Uma viagem de carro para a Carolina do Norte

Ouvi, certa vez, de professor algo irrelevante no que diz respeito ao meu desenvolvimento intelectual – não é mentira que não me recordo da aparência física ou do nome deste professor, mas também não é mentira que estar sentado na sala de aula, naquelas bafientas salas de aula lisboetas em que não se punha em causa a sapiência ou a autoridade, em que nos sentávamos a fingir respeito extremo por aqueles intocáveis intelectuais, era razão para ler os romances que não lia na rua-, que qualquer trabalho académico começa com questões. Não sei ainda se esse questionar académico tem relação com a vida prática, uma vez que me parece incompatível atingir paz de espírito e, ao mesmo tempo, procurar respostas e sentidos para uma vida pouco atreita a racionalizações. Porém, quando, há duas ou três semanas, decidir mudar de posto de trabalho e, por conseguinte, de casa, de cidade e de Estado, uma primeira pergunta me aguçou a curiosidade: como seria viajar de carro de Newark para Chapel Hill, na Carolina do Norte?

Dir-me-ia o tal professor, sulfatador de banalidades, que procuramos fontes para responder a interrogações. Quiçá viver consista, entre outra coisas vãs, em procurar razões que anulem a vontade de responder a tão essencial pergunta: que faço aqui nesta terra, neste planeta? Instalado em faustosa moradia de quatro metros quadrados situada no Ironbound, zona antigamente portuguesa, agora hispano-americana, inquiri os meus vizinhos, a maior parte falante (unicamente) de português e amante das tradições lusitanas (rancho, fado, vinho, maledicência), sobre as dificuldades de tal empreitada. “Não custa nada”, assegurou-me vizinho experimentado nas lides da vida, não sem a bazófia alfacinha, típica de quem não sente dor alguma, mesmo que lhe espetem uma faca no braço. É bom avisar que o motivo pelo qual o vizinho não sente dores, nem mesmo se lhe cravarmos punhal na carne, prende-se ao facto de ter passado a vida a mover o braço para actividades como levar o cigarro à boca ou procurar o comando da televisão enterrado no sofá. “São oito horas a conduzir, tomas um par de cafés e estás lá”, sentenciou outro vizinho, nortenho, pintor de interiores de apartamentos e vítima de fenómeno estranho, caracterizável por temporárias manifestações de raiva quando, nos intervalos do trabalho, se cruza com a própria esposa. No geral optimistas, as sugestões tendiam para a abundante toma de café e para a prática de rituais que reforçassem o foco do condutor, como misturar coca-cola com uns comprimidos energéticos (talvez Viagra). Somente um vizinho, por todos recomendado como aquele que, por ter trabalhado nas obras na Flórida, sabia um mundo sobre viajar e conduzir, me preveniu com sageza curta mas esclarecedora: “Cuidado.”

O heroísmo latente da vizinhança encorajou-me a enfiar no interior de um Honda Accord toda a mobília, livros, roupa e tralha que encontrei no apartamento. Ainda que não me tenha sido possível acartar mais do que roupa, uma torradeira e uma máquina de café, sobrou-me espaço na viatura para uma mulher a rondar o metro e sessenta de altura e uma criança de três anos e um mês. Como não me restava mais espaço, e porque meu coração já ardia de saudade e nostalgia de Newark, de Nova Iorque, e até de coisas surreais como a padaria portuguesa da esquina, arranquei num domingo à noite, convicto de que oito horas de viagem se fariam como uma ida à praia.

Caracterizada por árvores, motéis, restaurantes de fast-food e infinita estrada plana, a paisagem torna algo monótona a travessia dos Estados Unidos através de autoestrada. Quando, depois de mais ou menos quarenta e cinco minutos a conduzir, o GPS indica que estou perto de Filadélfia, fico com a sensação de me terem mentido, que chegar à Carolina do Norte será fácil. De Delaware retenho uma longa ponte vazia, pelo carro atravessada a uma velocidade bastante superior à permitida por lei. Às vezes chove, chove muito, ao ponto de não ver dois palmos à frente. Outras vezes faz um calor húmido, e sempre o carro rasga a autoestrada como um míssil destinado a só parar no destino final. A criança dorme durante as primeiras três horas e meia de viagem, e a mulher, preocupada com a segurança de todos, vai perguntando se não será tempo de parar. “Só mais vinte milhas, só mais trinta milhas”, vou dizendo, concentrado na música e armado em John Wayne, como se fizesse ideia do que estou a fazer.

