta, o seu chefe siciliano profundamente incompetente, que ele manipula com cuidada cortesia e às vezes perversidade, e de longe, a relação de Brunetti com a sua mulher, Paola Falier, descendente da nobreza veneziana, de um mundo socialmente muito afastado do de Brunetti, mas de uma inteligência e de um pragmatismo que desarmam Brunetti e o leitor.

 

Dos livros que li destacaria três. O primeiro, Death at La Fenice, em que o ponto de partida é a morte de um maestro alemão em La Fenice. É, de toda a série, talvez o romance onde todas as convenções do género são mais óbvias. No entanto, parece-me que se tornou inesperadamente actual, é um romance sobre a má memória do fascismo em Itália, sobre homens com poder que pensam que podem escapar com impunidade a quase tudo e sobre os modos como vingança, expiação e justiça podem convergir, mas não se confundem. É também uma espécie de carta de amor ao mundo da ópera em Veneza. Uniform Justice é o décimo segundo romance na série, é sobre um aluno de um colégio militar que é encontrado enforcado no seu dormitório. É uma narrativa sobre uma perda cruel, sobre as responsabilidades das instituições para com os indivíduos, sobre o lado opressivo das pequenas sociedades que construímos e em que vivemos, microclimas de macroestruturas decadentes, é talvez de todos os romances o mais amargo, o que de resto não é muito comum na série, sobre a impunidade de uma classe privilegiada. O último romance que recomendaria é o vigésimo primeiro. Beastly Things é sobre a crueldade dos homens com os animais e como esta é fatalmente nociva para ambas as espécies. Por outro lado, nunca pensei que a morte de um veterinário que se comporta quase toda a vida de um modo absolutamente anti-heroico e medíocre, mas que por um momento tem um assomo de consciência que dá em revolta, me pudesse comover tanto.

 

Daniel Mendelsohn tem uma respeitada carreira como professor de clássicas, tradutor da mais completa edição de Kaváfis em inglês, crítico de literatura na New Yorker (este ensaio sobre os romances de Mary Renault é uma pequena obra-prima). Em 2013 publicou um livro chamado The Lost: The Search for Six out of Six Million. É um livro sobre a busca, com muito poucas pistas, pelos seus seis familiares que pereceram no Holocausto, dos quais a família que sobrevivera sabia muito pouco, à excepção de um avô destroçado pela culpa que se recusava a falar sobre isso. Não sendo exactamente uma novidade, parece-me que é um livro que importa por dois motivos, por um lado a sua leitura devia ser profilática no sentido em que revisita a intolerável desumanidade de um totalitarismo, a sua falta de gentileza para com a vida humana, uma forma de maldade revoltante. Em contraponto, The Lost demonstra o quão precioso é mesmo o mais pequeno momento da mais anónima vida.

 

The Pike: Gabriele d’Annunzio. Poet, Seducer and Preacher of War de Lucy Hughes-Hallet é também um livro de 2013, uma biografia do escritor italiano Gabriele d’Annunzio. A nossa tendência, a minha pelo menos, é a de nos interessarmos mais pelos poetas do lado do bem, aqueles que ao longo do tempo se mantiveram do lado das resistências e da desobediência civil por razões morais. Esta biografia de d’Annunzio é um estudo exaustivo do percurso de um poeta que teve um papel nefastamente activo na invenção, através da sua obra literária, da ideologia do fascismo. Como disse um dos seus tradutores ingleses, d’Annunzio não era um fascista, mas o fascismo era d’Annunziano.

 

A NYRB publicou em 2019 uma nova tradução inglesa do mais conhecido romance da grega Margarita Liberaki, Three Summers. Three Summers (que não é o título original em grego) foi originalmente publicado em 1946, com Gabriele d’Annunzio morto há mais de uma década e é um romance exactamente nos antípodas do mundo deste autor. Aliás, escrito durante a Segunda Guerra Mundial talvez haja uma condenação implícita desta no facto de se encontrar neste livro apenas uma muito oblíqua alusão a este acontecimento. Three Summers conta a história de três irmãs à medida que elas passam à idade adulta, ao longo de três verões num subúrbio de Atenas. É uma grande alegria este livro. Traz com ele um regresso a um mundo em estado de puro verão. Um mundo imerso em beleza, ternura, personagens singulares e que termina com um gesto absurdamente inesperado, libertador e revolucionário, que desarruma o mundo no melhor dos sentidos. Vale muito a pena ler e reler este romance.

