Três poemas de Polaroide de Miguel Marques

Segunda

Desenlaço espelhos cobertos,
emudecidos sem mais, com um cantor esquecido
em gaiola opaca, sem alimento nem água,
em puro silêncio,
escutando o teu nome à solta.

Mas sou capaz de olhar um espelho
e dizer-lhe na cara: esse não sou eu,
refaz o teu ofício simples.

Baço, como nevoeiro, e o seu manto de veludo
arrastado bem cedo
pela manhã, lugar onde há quem plante estátuas
de crianças nuas a crescer lentas num jardim.

Até um rio nasce e cresce para morrer
num distante fim de linha.

O seu arbusto de água corrente quando,
desavindo, espanto-me com o delta desenhado.
Margens movediças o sobem, limitando
lençóis de água onde se lava roupa, junto ao
bordado dos açudes, e povoadas por mulheres
magníficas.

Chegam a parir pequenas estátuas de mármore
roxo
– afligem-se quando não berram,
não respiram –,
e, assim, vão plantando estátuas nuas
pela manhã iluminada.

Mais tarde, as estátuas imaginam as suas próprias
vestes esvoaçantes,
e a formiga trepa-as,
dos pés à cabeça,
o basalto emplumado repousa
nos seus ombros delicados,
lembrando pássaros.

Se a cabeça viaja, crava unhas nos cabelos
entrançados devagar,
nas vestes imaginadas a rasgarem-se
no sopro breve de cada
nova manhã.

O círculo de crianças numa brincadeira de menires
soberbos.

Quarta

Toda a casa é trancada pelo Sol abrasador
enquanto escondo,
na cabeça repleta,
minúsculas células de lanternas vivas a clarear-me
o pensamento.

Os meus mortos sentam-se comigo à mesa, as
chávenas mornas
nas suas mãos brancas.

Mãe, eu ainda tremo.

Não hesites assim tanto, minha mão, quando
escreves.

Escuto as memórias que pairam como
helicópteros ruidosos em
agonia ascendente.

Felizmente, tenho apenas uma boca, demasiadas
vozes me tomariam de assalto, em sobressalto,
enquanto pássaros de luto sobrevoariam
o telhado deserto.

Uma boca húmida
onde mantenho lascas de carvão
em brasa, caverna de vapor aquecido
sem chaminé erguida.

Digo que as lágrimas dos meus mortos são
estrelas nos seus rostos marmóreos,
e qualquer estrela
é uma lâmpada por apagar, esquecida
quando de vez se tranca
a casa vazia.

E não é que o exemplo dos mortos
conduz os vivos?

Basta ver quem lidera o pelotão de cada
funeral.

Décima sexta

Hasteada a bandeira de fumo branco
a drapejar na brisa, ténue,
como o fio vibrante da teia de uma
pequena aranha.

Ou cordões de água que desenham as alças
do teu vestido imaginado.

Ou ainda, lírico cabelo desatando linhas
compridas de versos, onde
as aranhas aprenderiam
a tocar harpa
se as suas presas, de tão assustadas,
não lhes desafinassem as teias.

Nas memórias visíveis
que são as polaroides, uma floresta
de mãos abertas
com as suas unhas pintadas de verde,
dedos nus que se entrelaçam profundamente.

Se a primeira árvore da floresta
lança raízes à estrada,
a última leva os ramos à cabeça
em desespero.

Uma moeda de ouro rola
pelo declive das copas
do arvoredo,
tenta encontrar a ranhura certa,
dando início a mais um jogo noturno.

E bem no centro da imagem
desbotada, de lábios vivos,
a mulher que fuma
num desassossego,
erguida a bandeira de fumo branco
que drapeja no hálito quente
do vento.

Arde que arde na bandeira furiosa.