Passamos por Maryland. A noite escura pouco permite vislumbrar para além de prédios longínquos. Ao volante vêm-me memórias de Stringer Bell e outras personagens de The Wire, e com essa imagem de droga e corrupção deixo Baltimore adormecida. De repente, contrastando com o deserto contínuo, surge Washington. Embora já passe da meia-noite, e o cansaço me impeça de prestar real atenção ao que me rodeia, sinto que a capital americana surpreende pela imponência e modernidade. “Olha, o Capitólio”, ouço, mas mal tenho tempo de virar a cabeça, pois meti na cabeça que, se não abrandar o ritmo, chegarei depressa ao destino. Com a imponência de Washington para trás, outra vez abafado pelas árvores e pela solitária estrada, paramos na Virgínia, não para o par de cafés recomendado pelo vizinho, mas para dormir num motel, que isto de trazer bebés num carro tem a sua ciência. Após breve duche da praxe, que serve essencialmente para dar uso aos sabões e ao resto a que o cliente tem direito num estabelecimento do género, medito sobre a arte de viajar de carro. Nunca antes me passara pela cabeça que conduzir durante tantas horas pudesse ser viciante, que atravessar tantas cidades e Estados me pudesse estimular como um videojogo. Adormeço a assistir ao preço certo americano.

Tomamos o pequeno almoço e, porque o Estado é vasto, almoçamos na Virgínia. Os habitantes locais observam-nos como se fossemos extraterrestres. Também eles, vindos de um filme barato, fardados com botas de cowboy, apetrechados de bigodaça, cabeleiras fartas e vestes de trabalhador rural, nos surgem como figuras exóticas. Demoramos cerca de três horas a chegar à Carolina do Norte. Felizmente, em certas estradas é possível conduzir a setenta milhas por hora, o que para um português ciente do cumprimento das regras, equivale a oitenta e cinco milhas por hora. Incorporando na figura de Michael Knight, evito pensar que a Virgínia me aborrece. Mas agora, à distância de uma semana, aquilo que era uma impressão ficou em mim cravado quase como certeza: eu e a Virgínia não fomos feitos um para o outro.  

Antigamente, julgava que guiar um carro não era para mim. Agora pago um carro a prestações, aprecio guiar a velocidades imoderadas, palmilho estrada de olhos fechados, como se o volante me soprasse ao ouvido para onde ir. Ensinam os budistas que estamos em constante mudança, que nem sequer existe um eu, que somos um rio em movimento. A minha vida melhorou desde que aceitei fazer parte desse rio, ou melhor, desde que deixei de resistir à mudança e parei de acreditar que a minha personalidade era x e nunca assim deixaria de ser (se era teimoso, achava que não poderia deixar de ser teimoso). A história não se repete, a minha personalidade adapta-se ao tempo e ao espaço, deixo-me ir, o que faz com que mudar de cidade, de casa, deixar para trás centenas de livros, conhecer novas pessoas ou adaptar-me a novas realidades, não seja difícil, porque fácil, difícil, entre outros adjectivos ou formas de categorização, abandonaram o meu jogo.

Entrei na Carolina do Norte exausto, necessitado de jacuzzi, piscina, praia, massagens, e de tudo o mais que deus permite. A paisagem não me fascinou logo. Parecia-me mais do mesmo.  E a casa alugada só estaria pronta para entrar dois dias depois, catástrofe que me obrigaria a dormir mais duas noites em motéis e a levar a torradeira e a máquina do café para todo o lado. Não ter casa permitiu-me deambular sem destino. Conheci Carrboro, Durham, Chapel Hill e Raleigh. Não descreverei aqui os sítios que agora frequento. Atenho-me à viagem de carro. Como tantos outros portugueses, julguei que os GPS enganavam as pessoas, que induziam em erro, que quando se dizia que ir de Newark a Chapel Hill levaria cerca de oito horas, tal significava que essa viagem demoraria não mais de seis horitas. Mas o GPS não falhou. Demorei o tempo que estava previsto demorar. Não me enganei em nenhuma saída. O GPS falhou-me menos do que qualquer pessoa que tenha conhecido (deixemo-nos de passivo-agressividade). Duvido que repita esta aventura tão cedo. Mais uma vez imbuído de estupidez, imagino que, com o carro menos pesado e sem um bebé a precisar de constante atenção, retiraria duas horas à viagem. Esqueço que não dá para fechar os olhos em Newark e abri-los, cinco minutos depois, com quatrocentas e muitas milhas calcorreadas. Esta foi das mais estimulantes experiências que vivi.