 

Natalia Ginzburg é uma destas escritoras que escreve sobre famílias e sobre amizades como ninguém. Cerca de uma década separa Todos os Nossos Ontens de Léxico Familiar. Todos os Nossos Ontens traça o percurso de um grupo de amigos, vizinhos, durante a Segunda Guerra, é um livro escrito com uma doçura amarga, com um humor diante da crueldade que nos lembra que os outros são uma forma de alegria, que os amores e as amizades verdadeiros têm um lado perene que escapa à mediocridade e à rotina, que se mistura com a discordância, com tensões, com modos muito diferentes de ver o mundo e que é uma forma de harmonia que se vai tentando cultivar em face de um mundo que não faz grande sentido. Os amores perdidos de Natalia Ginzburg, Pavese, Leone Ginzburg, talvez estejam em Cenzo Rena e em Hipólito, mas regressam como eles mesmos em Léxico Familiar, que é sem dúvida um dos grandes romances autobiográficos do século XX. Há um pai déspota em Léxico Familiar, tal como há um em Todos os nossos ontens, e há um momento em Léxico Familiar em que se escreve sobre irmãos e em que se diz que aquele grupo de irmãos vive em cidades diferentes e países diferentes, não se escrevem muito e não falam uns com os outros frequentemente, mas quando se juntam basta que um profira uma dessas expressões do léxico familiar para que se reconheçam imediatamente. Talvez As pequenas virtudes seja um livro de crónicas no mesmo espectro destes dois livros, fala-se de sapatos, amigos perdidos, conjugalidade, sobre ensinar aos filhos a pequena virtude do desprezo pelo dinheiro, há sobretudo uma clarificação de intenções éticas, da função da literatura, em que se diz que, porque vivemos no mundo em que vivemos não podemos mentir aos nossos filhos, a função mais importante da literatura é chegar à verdade.

 

O que me leva ao último livro que li em 2020, Os Anos de Annie Ernaux, que é também ele uma espécie de livro de memórias, uma biografia impessoal de alguém que cresce em França no pós-guerra e se estende até aos nossos dias. O muito pessoal mistura-se com a política, com a história, a biografia do corpo com a biografia do corpo cívico.

 

Queria terminar com uma nota muito breve sobre dois livros de poemas lidos em 2020, Atlas da galega Alba Cid, que venceu em Espanha o prémio Miguel Hernández para Jovem Poesia, um belíssimo livro de estreia que é um atlas de lugares, memórias e migrações, de que publicámos na Enfermaria alguns excertos, e The Years, uma plaquete do poeta britânico Jamie McKendrick, em que se revisitam certos lugares e personagens (incluindo um encontro connosco mesmos) ao longo dos anos. A cada poema corresponde um desenho do autor e é uma breve e maravilhosa viagem, que se estende de Espanha a Liverpool, pela mão daquele que é um dos mais europeus dos poetas ingleses. Também aqui se publicaram alguns poemas.

Depois das Cinco

Chegar a casa e merendar, leite achocolatado, uma sandes de fiambre e queijo,

Não havia intolerâncias, o sol punha-se na janela, lentamente, a eternidade

Além das cortinas que a mãe tricotou, ouviam-se os garotos que esperavam

Os autocarros que os levariam às respectivas aldeias, que mais tarde se acendiam

Nos montes do horizonte escuro, amanhã seria um dia certo, custava a geada,

As primeiras horas de casaco e luvas, mas havia sol nos intervalos,

Estávamos inteiros, ainda longe de nos tornarmos nos homens

Que o destino faria de nós, a geada onde o Sol não chegava, permanecia

Por várias semanas, esperando a primavera, que chegaria sempre,

Mais um dia acabava, caminhava-se para casa antes de cair uma nova geada,

Um subia pelo adro, outro descia pela rua até ao fim do bairro,

Até amanhã, certos como a vida, o sangue jovem e imortal que tínhamos,

Sem imaginar primaveras impossíveis, que não chegariam a todos,

Sem pensar em cemitérios onde erva nova crescerá, porque sempre cresceu.

 

Turku

 

22.01.2021

Casas e regressos - Yiorgos Seferis e Salvatore Quasimodo

Nikos Hadjikyriakos-Ghika, Pinheiros em Poros, 1949 Nota: Poros é a ilha onde estava naufragado o barco “O Tordo,” afundado durante a Segunda Guerra Mundial, que dá título a este ciclo de poemas de Seferis, de onde se traduziu este poema. Este quadr…

Nikos Hadjikyriakos-Ghika, Pinheiros em Poros, 1949

Nota: Poros é a ilha onde estava naufragado o barco “O Tordo,” afundado durante a Segunda Guerra Mundial, que dá título a este ciclo de poemas de Seferis, de onde se traduziu este poema. Este quadro e o poema são quase contemporâneos.

