Bruno M. Silva, A Cabeça em Tróia

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Bruno M. Silva

A Cabeça em Tróia

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2021, 52 pp

Posfácio de Pedro Eiras

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

8€

 

Não há caminhos, não avisto luz nas veredas
sob os montes há apenas as vozes dos lugares
e o peso que o amor faz sobre os trilhos

 

Bruno M. Silva

Bruno M. Silva nasceu em 1990, no Porto. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem poemas publicados na revista Ler, na Enfermaria 6, na Tlön, na Eufeme, na escamandro, na Gazeta de Poesia Inédita e no Jornal Universitário do Porto. Três dos seus poemas foram traduzidos para espanhol de forma a integrarem a antologia Lluvia oblicua. Poesía portuguesa actual, pela Valparaíso Ediciones. Venceu a 17ª edição do concurso Aveiro Jovem Criador 2018 com o conto O Que São os Mortos?.

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Pais e filhos

Ontem meu filho fez três anos;
e minha filha de cinco é a flor do meu quintal. 

A impossível maçã dos rostos
os olhinhos de cão, de quem olha e crê,
o mundo táctil mobilíssimo tão dado ao artesanato: 

“Um urubu, papai”
É, um urubu, pois é
“O seu avô, papai”
É, o meu avô, pois é
– e a coisa rígida
tão pouco dada
que quebra o dente e me resfria a tripa. 

Tu sabes bem o que é, Senhor, – perfeitamente bem:
teu filho lá
quarenta chibatadas
teu filho aí
“É Barrabás, cacete!”
– e a história toda, a intolerável história
de um cabrito sem pai. 

Só a sombra interessa, jumentinhos, só.
Que ao desenhinho mais asnal
mais jumentício
que se possa conceber
dá um contorno inteligente
e dimensões e estofo insólitos,
e algum contraste – denso, escuro – à brancura cerebral. 

As matemáticas, canções, a analgesia – sombra;
sombra a ternura indestrutível nas carinhas de cachorro
e todo o resto – o câmbio, o chipe, o deeneá
e o meu avô. 

“Que é que cê tem, papai”
O que tenho eu, pois é
“Anoiteceu, papai”
Anoiteceu, pois é
– é o artesanato, eu acho,
mobilíssimo
e a sombra asnal que me deixa inteligente. 

Três aninhos.
Minha flor.

Dois poemas de Sandro Penna

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A vida... é recordar um acordar
triste num comboio ao romper da aurora: ter visto
lá fora a luz incerta: ter sentido
no corpo quebrado a melancolia
virgem e áspera do ar pungente. 

Mas recordar a súbita
libertação é mais doce: ao meu lado
um jovem marinheiro: o azul
e branco do seu uniforme, e lá fora
um mar completamente fresco de cor.

(1938)

 

Também é doce encontrares-te
num bairro desconhecido.
Um rapaz de macacão
passa agora perto de ti.

Tu imaginas a sua vida
–  aquela mesa que o espera.
E a cansada bicicleta
que ele impele perto de si. 

Mas tu continuas pela estrada
desconhecida e infinita.
Tu não pedes mais à tua vida
do que continuar como é.

(1938)


De Sandro Penna, Poesie, 1973, Mondadori.

Tradução de Tatiana Faia



La vita… è ricordarsi di un risveglio
triste in un treno all’alba: aver veduto
fuori la luce incerta: aver sentito
nel corpo rotto la malinconia
vergine e aspra dell’aria pungente.

Ma ricordarsi la liberazione
improvvisa è più dolce: a me vicino
un marinaio giovane: l’azzurro
e il bianco della sua divisa, e fuori
un mare tutto fresco di colore.

***

È pur dolce il ritrovarsi
per contrada sconosciuta.
Un ragazzo con la tuta
ora passa accanto a te.

Tu ne pensi alla sua vita
– a quel desco che l’aspetta.
E la stanca bicicletta
ch’egli posa accanto a sé.

Ma tu resti sulla strada
sconosciuta ed infinita.
Tu non chiedi alla tua vita
che restare ormai com’è.

D.J. Enright, "Poeta pensando no que faz"

Tradução de Ricardo Marques

- Uma espécie de fome extra,
menos fácil de apaziguar que outras
- Ou então uma orelha extra

Ouvindo um telefone,
que pode ou não tocar
numa sala distante

- Ou então o medo de fantasmas
e medo que os fantasmas não apareçam,
Superstição dupla, medo duplo

- Perder, perder e perder
e logo ter, e ainda saber
que se deve perder e perder de novo

- Quase soa como o amor,
o amor numa fase inicial,
Essa coisa de que falas

- (mas a Beleza - não,
Problemas de lazer - não,
a Maturidade - dificilmente)

- E isto? Apenas metáforas
descrevendo metáforas descrevendo - o quê?
O círculo excêntrico dos teus anos.


POET WONDERING WHAT HE IS UP TO

- A sort of extra hunger,
Less easy to assuage than some
- Or else an extra ear

Listening for a telephone,
which might or might not ring
In a distant room

- Or else a fear of ghosts
And fear lest ghosts might not appear,
Double superstition, double fear

- To miss and miss and miss,
And then to have, and still to know
That you must miss and miss anew

- It almost sounds like love,
Love in an early stage,
The thing you're talking of

- (but Beauty - no,
Problems of Leisure - no,
Maturity - hardly so)

- And this? Just metaphors
Describing metaphors describing - what?
The eccentric circle of your years.

(in The Old Adam, 1965)