 

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Porque não há nota de segunda-feira esta semana

Os dez leitores que seguem este blog terão reparado que mantemos uma rubrica chamada “Notas de segunda-feira”. O que essa rubrica é suposto ser ao certo ainda estamos a tentar descobrir, mas a ideia geral é que todas as semanas um dos editores escreve uma nota mais ou menos leviana sobre o seu fim-de-semana, ou sobre algo que o captivou recentemente. Esta semana calhava-me a mim escrever a nota semanal. Este texto serve para justificar porque não o fiz.

Eu até que estava bem lançado. Tinha duas ideias para o texto, planeava escrevê-lo no sábado, deixá-lo repousar, lê-lo no domingo, descobrir que aquilo era uma parvoíce pegada e escrever outro em nada melhor, e corrigir os muitos erros e gralhas na terça, depois de os demais editores da Enfermaria me darem na cabeça. Este é o método de escrita que apurei nos últimos tempos, e acho-o extremamente eficiente. Mas algo inesperado e totalmente fora do meu controlo tomou conta do meu fim-de-semana e arrumou o meu cuidado plano na gaveta do esquecimento. Mas já lá chegamos.

 

Tópico 1 para a nota de segunda-feira que não chegou a ser escrita: Succession (2018)

A minha primeira ideia era escrever sobre a série Succession, https://www.imdb.com/title/tt7660850/?ref_=nv_sr_1). Acabei de ver a primeira temporada esta semana, e é soberba. Criada por Jesse Armstrong, um dos argumentistas de Thick of it, uma das minhas séries preferidas dos últimos anos, tem em comum com esta o humor negro e a arte de bem praguejar. É uma espécie de King Lear moderno: o patriarca da família Roy, o poderoso CEO de uma das maiores empresas de media do mundo, um misto de Trump e Murdock e excelentemente representado por Brian Cox, celebra o seu octagésimo aniversário, e os filhos posicionam-se para o suceder. O problema é que o pai não tem a mínima vontade de se reformar. Sim, claro que é um comentário à actual situação política (i.e, Trump e acesso ao poder que dinheiro e influência compram; nas minhas notas para o texto comentei “faças o que fizeres, não uses esta expressão”), mas é também um drama profundo, extremamente bem escrito, e com actores que certamente vão ganhar prémios a torto e a direito. Fui lá ter através deste texto na The New Yorker, que é muito melhor do que o meu texto seria: https://www.newyorker.com/culture/on-television/succession-reviewed-an-irresistible-family-power-struggle-told-through-soap-and-satire

 

Tópico 2: Sweet Tooth (2009-2012), de Jeff Lemire

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Jeff Lemire (n. 1976) é um escritor e desenhador de banda-desenhada canadiano e, desde que li a graphic novel[1]Essex County, no princípio deste ano, que estou apaixonado pelo seu trabalho. Essex County é uma colecção de contos em torno de uma comunidade rural no Canadá. As histórias são minimalistas e contidas, bem como o registo gráfico, interligadas de formas nem sempre óbvias. É talvez o livro mais comovente que li no último ano. Mas não era sobre esse livro que queria escrever, mas sobre a colecção Sweet Tooth, que Lemire escreveu e desenhou, e que foi publicada entre 2009 e 2012. Descrita pelo autor como “Mad Max meets Bambi” (com claras influências de The Road, de Cormack McCarthy), conta a história de um rapaz “híbrido” (a imagem da capa é elucidativa), que tenta sobreviver num mundo em que uma peste incurável e inexplicável dizimou a maior parte da humanidade, e os sobreviventes vivem atormentados pela certeza de que é apenas uma questão de tempo até que também eles contraiam a doença. Uma leitura ligeira, portanto.

 

Os meus amigos sabem do meu “interesse excessivo” por um género de videojogo genericamente denominado RPG (não me vou alargar aqui sobre a definição do género, algo fluída; direi apenas que estes jogos costumam conter uma série de elementos em comum: o jogador controla uma personagem ou um grupo de personagens, através de uma narrativa complexa, as personagens evolvem ao longo do jogo, adquirem novas capacidades e características, que alteram a forma como podem interagir com o mundo). Depois de me ouvirem discorrer durante cinco minutos sobre os méritos artísticos de jogos como The Witcher 3 ou Persona 4, eles tendem a dizer, com visível curiosidade: Não te vais pôr a falar sobre jogos de computador outra vez, pois não? O que eu tomo por sinal de interesse, e prossigo, expondo as razões porque prefiro The Witcher 3 a Fallout 4 (pace João Bosco da Silva), ou o que torna Persona 4 tão especial – o Persona 5 é excelente, e muito melhor tecnicamente, mas falha em fazer-nos sentir em casa e ligar-nos ao mundo da narrativa, como o Persona 4 faz tão bem…