Tradução do grego e do italiano (respectivamente)
de Tatiana Faia

A casa junto ao mar

Yiorgos Seferis

 

 

As casas que tive tiraram-mas. Aconteceu
que eram desafortunados os tempos. Guerras exílios expatriados;
às vezes o caçador acerta nas aves migratórias
às vezes não acerta; caçar
era bom no meu tempo, levou muitos o chumbo;
os outros andam às voltas ou enlouquecem nos abrigos. 

Não me venhas falar do rouxinol ou da cotovia
nem da pequenina lavadisca
que na luz traça a soma com a cauda;
não sei muito sobre casas
percebo que têm a sua própria natureza, nada mais.
Novas no princípio, como crianças de colo
que brincam nos jardins com as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e as mais luminosas
portas durante o dia.
Quando o arquitecto acaba, elas mudam,
franzem-se ou sorriem ou enchem-se de ressentimento
por quem ficou por quem partiu
por outros que voltariam se pudessem
ou pelos que desapareceram, agora que o mundo
se tornou um interminável hotel. 

Não sei muito sobre casas
recordo a sua alegria e a sua mágoa
às vezes, quando me é dado parar;
às vezes ainda, junto ao mar, em quartos despidos
com uma cama de ferro apenas e nada de meu
observando a tardia aranha, cismo
que alguém se prepara para chegar, que o adornam
de brancas e negras vestes e joias de variadas cores
e à sua volta veneráveis senhoras conversam com vagar
cabelos cinzentos e xailes de renda escura,
que ele se prepara para vir e despedir-se de mim
ou que uma mulher, pestanas tremendo, fina cintura,
regressada dos portos do sul
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria
de cidades fechadas como persianas a escaldar,
com os seus aromas de frutos dourados e ervas,
sobe as escadas sem ver
os que adormeceram debaixo dos degraus. 

Sabes as casas ressentem-se facilmente, quando as despes.

 

De O Tordo, Parte I, 1947

 

Os regressos

 

Salvatore Quasimodo

 

Piazza Navona, de noite, deitado de costas
nos bancos em busca de paz,
e os olhos traçando retas e volutas em espiral
uniam as estrelas,
as mesmas que seguia quando menino
estendido sobre os seixos em Platani
silabando ao escuro as preces. 

Debaixo da cabeça cruzava as mãos
e recordava os regressos:
odor de fruta a secar nos varais,
goivo, gengibre, lavanda;
quando pensava em ler-te, mas devagar,
(eu a ti, mamã, num ângulo na sombra)
a parábola do pródigo,
que me seguia sempre nos silêncios
como um ritmo se abre a cada passo
sem querer.  

Mas aos mortos não é dado voltar,
não há tempo nem sequer para a mãe
quando a estrada chama;
e eu partia outra vez, trancado na noite
como a quem de madrugada dá medo ficar.  

E a estrada dava-me canções,
que são de bagos que crescem nas espigas,
de flores que embranquecem as oliveiras
entre o azul do linho e os narcisos;
ressonâncias nos redemoinhos de pó,
cantilenas de homens e estrépito de atrelados
com as lanternas que oscilam escassas
e têm apenas a claridade do vaga-lume.

 

De Águas e Terras, 1930  

Quatro pinturas de Yiannis Kontinopoulos, seguidas de um breve texto

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Με λένε Γιάννη και μου αρέσει πολύ να ζωγραφίζω. Όταν δεν ζωγραφίζω, μου αρέσει να κοιμάμαι. Αν και για να πω την αλήθεια, δύσκολα καταφέρνω να κοιμηθώ. Ένα κουνούπι γυρίζει πάνω από το κεφάλι μου και χαλάει τα όνειρά μου. Υπάρχουν φορές που καταφέρνω να το πετύχω πάνω σε μια λευκή επιφάνεια. Τότε το κουνούπι με τη στραπατσαρισμένη του μορφή εισβάλλει πιο δυναμικά στα όνειρα μου. Αποφασίζω να ξυπνήσω και να ζωγραφίσω. Σκέφτομαι να ζωγραφίσω έναν χώρο στον οποίο το κουνούπι θα ζει ευτυχισμένο έτσι ώστε εγώ να κοιμηθώ ήρεμα στα όνειρα μου. Όποτε καταφέρνω να κάνω μια ζωγραφιά που αρέσει στο κουνούπι, καταφέρνω να κοιμηθώ. Καταλαβαίνω πως το κουνούπι με ενοχλεί γιατί του αρέσουν τα όνειρά μου. Ευχαριστώ το κουνούπι που με ξυπνάει για να ζωγραφίσω. 