O teu irmão no escuro

ele flutua
como preservado
num preparado de noite

o seu coração
projectado fora do peito
bate
bate
para nossa diversão
olha as artérias
que o ligam ao corpo
torcidas e enoveladas
dizia
ele bate no escuro
para nossa diversão
vês
sabes
eu acho
que o mundo precisa
de mais bondade
devíamos ser treinados
desde novos
na arte da bondade
não achas?

e depois bates no vidro
e acenas um adeus
ele não responde
o teu irmão no escuro

passas
à próxima peça
em exibição

Visões de troia

i

Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo

CV 

Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes, 

A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca, 

O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula, 

O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,  

Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões, 

O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio, 

Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono, 

Que esperas das juntas pregas de visco e vício, 

Deixa-te cair em tentação, como num sono morno, 

Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta. 

Turku 

28.01.2024 

Livrarias ou Bibliotecas?

Eu (é um outro), durante um café filosófico na livraria Snob

Ontem, encontrei um apontamento que guardei da revista Philosophie magazine, creio que pertence a um dos cronistas residentes, mas não tenho a certeza (as web-pesquisas foram infrutíferas). Costumo revisitar as ideias que me vão marcando, sei que sou o resultado, dentro e fora da minha memória, daquilo que elas compuseram na rede psicobiológica que ampara as linhas de inteligibilidade. Muitas, em modo de corsário ingénuo, recuperei-as de mentes muito mais avisadas, como a de Nietzsche, do que eu. Notas pausadas ou fulgurantes, profundas ou superficiais, complexas ou simples, únicas ou sujeitas a um ecossistema discursivo, verbais ou imagéticas, também os sons, a música que, para Schopenhauer e outros, revela, não sem perigo, o âmago do mundo. Tudo isto forma a minha biblioteca de sentidos, um arquivo que vai orientando uma cosmovisão (nunca fixa), várias motivações, por vezes contraditórias, e também alguns imperativos. Um solo que não evita, e até alimenta, uma certa imperfeição grosseira, e por isso me projeta para o futuro em modo, nem sempre inteligente, de autossuperação. Posso dizer que me vou tornando «naquilo que sou» (percebi finalmente esta sentença nietzschiana), sem esperança, nem receio (oh, os meus amigos estoicos! Lamento todos os dias que não tenham derrotado à nascença o cristianismo).

Por tudo isto, mas não apenas por isto, há muito que me apaixonei por bibliotecas e livrarias, são os meus templos de ascese. Da biblioteca da Gulbenkian numa cidade bafienta de Trás-os-Montes à da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Da livraria Buchholz à Snob, passando pela FNAC do Chiado. Conheço poucas no estrangeiro, apesar de ter viajado bastante. Talvez signifique que o fetiche se fica pelos livros, os livros que posso ler (em diferentes línguas, é verdade, mas sobretudo em português, é esta a minha língua preferida (uma escolha?), apesar de ser capaz de pensar em francês, castelhano e quase em inglês e alemão). Não é, pois, o esplendor do local, mas os livros o que mais me interessa. E muitos, cada vez mais, são em grande parte projetos de leitura, não há tempo para tantas conversas impressas, conversas que fazem vibrar membranas da alma, não levo livros que ambicionem menos. Mas nenhum fica por folhear até encontrar uma página, um capítulo capaz de incendiar a razão, e quase nunca deixo de pegar fogo.

Vejamos o que anotei (sem autor, um descuido que não é comum) sobre a diferença entre livrarias e bibliotecas: «gosto mais das livrarias do que das bibliotecas. As livrarias obrigam-nos a confrontarmo-nos com tudo o que devemos ler, enquanto as bibliotecas nos convidam a ler tudo o que queremos ler. Umas sentam os corpos debaixo de candeeiros de secretária como manjedouras de cultura, outras abrem horizontes e põem em movimento. Se a livraria é essencial, não é apenas pelas coisas essenciais que vende, é porque aí se encontra o que não se estava à procura. E, por vezes, encontra-se porque alguém, um livreiro por exemplo, tal como eu tento fazer ao partilhar convosco as minhas leituras na revista Philosophie magazine, vos diz: “Toma, devias ler isto, deve interessar-te, agradar-te...”. Se as livrarias são essenciais, é porque, tal como o sentido de beleza de Kant, tornam os livros universalmente comunicáveis.»