Chegamos então ao ponto em que os meus planos de fim-de-semana foram deitados borda fora, como um pirata insubordinado lançado para um mar infestado de tubarões. Aconteceu-me isto:

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Não vou abusar da paciência dos leitores da Enfermaria. Direi apenas que Divinity: Original Sin 2 é um RPG excelente. Tem uma qualidade de escrita, tanto nas missões principais como nas missões secundárias, como não via desde The Witcher 3. O combate por turnos, de alta complexidade táctica à la X-Com, é fantástico, e encoraja a criatividade: por exemplo, hoje descobri que, se congelasse o solo sob o qual está um inimigo a sangrar, é possível que ele escorregue no seu próprio sangue congelado e perca a vez. É um jogo de uma audácia rara em termos do nível de agência que confia ao jogador: o jogador não gosta de uma personagem central e decide matá-la por capricho? Muito bem, o jogo permite fazê-lo, e foi concebido de maneira a que fosse possível a narrativa continuar, apesar de uma peça essencial estar em falta. Poderia continuar a discorrer sobre os méritos do jogo, mas não o vou fazer – quero antes ir limpar o sebo ao Bispo Alexandar.

 

Isto vem totalmente a despropósito, mas reli o Four Quartets este fim-de-semana. É ainda mais belo do que me lembrava.

 

Para acabar o post com uma mensagem positiva: aos dois leitores com menos de quarenta anos que lêem o blog eu digo: jovens, digam não às drogas e vão jogar Divinity: Original Sin 2. Ou ver Succession. Ou ler os livros acima mencionados. Ou simplesmente ler bons livros. Sim, isso é capaz de ser o melhor.


[1] Qual a tradução correcta de graphic novel? Romance gráfico?

Barbara Stronger, Cabra bem cabra

 

Barbara Stronger

Cabra bem cabra

 

Poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
Agosto de 2018
50 pp

 
 

Três desenhos da Carla Diacov
no Instagram: I – 14 de Maio, 2018


O primeiro desenho do mundo
nasceu, não da sombra do homem, mas
do ventre de Eva, quando esta
dava à luz Caim.

Suada em dor,
sentia o rosto entre os dedos com o
sangue do seu ventre.
Purificava os lábios e enchia o cansado
corpo de vitória:
vencera a morte pela primeira vez.

Despenteada, desfeita, tudo o que
tinha a oferecer era uma constelação
infinita no olho direito, aquele espelho
da História do mundo.

 
Barbara Stronger - Autorretrato. 11.06.18.png

Barbara Stronger

Nasceu em Toronto, em 1983, filha de pais emigrantes açorianos. Estudou Letras em Montreal e fez Tese sobre Paul Celan. Pinta Tondos Abstratos ao Domingo. Solteira. Lésbica e feminista. Vive atualmente no Porto, onde trabalha em part-time, no McDonald’s das Antas, para comprar Whisky e livros.

Electra (revista)

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Saudemos o aparecimento da nova revista Electra, com saída trimestral. É editada (português e inglês) pela Fundação EDP e vai no número 2. Ao diretor José Manuel dos Santos junta-se o editor António Guerreiro.

O número de lançamento (“Nesta Grande Época”) elucidava(-se) assim: “ELECTRA é a nova revista da Fundação EDP. É uma publicação editada em português e inglês, de crítica, pesquisa, ensaio e reflexão cultural, social e política, que aborda todas as áreas da cultura, promovendo diálogos e oscilações de fronteiras entre saberes humanísticos e ciências, entre disciplinas artísticas, entre teorias e práticas culturais diferentes.” Trata-se, portanto, de um dispositivo que pretende pensar criticamente os múltiplos fios que cosem a actualidade, tantas vezes uma indigente manta de retalhos.

Entretanto, em Junho saiu o número 2, dedicado em grande parte à estupidez. Os ensaístas são de primeira linha, de Yves Michaud a Avita Ronell, passando por José Gil ou João Pinharanda. É por isso um prazer lê-la, mesmo que o tema da estupidez, mais inabalável do que alguns pensam, nos desarme, ou enoje mesmo.

Destaco certas ideias: António Guerreiro faz uma espécie de genealogia curta da estupidez, tomando Flaubert, Musil, Broch ou Barthes por lúcidos profetas. Fala também da “tortura empática” ministrada pela televisão, concretizando a “ditadura do coração” de que falava Kundera. Termina o seu ensaio escrevendo: “Não sabemos, e é impossível saber, se o caudal de estupidez é hoje proporcionalmente maior do que foi noutros tempos, mas é possível dizer com certeza que ela flui no nosso tempo com menos resistências críticas e por vias que permitem um deslizar tranquilo.”

