Charles Bukowski, "o homem ao piano"


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Tradução: João Coles


o homem ao piano
toca uma música
que não compôs
canta palavras
que não são suas
num piano
que não lhe pertence.

enquanto
as pessoas à mesa
comem, bebem e falam

o homem ao piano
termina
sem aplausos

e logo
começa a tocar
uma nova música
que não compôs
começa a cantar
palavras
que não são as suas
num piano
que não lhe pertence

enquanto
as pessoas à mesa
continuam a
comer, a beber e a falar

quando
termina
sem aplausos
anuncia
ao microfone que
vai fazer
uma pausa de dez minutos

vai
à casa-de-banho
dos homens
entra
numa cabine
tranca a porta
senta-se
puxa dum charro
e anima-se

está contente
por não estar
ao piano

e
as pessoas sentadas à mesa
comendo, bebendo e falando
também estão contentes
por ele
lá não estar

é assim
que as coisas funcionam
quase em todo o lado
com tudo e todos
enquanto ferozmente
nas montanhas
o
cisne negro pega fogo


in Dangling in the Tournefortia, 1981


the man at the piano

the man at the piano

plays a song
he didn't write
sings words
that aren't his
upon a piano
he doesn't own

while
people at tables
eat, drink and talk

the man at the piano
finishes
to no applause

then
begins to play
a new song
he didn't write
begins to sing
words
that aren't his
upon a piano
that isn't his

as the
people at the tables
continue to
eat, drink and talk

when
he finishes
to no applause
he announces,
over the mike, that he is
going to take
a ten minute break

he goes
back to the men's
room
enters
a toilet booth
bolts the door
sits down
pulls out a joint
lights up

he's glad
he's not
at the piano

and the
people at the tables
eating, drinking and talking
are glad
he isn't there
either

this is
the way it goes
almost everywhere
with everybody and everything
as fiercely
in the highlands
the
black swan burns


in Dangling in the Tournefortia, 1981

Garotos

Aquele garoto de olhos azuis obcecado por omoplatas,

Escrevendo poemas à luz das velas na companhia das galinhas

E do cheiro a feno, trago-o no peito desde o primeiro verso

Escrito na humidade de um quarto pequeno numa aldeia

Que os anos foram esvaziando de sonhos e futuro,

Aqueles primeiros poemas que pareciam salvar o mundo,

Descobrir a morada de deus depois de morto,

Escritos em papel barato com uma caneta de pena,

O mundo à beira do fim, como tem estado desde então,

O amor uma dor que se descobre nas noites mais quentes,

Cheias de insónia e lençóis cobertos de esperma e vergonha,

Aqueles olhos verdes recortando o vestido azul em eternidade,

As amiguinhas ridículas, preciosas, como o mar que leva o Sol,

Aquelas mãos que se cansaram de conquistar o mundo no papel,

Porque nenhum verso vale a pele quente que ficou por tocar,

Nenhum poema vale a viagem que ficou por fazer,

Só continua poeta quem não consegue acordar completamente.

Turku

05.04.2020

Adrienne Rich, "Essa Boca"

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tradução: Bruno M. Silva

Esta é a boca da rapariga, o sabor
que as filhas, não os filhos, logram.
Estes são os lábios, poderosos lemes
atravessando bosques de algas,
o sabor feminino, terrível e amargo
de todo o oceano e suas profundezas: é esse o sabor.

Este não é o beijo do pai, o da mãe:
um pai pode tentar sufocar-te,
uma mãe afoga-te para te salvar:
todas as transacções foram há muito decretadas.
Isto não é o conto de uma irmã nem de um irmão:
estranhos acordos foram há muito feitos.

Isto é o engolir, o brotar
do camarão e plâncton, essa boca
descrita como a de uma rapariga —
bastante para te dar a provar:
És tu uma filha, um filho?
Estranhos acordos foram há muito feitos.

1988

in An Atlas of the Difficult World, Poems 1988 - 1991

That Mouth

This is the girl’s mouth, the taste
daughters, not sons, obtain:
These are the lips, powerful rudders
pushing through groves of kelp,
the girl’s terrible, unsweetened taste
of the whole ocean, its fathoms: this is that taste.

This is not father’s kiss, the mother’s:
a father can try to choke you,
a mother drown you to save you:
all the transactions have long been enacted.
This is neither a sister’s tale nor a brother’s:
strange trade-offs have long been made.

This is the swallow, the splash
of krill and plankton, that mouth
described as a girl’s —
enough to give you a taste:
Are you a daughter, are you a son?
Strange trade-offs have long been made.

1988

in An Atlas of the Difficult World, Poems 1988 - 1991

O PAÍS DAS MIL ERVILHAS e outros poemas

O PAÍS DAS MIL ERVILHAS

 

Como conseguirão chegar a Krebber

se ainda não passaram pela asa de Klee?

 

Como conseguirão chegar a Guyton

se ainda não saíram do negro de Braque?

 

Como conseguirão chegar ao século XXI

se ainda não chegaram ao século XX?

 

Como conseguirão chegar a Mei-Mei

se ainda não esqueceram Mallarmé?

 

O diabo é estarmos rodeados por

Mallermazinhos por todos os lados!

Disse e muito bem Murillo Mendes!

 

AS CATEGORIAS

 

Existem três categorias de poetas

os que matam por uma carreira

os que trabalham por uma carreira

os que não procuram uma carreira

 

Existem três categorias de poetas

os que vão a todas as leituras

os que vão a algumas leituras

os que detestam leituras

 

Existem três categorias de poetas

os com enorme ego

os com grande ego

os de pequeno ego

 

Existem três categorias de poetas

os maus os assim assim e os bons

Existem três categorias de poetas

e eu espero não pertencer a nenhuma.

AS COLINAS VERDES DA TERRA

“It used to drive me nuts when people immediately

connected my work to cartooning, and I had a whole

speech about how modernism is filled with painters

who use black outline, blah, blah, blah.”

                                          Carroll Dunham

Já não se conhecem lutadores nus

sobre o prazer limpo de competir

Somos dois homens cuja cara espelha

o oculto ser que o mundo perdeu

Sob esses finos cabelos e barbas espessas

há todo um corpo que deseja outro

 Somos dois homens sem seios femininos

e o centro da nossa rebeldia jaz no centro

Destes corpos a pele pálida é a morte

entrando pelas unhas a meio do dia

 Procura procura a tela fixada em título

e procura vestígios da colina vazia

E nós teremos a suspeita ou certeza

de estarmos a ver o exato mundo

Somos dois homens de cara branca

e de roliços corpos em esforço

 Volumétricos delitos de virilidade

cujos genitais são duras bagas

lançadas por entediantes deuses

            TRANSPARÊNCIA

Da alta coluna o palhaço no meio

da praça do comércio gritou a viva voz:

 

Dizei-me quem são os vossos amigos

e dir-vos-ei em qual editora publicam!

Infringida a primeira regra do espaço

social só lhe restava a prisão. Por isso

apareceu o “crítico” de pena na mão e no

telegrama sentenciou “a terrível pena”:

 O cardume não tem qualidade não me

veio beijar a horas a mão o pé e o cu.

De x-ato na mão rompia calmamente

película a película sozinho na sua cela

Tinha por único amigo o silêncio e duas

pequenas aranhas uma cega outra negra

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Carroll Dunham - pormenor