Tradução do artigo de opinião de André Markowicz — tradutor de, entre outros, Dostoievski para francês —, publicado a 11 de março no jornal Le Monde.
«Na origem, o poema The Hill We Climb, escrito pela jovem afro-americana Amanda Gorman a pedido de Joe Biden para o dia da sua investidura. Um poema patriótico, whitamiano, com citações bíblicas, nuances de gospel, de poetry slam e apelos aos melhores sentimentos, como exige o género. Esse poema ficou célebre de um dia para o outro, e, por isso, vai ser traduzido em todas as línguas do mundo.
Na Holanda, um editor, Meulenhoff, obteve os direitos de autor e atribuiu a tradução a Marieke Lucas Rijneveld, uma das vozes mais brilhantes da nova geração. Tudo correu normalmente até que uma jornalista negra, Janice Deul [holandesa], quando ainda não tinha sido feita a tradução, escreveu um artigo para protestar contra a escolha da tradutora, segundo ela: “incompreensível”, ao ponto de provocar em inúmeras pessoas “dor, frustração, ira e deceção”, pelo motivo de que a tradutora não era negra. “Antes de estudar em Havard, prossegue Janice, Amanda Gorman foi criada por uma mãe solteira, teve problemas de elocução que levantaram a suspeita de atraso mental. O seu trabalho e a sua vida estão necessariamente marcadas pela sua experiência e identidade de mulher negra. Por isso, é no mínimo uma ocasião falhada atribuir essa tradução a Marieke Lucas Rijneveld”
O argumento de Janice Deul lembrou-me o que me disse esse crítico russo ortodoxo sobre as minhas traduções de Dostoievski: eram duvidosas porque eu não era ortodoxo — ora, só um ortodoxo pode compreender um ortodoxo. Não o disse abertamente, mas era evidente; o fundo da questão era que um judeu, mesmo sendo russo, não podia dar conta da “alma russa”.
Esta ideologia de atomização da humanidade segundo a cor da pele, a raça e, entre outras, a etnia, é o contrário absoluto da tradução, que é, antes de tudo, partilha e empatia, acolhimento do outro, do que não é seu: a que eu chamo “reconhecimento”.
Ninguém tem o direito de me dizer o que posso ou não traduzir. Mas cada um tem o direito de ajuizar se sou capaz de fazê-lo. Isto é, pelo meu trabalho, pela minha voz, pela materialidade das minhas palavras, sou capaz de dar a ouvir a voz de um ou de outra — sem a reduzir ao que é suposto ser a minha; caso a minha voz seja suficientemente acolhedora, suficientemente livre para fazer ouvir outras.
Em França há ainda traduções “coloniais”: não apenas traduções que pegam nos textos originais como se fossem curiosidades pitorescas, mas também traduções que transformam os textos estrangeiros em textos académicos franceses. Se passei toda a minha vida a traduzir foi também contra este tipo de traduções.
Ora, a natureza fez de mim não apenas um judeu, mas igualmente um “macho branco dominante” (para usar a nova terminologia). Por isso, será que terei o direito de traduzir Marina Tsvetaeva e Anna Akhmatova, ou, neste momento, Kari Unksova (militante feminista assassinada em 1983 pelo KGB)? Com certeza que não, se nos colocarmos na perspetiva destes novos militantes da raça, adeptos da vingança pelo identitário. Quando estes interditos se exercem no domínio da tradução, domínio da passagem, da liberdade assumida, da amizade pela palavra de outrem, atingem um tal grau de absurdo que agem como reveladores.
Alguns asseguram-me que não posso qualificar os argumentos de Janice Deul como racistas, devido ao “privilégio branco” de que gozo. O racismo seria exclusivamente o do poder, dos brancos. Este género de argumento explica como o eleitorado dos trabalhadores e empregados passou do partido comunista para o Rassemblement national [direita/extrema direita francesa], com as consequências que todos conhecem. Como não sentir que este duplo standard (uns são “supremacistas brancos”, os outros defendem a sua “identidade oprimida”) é humilhante e, realmente, pela sua condescendência, racista?