Yves Michaud insiste no paradoxo da quantidade incomensurável de informação disponível reverter em iliteracia. Não tanto porque prevalece um caos informativo indomável, mas porque motores de busca, “dos quais ignoramos em grande parte os princípios de funcionamento, de selecção e de hierarquização.”, estabilizam um pensamento redutor e orientado para o consumo de massas.

Avita Ronell reflecte sobre “A tentação da imaturidade”, o espírito adolescente que invadiu grande parte do planeta, incapaz de gerir bem a hesitação, agindo em permanente, alegre e frenética, cegueira. Além disso, o “horizonte de promessa segura” que durante muito tempo veio da América foi aniquilado à machadada por Trump, que na verdade não passa de um adolescente mimado e ousado.

Mas há muito mais, por exemplo: sobre “O que fazer dos textos infames?”, relacionado com a possível publicação dos panfletos anti-semitas de Céline, à “A sobrevivência da abjecção” de André Dias, onde se discute algum do cinema da crueldade, tomando como referências maiores Pasolini e Haneke, articulando-o com a biopolítica.

Longa vida à Electra!

Consolo na miséria

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Quatro meses e meio a limar bruxuleante prosa, cento e vinte maços de tabaco esventrados, três quilos de café conferindo tons acastanhados à dentadura, iracundas jornadas de bulha com a esposa, tudo em vão, suspirava o vencido Quirino. Ainda que soubesse das virtudes da paciência, não podia mais dar de caras com a repugnância ou, ainda pior, com o desinteresse de editores impreparados para literatura como a sua, por si próprio apontada como avant la lettre. Que país, declamava ao vento, que não premiava os melhores, que secava à fome merencório artista de dimensão planetária, que nem permitia que relevantíssimo artigo, dedicado ao tema da deglutição de nozes no tempo do rei D. Carlos, tivesse direito a publicação em revista de modesta circulação.

Jacinta, hirsuta e escravizada esposa do escriba, digeria com cada vez maior desgosto uma realidade confirmada pela natureza como facto científico: além de não contribuir com tostão para as despesas domésticas ou de não se envolver, por questões éticas, religiosas e sabia-se lá mais o quê, com tarefas profissionais relacionadas com dinheiro, a patética figura do marido não era abastecida de talento que lhe valesse aquele inane quotidiano de inactividade. Aquando de particularmente intensa explosão emocional de Quirino, que meteu lágrimas, berros, pratos partidos e patadas nos móveis, consequência directa da rejeição editorial do tal pedaço de arte que lhe custara quatro meses e picos a redigir, a senhora, imbuída de espírito heróico, decretou a seguinte sentença: a partir do dia de hoje, pagas o que comes, os banhos que tomas, o detergente gasto na lavagem dessa tua encardida roupa e, todos os meses, pouco antes do dia quatro, pousas cem notas na mesa de jantar, de maneira a que a renda seja paga sem meu prejuízo. Trespassado pelas mortíferas palavras da mulher, Quirino torceu o lábio, enrugou a testa, ajoelhou-se, como que prenunciando enfarte, embora de enfarte nem sinal, rebolou copiosamente na carpete, na esperança de que Nosso Senhor ou mesmo Jacinta se apiedassem de seus padecimentos, e clamou que a arte lhe consumia os nervos, que o problema no joelho lhe tolhia o andar, que um início de demência lhe subtraía expectativas, e que a mera hipótese de se imiscuir no mercado de trabalho, assim do nada, com trinta e oito anos no corpo, lhe metia medo, tanto medo que preferia permanecer como estava, apático, na dependência de uma limpadeira, preso ao ordenado mínimo de terceiros. Outra vez de coração amolecido, Jacinta calou a boca, afagou o cabelo do marido e, num meigo tom de voz, trouxe paz à casa: Meu chocolate branco, que culpa tens tu de ter nascido estúpido como uma porta?

 Possivelmente por causa dos eclipses solares, pela astrologia considerados causadores dos mais fantásticos eventos, as semanas, caracterizadas por mudanças bruscas, tiveram pedido de divórcio, cabeçadas, narizes partidos, cadernos ardidos, paredes borradas de sangue e visitas aos serviços de urgência do hospital. Afastado do amor da sua vida, daquele matagal de pêlos que à noite o consolava, o homem buscou sossego nos braços de outra fêmea, Cidália, cega, surda, muda e morta, tão morta que todos, menos o entontecido Quirino, sempre em busca da frase perfeita, a tinham por fantasma.