Chamo-me Yiannis e gosto de pintar. Quando não pinto, gosto de dormir. Mas, honestamente, é-me difícil dormir. Um mosquito ciranda em torno da minha cabeça e arruina-me os sonhos. Às vezes consigo esmagá-lo numa superfície branca. Então o mosquito na sua forma esmagada invade-me mais fortemente os sonhos. Decido acordar e pintar. Penso em pintar um espaço onde o mosquito possa viver alegramente para eu poder dormir pacificamente em sonhos. Quando consigo pintar algo que agrada ao mosquito, consigo dormir. Percebo que o mosquito me incomoda porque lhe agradam os meus sonhos. Agradeço ao mosquito que acorda para que pinte.

Utopia invertida

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O título é pouco exato, sujeita-se ao significado de contexto que depois da Revolução Industrial parece ter contaminado a realidade com um optimismo furioso (mesmo com interregnos, bolsas de tempo e de realidade que curte-circuitaram o desejo frenético de felicidade, Guerras mundiais, por exemplo). Assim, durante séculos, nas sociedades quentes (Lévi-Strauss), o futuro ganhava sempre ao passado e ao presente, ansiava-se por ele, era bem mais Pai Natal do que os outros dois tempos. Isto foi, simultaneamente, uma emancipação em relação às antigas teologias e teogonias (Cristianismo, Grécia e Roma antigas) e uma alienação à ideia de progresso. O progressismo insinuou-se em quase todos os cantos do pensar e do sentir humanos, os céticos do futuro eram agora seres possuídos por uma deformação intelectual e moral. Fosse na política (materialismo dialético), na economia, nos costumes ou na arte, havia a tremenda convicção de que os erros do passado e do presente seriam conjurados no futuro. Sem que nenhum contra-ataque em grande escala, como em Édipo Rei, fosse sequer imaginável, nessa imaginação dominante feita da soma e de mais do que soma das parcelas individuais.

Muitos autores, com tanto mais ambivalência quanto maior era o talento e empenhamento intelectuais, quiseram pensar a ideia de outro lugar, da Grécia à atualidade. Alguns que conheço:

Platão;
Aristóteles;
Thomas More;
Rabelais;
Campanella;
Francis Bacon;
Daniel Defoe;
Jonathan Swift;
Voltaire;
Sade;
Jules Verne;
Mark Twain;
Eugène Zamiatine;
Frizt Lang;
George Orwell;
Hermann Hesse;
Aldous Huxley;
Italo Calvino;
Michel Houellebecq;

Sem a mediação da arte e do pensamento científico, os esboços maiores de utopias recentes centram-se no Terceiro Reich alemão e no marxismo-leninismo soviético. A pessoalização paranoica de uma vontade de futuro assente em projetos de vida pessoais (Lenine, Estaline e Hitler), em visões do mundo alucinadas, redundou nas maiores distopias. Se a utopia busca sempre uma perfeição, parece por isso potenciar, reverso que sempre esteve presente no verso, grandes imperfeições, como, mutatis mutandis, o voo de Ícaro.

Isto para dizer que a era COVID-19 (talvez fique conhecida assim) introduziu a controvérsia: perdemos o encanto pelo futuro, com ou sem vacinas, embora, talvez porque mantemos resquícios do velho optimismo progressista baseado na evolução tecnológica, continuemos a manifestar uma certa esperança de que nos trará coisas boas. Mas estas “coisas boas” são baseadas na antiga normalidade, na era pré-COVID-19. Regressamos ao modelo utópico das antigas mitologias da Idade de Ouro, que o Cristianismo recuperou e desenvolveu a partir do mito da Queda, embora a desgraça de Adão e Eva fosse a própria razão de ser do novo religioso, garantindo que, com mais ou menos percalços, alcançaremos a Realidade, depois da festa final do apocalipse. O que surpreende é a rapidez com que passamos de aspirar aos milagres seculares do futuro ao desejo consistente de que o passado próximo regresse. Quando vou à baixa lisboeta desejo o retorno das enchentes, estrangeiros e nativos. Não me passa pelo pensamento qualquer vislumbre de um futuro mágico.

É a nova utopia invertida. Que pode não passar de um epifenómeno, mas por enquanto parece mais presente e disseminada do que as utopias futuristas. Terá isso um grande impacto na forma como habitamos a Terra? Seremos mais frugais e gentis, mais racionais e comedidos? Haverá uma prevalência do altruísmo sobre o egoísmo, da tolerância sobre o fanatismo? Não sabemos, mas se isso não acontecer, então a nova utopia invertida será tão desinteressante como as utopias futuristas. Porque, em boa verdade, não é através do sonho que o “mundo pula e avança” (mesmo que sejam sonhos bonzinhos, porque há outros), mas de uma lucidez extra, extravagante, conservadora porque conhece as leis empíricas que determinam o mundo, e vanguardista porque desenha com rigor novas formas de estar no mundo, num altruísmo que deixe de ser especista e racista.